sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

HOBSBAWN E A ERA DOS IDIOTAS

sábado, outubro 13, 2012

Está circulando na internet um troço curioso. Trata-se de um texto-manifesto, assinado por uma certa ANPUH (Associação Nacional de Professores de História), da qual eu, apesar de graduado em História, nunca tinha ouvido falar - e da qual, pelo que segue, orgulho-me de não ser sócio.

É uma resposta (ou deveria ser) ao obituário publicado na revista VEJA do historiador inglês Eric Hobsbawn, falecido no dia 1 de outubro aos 95 anos de idade. Os senhores da tal ANPUH se mostram indignados pelo que consideram um tratamento desrespeitoso dado pela revista ao historiador marxista inglês, uma das vacas sagradas da intelligentisia esquerdista mundial e, por tabela, brasileira - o que significa: um autor obrigatório nas universidades brasileiras, sobretudo para quem não conhece outro autor e acredita que a historiografia marxista é a única existente.

O texto é um típico produto coletivo de mentes que só sabem pensar coletivamente (ou seja: que não sabem pensar). Tanto que seus autores, na ânsia de darem uma "resposta" a quem teve a ousadia de criticar um de seus ídolos (um crime, enfim, de lesa-santidade), parecem esquecer-se de fatos básicos, fundamentais. O que apenas reforça minha convicção de que os esquerdistas são guiados por um misto de cegueira voluntária e amnésia. E por nenhum senso do ridículo.

Fiz questão de transcrever o texto na íntegra. Vai em vermelho. Meus comentários vão em preto.  

ANPUH- RESPOSTA À REVISTA VEJA

09/10/2012

Eric Hobsbawm: um dos maiores intelectuais do século XX

Na última segunda-feira, dia 1 de outubro, faleceu o historiador inglês Eric Hobsbawm. Intelectual marxista, foi responsável por vasta obra a respeito da formação do capitalismo, do nascimento da classe operária, das culturas do mundo contemporâneo, bem como das perspectivas para o pensamento de esquerda no século XXI. Hobsbawm, com uma obra dotada de rigor, criatividade e profundo conhecimento empírico dos temas que tratava, formou gerações de intelectuais.

Não se discute que Hobsbawn foi um historiador de talento, dotado de inteligência. Falo sobre isso depois. Tampouco está em questão sua influência sobre gerações de intelectuais. O debate é outro, como se verá adiante.

Ao lado de E. P. Thompson e Christopher Hill liderou a geração de historiadores marxistas ingleses que superaram o doutrinarismo e a ortodoxia dominantes quando do apogeu do stalinismo.

Nem tanto. Hobsbawn, se procurou distanciar-se do stalinismo, depois da denúncia dos crimes de Stálin feita por Kruschev em 1956, não teve a coragem e a ousadia de abandonar o barco do comunismo nos anos seguintes. Pelo contrário: até intensificou sua militância comunista, recusando-se a criticar abertamente a URSS e justificando os milhões de assassinatos de Stálin, como veremos em seguida. Ele sempre se manteve no campo marxista, dando "apoio crítico" ao Kremlin e considerando os EUA "a maior ameaça à humanidade". Nos últimos tempos, não cansava de elogiar Lula como um exemplo de governante marxista.

Deu voz aos homens e mulheres que sequer sabiam escrever. Que sequer imaginavam que, em suas greves, motins ou mesmo festas que organizavam, estavam a fazer História. Entendeu assim, o cotidiano e as estratégias de vida daqueles milhares que viveram as agruras do desenvolvimento capitalista.

Para começar, a função do historiador, como a de qualquer intelectual, não é "dar voz aos excluídos", ou, como está acima, "aos homens e mulheres que sequer sabiam escrever". Ele pode até fazer isso, mas como militante político, não como um investigador, que deve ter como único compromisso a realidade dos fatos. E a realidade da História é que as "agruras do desenvolvimento do capitalismo", ao contrário do que diz o texto, levaram à melhoria das condições gerais de vida dos trabalhadores em todos os países capitalistas europeus, conforme demonstraram, com dados e números inquestionáveis, estudiosos sérios como Ludwig von Mises (ver o seu As Seis Lições, se quiserem tirar a prova).

Mas Hobsbawm não foi apenas um "acadêmico", no sentido de reduzir sua ação aos limites da sala de aula ou da pesquisa documental. Fiel à tradição do "intelectual" como divulgador de opiniões, desde Émile Zola, Hobsbawm defendeu teses, assinou manifestos e escolheu um lado. Empenhou-se desta forma por um mundo que considerava mais justo, mais democrático e mais humano.

Aqui há uma falsidade disfarçada de verdade biográfica: Hobsbawn foi sim, além de historiador, um militante - ou um "divulgador de opiniões". Mas de maneira nenhuma essas se enquadram numa perspectiva fiel à tradição intelectual de autores como Émile Zola - Hobsbawn era comunista, Zola era um liberal e um democrata, um defensor da tolerância, famoso pela defesa do capitão Dreyfus no final do século XIX. Aliás, Hobsbawn, judeu como Dreyfus, assinou manifestos e participou de passeatas a favor do nacionalismo palestino (na época em que este sequer reconhecia o direito de Israel à existência). Aproximou-se, assim, portanto, muito mais dos detratores antissemitas de Dreyfus do que de Zola e outros paladinos da liberdade de imprensa. Algo, aliás, inexistente na defunta URSS, que Hobsbawn sempre tratou com simpatia em seus livros, como um paradigma daquilo que ele considerava um mundo "justo, democrático e mais humano"... Nada mais longe da verdade.

Claro está que, autor de obra tão diversa, nem sempre se concordará com suas afirmações, suas teses ou perspectivas de futuro. Esse é o desiderato de todo homem formulador de ideias. Como disse Hegel, a importância de um homem deve ser medida pela importância por ele adquirida no tempo em que viveu. E não há duvidas que, eivado de contradições, Hobsbawm é um dos homens mais importantes do século XX.

Deixando de lado o português arrevesado - isso de escrever "desiderato"... -, a frase de Hegel, no contexto em que está colocada, não significa rigorosamente nada: Napoleão, Hitler, Lênin e Stálin foram importantes no tempo em que viveram, e isso não acrescenta ou retira absolutamente nada do significado de suas ações. O que está em questão não é a importância de Hobsbawn - ele foi, sim, um historiador importante -, mas o valor de suas idéias. Ou, melhor dizendo: a moralidade delas.

Eis que, no entanto, a Revista Veja reduz o historiador à condição de "idiota moral" (cf. o texto "A imperdoável cegueira ideológica da Hobsbawm", publicado em www.veja.abril.com.br). Trata-se de um julgamento barato e despropositado a respeito de um dos maiores intelectuais do século XX.

Aqui, finalmente, entramos na questão principal. Vejamos quão "barato" e "despropositado" é o julgamento da revista sobre Hobsbawn.

Veja desconsidera a contradição que é inerente aos homens. E se esquece do compromisso de Hobsbawm com a democracia, inclusive quando da queda dos regimes soviéticos, de sua preocupação com a paz e com o pluralismo.

Pelo menos o texto reconhece que Hobsbawn tinha contradições... Mas somente para, logo em seguida, incorrer na maior das contradições, ao afirmar que o marxista Hobsbawn tinha uma compromisso com a democracia (!). Ora, de que democracia os autores do manifesto estão falando? Se é das "democracias populares" do Leste Europeu ou da ex-URSS, então acertaram em cheio. Mas não da democracia liberal, da democracia tal qual a conhecemos, com alternância de poder, eleições livres e liberdade de associação e de expressão, a qual Hobsbawn, como todo bom marxista, dedicava um desprezo solene, tachando-a de "burguesa". E isso mesmo após a queda dos regimes soviéticos, ao contrário do que está dito acima. Preocupação com a paz e com o pluralismo? Qual pluralismo existia na finada URSS? Existe tal coisa na moribunda ditadura cubana (que Hobsbawn admirava)? Uma coisa é a contradição que é inerente a todos os homens. Outra, é a idiotice moral de justificar a morte de milhões de seres humanos em nome do que quer que seja. 

A Associação Nacional de História (ANPUH-Brasil) repudia veementemente o tratamento desrespeitoso, irresponsável e, sim, ideológico, deste cada vez mais desacreditado veículo de informação.

A tal ANPUH considera desrespeitoso e irresponsável (!?) chamar Hobsbawn, por sua posição esquerdista pró-URSS, de idiota moral. E investe contra o mensageiro e não a mensagem. Deixando de lado o ódio da esquerda brasileira ao "cada vez mais desacreditado veículo de informação" - ódio que se estende aliás a todo e qualquer órgão de imprensa que não esteja sob seu controle -, devo dizer que, a meu ver, a denominação de idiota moral para referir-se a Hobsbawn não lhe faz justiça. Isso porque, ao contrário do que afirma a revista, ele não era um idiota. Idiota é quem não sabe o que faz. E Hobsbawn sabia. Ao se negar a criticar a URSS e ao justificar o morticínio de milhões de pessoas em nome de "um mundo melhor", ele mostrou mais que idiotice: mostrou cumplicidade moral com o terror e com a barbárie. Se ele fosse um idiota, desses de babar na gravata, seria melhor para ele: seria um álibi. Portanto, a VEJA foi até boazinha com ele...

O tratamento desrespeitoso é dado logo no início do texto "historiador esquerdista", dito de forma pejorativa e completamente destituído de conteúdo. E é assim em toda a "análise" acerca do falecido historiador.

Em primeiro lugar, o tratamento de "historiador esquerdista" (na verdade, "comunista"), não é dado pela revista, mas por outro historiador eminente, o igualmente britânico e também recentemente falecido Tony Judt. Este, citado no texto da VEJA, advertira Hobsbawn em 2008 que, com sua insistência ideológica em tratar de forma benigna a ex-URSS, ele seria lembrado pela posteridade não como "o" historiador, mas como "o historiador marxista" (ou "comunista"). E, de fato, foi isso que Hobsbaw sempre foi, e jamais escondeu que fosse.

Nós, historiadores, sabemos que os homens são lembrados com suas contradições, seus erros e seus acertos. Seguramente Hobsbawm será, inclusive, criticado por muitos de nós. E defendido por outros tantos. E ainda existirão aqueles que o verão como exemplo de um tempo dotado de ambiguidades, de certezas e dúvidas que se entrelaçam. Como historiador e como cidadão do mundo. Talvez Veja, tão empobrecida em sua análise, imagine o mundo separado em coerências absolutas: o bem e o mal. E se assim for, poderá ser ela, Veja, lembrada como de fato é: medíocre, pequena e mal intencionada.

São Paulo, 05 de outubro de 2012

Diretoria da Associação Nacional de História

ANPUH-Brasil

Gestão 2011-2013

Sempre desconfiei de textos escritos na primeira pessoa do plural, ainda mais referentes a toda uma categoria profissional ("Nós, historiadores"). Como se todos os historiadores estivessem representados etc. Mas deixa pra lá. É curioso como, ao mesmo tempo em que afirmam, corretamente aliás, que "os homens são lembrados com suas contradições, seus erros e seus acertos", os autores do manifesto buscam isentar Hobsbawn de qualquer julgamento crítico. Como se ele, Hobsbawn, estivesse acima de qualquer análise que não fosse hagiográfica - em outras palavras: acima do bem e do mal. E isso ao mesmo tempo em que caem num relativismo fácil, negando a própria validade de conceitos como bem e mal, vistos como categorias absolutas, mais em termos teológicos do que históricos ou ideológicos. (Menos, claro, se for para atacar o "imperialismo ianque" ou a besta-fera do capitalismo, mas já desisti de tentar explicar para esse pessoal que o capitalismo não é um jogo de soma zero.) 

Basta fazer um pequeno exercício para desmontar essa falácia. Imaginem se um historiador se propusesse a escrever "a" História do século XX e que, ao fazê-lo, denunciasse acerbamente os crimes do comunismo mas evitasse, de propósito, qualquer menção ao nazi-fascismo. Seria chamado, no mínimo, de intelectualmente desonesto. Agora imaginem que esse mesmo historiador fizesse declarações nas quais buscasse justificar os crimes de Hitler e de Mussolini. Algum dos signatários do manifesto da ANPUH se oporia a que se criticasse tal historiador, no mínimo como cúmplice moral dos crimes do totalitarismo nazi-fascista? Quem, em vez disso, acusaria o crítico de não levar em conta as contradições e ambiguidades do historiador, considerando a condenação moral deste como uma visão "medíocre, pequena e mal-intencionada"?

Mas deixemos que o próprio Hobsbawn responda essa questão. No artigo da VEJA, do qual o manifesto dos "historiadores" é, supostamente, uma réplica, há o relato de um episódio que os autores da "resposta" estranhamente não citam. E que apenas aumenta minha certeza de que os devotos brasileiros de Hobsbawn realmente mal e mal conhecem o pensamento e a obra do autor. Eis o episódio, uma entrevista dada em 1994 por Hobsbawn ao jornalista da BBC Michael Ignatieff (conforme relatado pelo historiador britânico Robert Conquest, autor do clássico O Grande Terror):

Segundo o historiador, o Grande Terror de Stalin [mais de 20 milhões de mortos apenas na principal de três ondas, fora outros milhões de mortes fora dos Expurgos] teria valido a pena caso tivesse resultado na revolução mundial. Ignatieff replicou essa afirmação com a seguinte pergunta: “Então a morte de 15, 20 milhões de pessoas estaria justificada caso fizesse nascer o amanhã radiante?” Hobsbawm respondeu com uma só palavra: “Sim”.

Este era Hobsbawn. O verdadeiro Hobsbawn. Aquele que em nenhum momento aparece no manifesto da ANPUH.

Não pensem vocês que não reconheço, na obra de Hobsbawn, qualidades, inclusive literárias. Entre suas obras, estão livros interessantes como A Era das Revoluções, A Era do Capital e a A Era dos Impérios (A Era dos Extremos, que trata do "breve século XX" [1914-1991], é o mais fraco da série, por razões ideológicas - Hobsbawn passa ao largo dos crimes do comunismo, como se tivessem sido uma nota de rodapé). Mesmo obras como Bandidos, se foram pioneiras em suas áreas de pesquisa, por enfocar temas até então relegados a um plano secundário pela historiografia tradicional, trazem consigo um forte ranço ideológico (no caso, a tese marxista do "banditismo social", que trata criminosos como "rebeldes primitivos" em luta contra uma ordem social injusta etc.).  Ele certamente foi um grande historiador e um intelectual importante, que não se rebaixava à condição de panfletário produtor de agitprop. Não era um agitador vulgar, como Noam Chomsky, ou um filósofo de quinta, como Slavoj Zízek. Mas, sinto dizer, ele foi, assim como estes, um idiota moral. A exemplo de intelectuais e figuras proeminentes da esquerda, como Jean-Paul Sartre, José Saramago e Gabriel García Márquez, que não quiseram ou não foram capazes de deixar suas preferências ideológicas e seus preconcentos anticapitalistas e antiamericanos fora de suas análises, Hobsbawn justificou o terror stalinista.  Flertou, para dizer o mínimo, com uma das faces do Mal. Talvez a pior de todas.


Hobsbawn foi um historiador inteligente, mas colocou a sua inteligência a serviço de um projeto totalitário que deixou mais de 100 milhões de mortos no século XX. E se recusou a fazer uma autocrítica consistente. Seu talento e capacidade acadêmica apenas aumentam sua culpa. E ainda há quem escreva manifestos defendendo (ou omitindo) essa sua atitude. Enfim, isso sim, uma visão pequena, medíocre e mal-intencionada. Coisa de idiotas.

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