segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A IGREJA CATÓLICA E O MARXISMO

   

sábado, 24 de agosto de 2013

Professores...


No debate da TV Futura com o intelectual católico Sidney Silveira, talento superior que mecereria adversários bem melhores, um sr. Ricardo Figueiredo de Castro, professor de História Contemporânea na UFRJ, deu um show de ignorância à altura do que é de se esperar da classe universitária hoje em dia, enquanto seu colega Paulo Domenech Onetto, professor de Filosofia Política na mesma instituição, preferiu caprichar na baixeza e na mendacidade como seria mais próprio de um ministro de Estado.
O primeiro, com aquele olhar de tranqüilidade soberana que dá a qualquer um os ares de uma tremenda autoridade científica, assegurou que “os conservadores de hoje em dia, como os do século XIX, tendem a pensar o processo histórico desde uma perspectiva rígida, formalista, que não aceita a mudança”. Sei o quanto é injusto, cruel e desumano exigir que um professor universitário de hoje em dia conheça alguma coisa, mas, se esse professor de História conhecesse ao menos a história da própria disciplina que leciona, saberia que o senso do tempo, da história e da mutabilidade foi introduzido no pensamento europeu por historiadores e intelectuais conservadores, em reação contra a idéia dos revolucionários de 1789 que, inspirados na física newtoniana, acreditavam numa sociedade moldada segundo os cânones universais e imutáveis da Razão. Os nomes de Georg W. F. Hegel, Edmund Burke, François-René de Chateaubriand, Leopold von Ranke e, mais tarde, os de Jacob Burckhardt e Hippolyte Taine, deveriam bastar – para quem os leu, é claro, o que não é absolutamente o caso – para eliminar qualquer dúvida a respeito.
Já entre os revolucionários, nem mesmo em Karl Marx aparece claramente o senso da “mudança como algo inerente ao processo histórico”, para usar os termos do prof. Figueiredo, já que a visão marxista da história é a de um processo predeterminado por leis tão imutáveis quanto as de Newton, caminhando de fatalidade em fatalidade até desembocar inexoravelmente no socialismo.
A elevação da “mudança” às alturas de mito abrangente e força universal soberana não aparece no pensamento ocidental moderno antes de Nietzsche -- aliás um discípulo de Jacob Burckhardt --, embora tenha tido alguns precursores nas fileiras do anarquismo e também em alguns obscuros representantes da intelectualidade revolucionária russa pré-marxista.
Confiante na sua devota ignorância histórica, o referido sentenciou ainda que os conservadores “tendem a exagerar o papel dos políticos de esquerda na condução do processo de transformação, como se este fosse gerido por pequenos grupos de intelectuais e não algo que faz parte da dinâmica da sociedade”. Ele deveria ter ensinado isso a Lênin, que zombava de todo “espontaneísmo”, como ele o chamava, e enfatizava mais que ninguém o papel da vanguarda revolucionária. Poderia também ter dado lições a Georg Lukács, para o qual a consciência-de-classe do proletariado não era sequer uma realidade presente, mas apenas uma possibilidade abstrata a ser concretizada pela ação da elite. Poderia também passar uns pitos em Antonio Gramsci, para o qual a força criadora da revolução está acima de tudo na elite intelectual. Ou então poderia escrever uma tese de que Lênin, Lukács e Gramsci foram conservadores.
É claro que na sociedade há processos de transformação espontâneos mesclados à ação planejada de grupos políticos. Já escrevi aqui mesmo que a distinção meticulosa desses dois fatores, bem como a análise das suas múltiplas relações e interfusões, é a chave de toda narrativa histórica decente. Mas quererá o prof. Figueiredo dizer que setenta milhões de chineses foram para o beleléu assim sem mais nem menos, por força da mera “dinâmica da sociedade”, sem que alguém no topo do governo ordenasse a sua extinção? Quer dizer que vinte milhões de russos foram morrer no Gulag levados por forças impessoais e anônimas e não por um decreto oficial? Quer dizer que trinta mil vítimas das Farc morreram porque estavam acidentalmente na direção de balas perdidas, e não porque a narcoguerrilha as matasse? Quer dizer que dezessete mil cubanos foram fuzilados por acidente e não por ordem direta de Fidel Castro e Che Guevara? Quer dizer que seis milhões de judeus pereceram no Holocausto por mera coincidência, sem que ninguém no governo alemão decidisse dar cabo deles? Quer ele ignorar que os acontecimentos de maior impacto desde o início do século XX não foram inocentes coincidências espontâneas, mas decisões fatais de elites governantes e grupos ativistas?
Pois já que ele acredita tanto no poder da mudança, deveria saber que a principal mudança histórica dos últimos cem anos foi a criação de meios técnicos de ação que aumentam formidavelmente o poder das elites governantes e dos grupos ativistas bem financiados, reduzindo a população a um estado de inermidade patética.
O professor também afirmou que “não vejo nenhuma animosidade contra os conservadores na universidade brasileira” e que “os comunistas nunca foram hegemônicos no PT”. Tsk, tsk, tsk.
Seu colega, o sr. Paulo Domenech Onetto, também tem algumas opiniões, mas não vêm ao caso. Na ânsia desesperada de dizer algo contra mim, ele afirmou, com ares de quem acreditava mesmo nisso, que tenho à minha volta um pelotão de guarda-costas eletrônicos, que barram todo acesso à minha pessoa na internet, para me proteger de debates. Não ocorreu à criatura que para fazer isso os referidos teriam de violar a minha correspondência e neste caso não seriam meus guarda-costas, e sim espiões. Interessa conhecer as opiniões de um difamador mentecapto incapaz de compreender as suas próprias invencionices?



Publicado no Diário do Comércio

domingo, 18 de agosto de 2013

Estudar antes de falar


Um sujeito é comunista não porque creia em tais ou quais coisas, mas porque ocupa um lugar numa organização que age como parte ou herdeira da tradição revolucionária comunista, com toda a pletora de variedades e contradições ideológicas aí contida.

O caminho mais curto para a destruição da democracia é fomentar o banditismo por meio da cultura e tentar controlá-lo, em seguida, pelo desarmamento civil.  A esquerda nacional tem trilhado coerentemente essa dupla via há pelo menos cinco décadas, e sempre soube perfeitamente qual seria o resultado: o caos social, seguido de endurecimento do regime se ela estiver no poder, de agitação insurrecional se estiver fora dele.
Essa estratégia é antiga, clássica, imutável, mas os pretextos com que se legitima conforme as conveniências do momento têm sido variados o bastante para desnortear a platéia, que se entrega a animadas e às vezes ferozes discussões sobre os pretextos mesmos e nunca atina com a unidade do projeto por trás deles. Às vezes, como acontece no Brasil, nem chega a perceber que entre as duas vias simultâneas existe alguma relação. Pessoas mentalmente covardes vendem a mãe para não correr o risco de ser rotuladas de “teóricas da conspiração”. Rebaixam-se ao ponto de defender de unhas e dentes a “teoria das puras coincidências”, segundo a qual as ações acontecem sem autores.
Imaginem então o medo que essa gente tem de reconhecer algo que no resto do mundo já é obviedade patente: que o comunismo não morreu em 1990, que está hoje mais forte que nunca, sobretudo na América Latina. Treze anos atrás, quando Jean-François Revel publicou seu último livro, “La Grande Parade”, ninguém na Europa ou nos EUA o contestou quanto a esse ponto, que no Brasil ainda é um segredo esotérico.
Há até quem negue que Dilma ou Lula sejam comunistas, mas faz isso porque não sabe exatamente o que é um comunista e, como em geral os liberais, imagina que é questão de ideais e ideologias. Na verdade, um sujeito é comunista não porque creia em tais ou quais coisas, mas porque ocupa um lugar numa organização que age como parte ou herdeira da tradição revolucionária comunista, com toda a pletora de variedades e contradições ideológicas aí contida. A unidade do movimento comunista, sobretudo desde Antonio Gramsci, da “New Left” americana e do remanejamento dos partidos comunistas após a dissolução da URSS, é muito mais de tipo estratégico do que ideológico. Na verdade, esse movimento, cuja extinção a queda da URSS parecia anunciar como iminente e inevitável, conseguiu prosperar e crescer formidavelmente desde o começo dos anos 90 só porque abdicou de toda autodefinição doutrinal homogênea e aprimorou a técnica de articular numa unidade de ação estratégica as mais variadas correntes e dissidências cuja convivência era impossível até então. Convicções, portanto, sinceras ou fingidas, não têm aí a mais mínima importância.
Para um sujeito falar com alguma propriedade sobre o movimento comunista, deve antes ter estudado as seguintes coisas:
(1) Os clássicos do marxismo: Marx, Engels, Lênin, Stálin, Mao Dzedong.
(2) Os filósofos marxistas mais importantes: Lukács, Korsch, Gramsci, Adorno, Horkheimer, Marcuse, Lefebvre, Althusser.
(3) “Main Currents of Marxism, de Leszek Kolakowski.
(4) Alguns bons livros de história e sociologia do movimento revolucionário em geral, como “Fire in the Minds of Men”, de James H. Billington, “The Pursuit of the Millenium”, de Norman Cohn, “The New Science of Politics”, de Eric Voegelin.
(5) Bons livros sobre a história dos regimes comunistas, escritos desde um ponto de vista não-apologético.
(6) Livros dos críticos mais célebres do marxismo, como Eugen von Böhm-Bawerk, Ludwig von Mises, Raymond Aron, Roger Scruton, Nicolai Berdiaev e tantos outros.
(7) Livros sobre estratégia e tática da tomada do poder pelos comunistas, sobre a atividade subterrânea do movimento comunista no Ocidente e principalmente sobre as “medidas ativas” (desinformação, agentes de influência), como os de Anatolyi Golitsyn, Christopher Andrew, John Earl Haynes, Ladislaw Bittman, Diana West.
(8) Depoimentos, no maior número possível, de ex-agentes ou militantes comunistas que contam a sua experiência a serviço do movimento ou de governos comunistas, como Arthur Koestler, Ian Valtin, Ion Mihai Pacepa, Whittaker Chambers, David Horowitz.
(9) Depoimentos de alto valor sobre a condição humana nas sociedades socialistas, como os de Guillermo Cabrera Infante, Vladimir Bukovski, Nadiejda Mandelstam, Alexander Soljenítsin, Richard Wurmbrand.
É um programa de leitura que pode ser cumprido em quatro ou cinco anos por um bom estudante. Não conheço, na direita ou na esquerda brasileiras, ninguém, absolutamente ninguém que o tenha cumprido. Há tanta gente neste país querendo dar palpite no assunto, quase sempre com ares de sapiência, e ninguém, ou praticamente ninguém, disposto a fazer o esforço necessário para dar alguma substância às suas palavras. Nenhum esquerdista honesto o fará sem abjurar da sua crença para sempre. Nenhum direitista, sem reconhecer que era um presunçoso, um bocó e, em muitos casos, um idiota útil – às vezes ainda mais útil e mais idiota do que a massa de manobra esquerdista.
A esquerda prospera na exploração da ignorância, própria e alheia. Onde quer que ela exerça a hegemonia, impera o mandamento de jamais ler as obras de adversários e críticos, mas espalhar versões deformadas e caricaturais das suas idéias e biografias, para que a juventude militante possa odiá-los na ilusão de conhecê-los. Universidades que professam dar cursos de marxismo capricham nesse ponto até o limite do controle mental puro e simples.
A direita, bem, a direita cultiva suas formas próprias de auto-ilusão, das quais já falei bastante neste mesmo jornal. Talvez volte ao assunto em outro artigo.



Publicado no Diário do Comércio.

Nas franjas do Black Bloc

15 de agosto de 2013 

Demétrio Magnoli

"Muitos dos jovens que estão usando essa estratégia da violência nas manifestações vieram das periferias brasileiras. Eles já são vítimas da violência cotidiana por parte do Estado e por isso os protestos violentos passam a fazer sentido para eles." Rafael Alcadipani da Silveira, autor do diagnóstico que equivale a uma celebração do vandalismo, não é um músico punk, mas um docente da FGV-SP. O seu (preconceituoso) raciocínio associa "violência" a "periferia" - como se esse sujeito abstrato (a "periferia") fosse portador de uma substância inescapável (a "violência"). Por meio do conhecido expediente de atribuir a um sujeito abstrato (a "periferia") as ideias, as vontades e os impulsos dele mesmo, Silveira oculta os sujeitos concretos que produzem um "sentido" para "protestos violentos". Tais sujeitos nada têm que ver com a "periferia": são acadêmicos-ativistas engajados na reativação de um projeto político que arruinou a vida de uma geração de jovens na Alemanha e na Itália.
No DNA humano estão inscritas as "pegadas" da evolução dos seres vivos. Nas obras de arte encontram-se os sinais de uma extensa cadeia de influências que as interligam à história da arte. Similarmente, pode-se identificar nos textos políticos uma genealogia doutrinária, que se manifesta em modelos argumentativos típicos e expressões estereotipadas. O professor da FGV menciona a "violência cotidiana por parte do Estado". Nas páginas eletrônicas dos Black Blocs pipoca a expressão "Estado policial". Bruno Torturra, o Mídia Ninja ligado a Marina Silva, definiu os Black Blocs como "uma estética" e defendeu a "ação direta", desde que "dirigida aos bancos". Pablo Ortellado, filósofo e ativista, elogiou a "ação simbólica" de destruição de uma agência bancária, que, interpretada "na interface da política com a arte", simularia a ruína do capitalismo. Eu já li essas coisas - e sei onde.
Tudo isso foi escrito na década de 1970 pelos intelectuais italianos que lideraram os grupos autonomistas Potere Operaio, Lotta Continua e Autonomia Operaia. Eles mencionavam as qualidades exemplares da "ação direta" e a eficiência da "violência simbólica". Toni Negri pregava a violência como ferramenta para defender os "espaços" criados pelas "ações de massa" e exaltava o "efeito terrível que qualquer comportamento subversivo, mesmo se isolado, causa sobre o sistema". Avançando um largo passo, Franco Piperno clamava pela "combinação" da "potência geométrica da Via Fani" (referência ao sequestro de Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas, em Roma, no 16 de março de 1978) "com a maravilhosa beleza do 12 de março" (alusão ao assassinato de um policial, em Turim, pelo grupo extremista Prima Linea, em 1977).
Depois do assassinato de Moro, Negri e Piperno foram processados e injustamente condenados a cumprir sentenças de prisão, que acabaram sendo revertidas. Intelectuais, de modo geral, não sujam as próprias mãos. Os líderes autonomistas não integravam as Brigadas Vermelhas ou a Prima Linea - e, portanto, não deram as ordens que resultaram em atos de terror. Eles apenas ensinaram a seus jovens seguidores, alguns dos quais viriam a militar nas organizações terroristas, que a violência é necessária, eficaz e bela. A responsabilidade deles não era criminal, mas política e moral, algo que jamais tiveram a decência de reconhecer.
Onde fica a fronteira entre a violência "simbólica" e a violência "real"? Na noite de 2 de abril de 1968 bombas incendiárias caseiras explodiram em duas lojas de departamentos de Frankfurt, que já estavam fechadas. A ação pioneira do grupo Baader-Meinhoff, inscrita "na interface da política com a arte", foi cuidadosamente planejada para não matar ninguém. Era a violência "só contra coisas", não "contra pessoas", na frase de Ortellado para justificar as ações dos Black Blocs. O primeiro cadáver do Baader-Meinhoff, um guarda penitenciário, surgiu na operação de resgate de Andreas Baader, em maio de 1970. Depois, vieram outros cadáveres, de chefes de polícia, juízes, promotores ou empresários. Tais personalidade seriam "símbolos" do "sistema" - isto é, segundo uma interpretação possível, "coisas", não "pessoas".
A tragédia alemã precedeu a tragédia italiana, mas não a evitou. No "Outono Alemão" de 1977, um jovem radical desiludido escreveu uma carta amarga, irônica, indagando sobre os critérios para decidir quem tinha mais responsabilidade pela opressão capitalista - e, portanto, deveria ser selecionado como alvo. "Por que essa política de personalidades? Não poderíamos sequestrar junto uma cozinheira? Não deveríamos pôr um foco maior nas cozinheiras?". Os nossos alegres teóricos dos Black Blocs aplaudem o incêndio "simbólico" de uma agência bancária, mas ainda não se pronunciaram sobre o valor artístico da vandalização de edifícios empresariais, shopping centers, delegacias, palácios de governo ou residências. Por que esse "foco" nos bancos?
Eugênio Bucci - ele também! - usou a palavrinha "estética" quando escreveu sobre a suposta novidade do "esporte radical e teatral de jogar coquetel molotov contra os escudos da tropa fardada". Não há, porém, novidade. Ortellado publicou um artigo sobre as fontes da "tática" dos Black Blocs, evidenciando suas conexões com os movimentos autonomistas de "ação direta" na Alemanha e na Itália dos anos 70 e 80, cujos destacamentos de choque servem de modelo aos nossos encapuzados. Ele não diz com clareza, mas as teses políticas que reativam o culto da manifestação violenta se originam precisamente de alguns dos acadêmicos-ativistas daquele tempo, hoje repaginados como mestres grisalhos do movimento antiglobalização.
Os Black Blocs anunciam um "badernaço nacional" para o 7 de Setembro. Mas o "badernaço" intelectual começou antes, na forma dessas piscadelas cúmplices para idiotas vestidos de preto que rebobinam um desastroso filme antigo.
* Demétrio Magnoli é sociólogo, doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@uol.com.b
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terça-feira, 6 de agosto de 2013

Seu professor ensinou que não se tomava banho na Idade Média???



"Do ponto de vista dos banhos e da limpeza do corpo, o Ocidente assistiu, nos séculos XV-XVIII, a uma regressão fantástica. Os banhos, longínqua herança de Roma, eram hábitos em toda a Europa Medieval. Banhos privados, mas também públicos muito numerosos, com as suas cabinas de vapor, suas banheiras e camas de repouso, ou grande piscinas e a promiscuidade dos corpos nus, homens e mulheres misturados. As pessoas encontravam-se lá tão naturalmente como na Igreja, e estes estabelecimentos balneários eram destinados a todas as classes a ponto de estarem submetidos a direitos senhoriais, tal como os moinhos, as forjas e a distribuição de bebidas. Quanto às casas abastadas, todas possuíam os seus quartos de banho na cave, constituídos por uma estufa e tinas, geralmente de madeira, com aduelas à maneira das pipas (...) A partir do século XVI, os banhos públicos começaram a escassear, quase desaparecem (...) pouco a pouco o banho torna-se uma medicação, já não um hábito de higiene".

Fernand Braudel. Civilização Material, Economia e Capitalismo. Séculos XV-XVIII. As Estruturas do Cotidiano: o possível e o impossível. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 296-301 (toda a passagem).

Obra com uma abundância de fontes, arquivos, etc. Algum professor já indicou em sala de aula, ministrou sua aula baseado em Braudel, colocou no programa da disciplina???

Mande seu professor estudar!

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Consultores iluminados


Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 15 de julho de 2013 
          

Pelo seu currículo de cientista político membro de não sei quantas associações e outras tantas comissões, o sr. Alberto Carlos Almeida é um típico representante da classe de consultores iluminados a que as nossas elites políticas e empresariais concedem atenção reverente e sólida remuneração. Tão típico que, em entrevista ao programa Marília Gabriela, ele mostrou mais uma vez que o exercício de tão altas funções, neste país, independe de qualquer domínio das matérias sobre as quais se opina.
 
Não digo que todos os seus pareceres sobre o que quer que seja ilustrem esse fenômeno. Não li, por exemplo, o seu livro A Cabeça do Brasileiro, que juram que é bom, coisa em que vou continuar acreditando sob palavra até que um exemplar dessa obra me caia nas mãos e mostre se ela é, ou não, capaz de se defender sem apoio externo.
 
Mas, quando um cidadão investido de autoridade científica, consultado em público nessa qualidade, emite sobre matéria grave uma opinião que ameaça lançar o descrédito sobre uma instituição milenar e todas as pessoas que a representam, espera-se que o faça, pelo menos, com algum senso de responsabilidade e conhecimento de causa. Se ele falha a esse dever elementar em circunstância tão exigente, não é demasiado supor que o fará mais ainda em assuntos de menor consequência, como, por exemplo, "a cabeça do brasileiro".
 
P erguntado pela entrevistadora sobre quais as causas do atraso brasileiro, e em especial do desprezo do nosso povo pela educação, o distinto não hesitou em lançar todas as culpas sobre um único suspeito: a Igreja Católica. E fez isso não no tom de quem arriscasse um palpite informal, mas de quem transmitisse a plateia uma certeza científica bem provada.
 
Sua tese, em resumidas contas, foi esta: a Igreja Católica, ao longo da História europeia, e também nas Américas desde a descoberta, só se ocupou da educação da elite, da aristocracia, deixando o povo na ignorância. Foi a Reforma protestante que inaugurou a educação popular, datando daí o progresso com que as nações assim beneficiadas sobrepujaram as suas concorrentes católicas. No Brasil em especial, os grandes malvados foram os jesuítas, que apenas  davam instrução às elites e nada para o povo.
 
O  sr. Almeida, com toda a evidência, jamais leu uma história da educação. Então eis aqui algumas coisinhas que ele teria a obrigação de saber para poder opinar a respeito:
1. Ao longo de toda a História medieval, a Igreja não educou aristocracia nenhuma. Os nobres, os barões, consideravam que só a guerra era atividade à sua altura, o estudo sendo bom apenas para as mulheres, os futuros padres e alguns empregados subalternos.
 
2. Desde o começo da Idade Média até épocas bastante avançadas para dentro da modernidade, as escolas elementares fundadas pela Igreja funcionavam ou nas catedrais, ou nos templos paroquiais, ou nos monastérios. O sr. Almeida acredita realmente que os nobres, abandonando seus palácios, iam frequentá-las, submetendo-se ao vexame de nivelar-se aos padrecos e escreventes?
 
3. Quanto às universidades, elas não formavam os nobres e sim médicos, advogados, professores, funcionários: eram uma via de ascensão social para quem vinha de baixo. A aristocracia reinante só passou a se interessar por elas quando se tornaram centros de uma influência política independente. Começou então, entre os governos monárquicos e a Igreja, a disputa pelo domínio sobre a massa universitária. Como a Igreja levou a melhor, o que se seguiu foi um dos fenômenos mais característicos da modernidade: a criação de uma nova  intelectualidade composta quase que inteiramente de nobres, alheia e não raro hostil às universidades. Os nomes de Descartes, Bacon, Montaigne e Newton representam-na exemplarmente, assim como a criação da Royal Society. A história real é exatamente inversa à história imaginária do sr. Almeida.
 
4.  Em meados do século 18, decorridos nada menos do que dois séculos da Reforma protestante, a França católica ainda era o país mais próspero e culto da Europa, enquanto a Alemanha, berço de Lutero, jazia no atraso econômico e cultural mais abjeto, ao ponto de que o alemão não tinha sequer se consolidado como língua de alta cultura (os intelectuais escreviam em francês ou latim). Ainda em meados do século 19, foi em Paris que pela primeira vez um governante alemão, Otto von Bismarck, percebeu que era importante para cada nação ter uma classe média educada, modelo que ele então procurou implantar no seu país, apenas com signo religioso invertido, perseguindo os católicos e fomentando a educação protestante.
 
5.  Porém, o mais bonito na entrevista foi o que o sr. Almeida disse dos jesuítas. Quem quer que tenha estudado um pouquinho a história deles sabe que seu principal esforço foi educar índios, que estavam no fundo do poço social. Nas Missões, os nativos brasileiros receberam educação muito superior àquela de que dispunha, nas capitais, uma classe alta notabilizada pela mais acachapante indolência intelectual e que, quando desejava educar seus filhos, os enviava à Europa e não aos jesuítas.
 
6.  Desde a Independência até o advento da República, a Igreja esteve proibida de abrir escolas, de modo que a população urbana em expansão se viu cada vez mais privada de uma instrução comparável, pelo menos, àquela que os índios haviam recebido nas Missões. A incultura popular no Brasil não resultou da educação católica, mas do estrangulamento dela ao longo de quase um século.
 
O sr. Almeida jura que o problema do Brasil é a educação. É sim. A começar pela dele próprio. E pela dos consultores iluminados em geral.