sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

HOBSBAWN E A ERA DOS IDIOTAS

sábado, outubro 13, 2012

Está circulando na internet um troço curioso. Trata-se de um texto-manifesto, assinado por uma certa ANPUH (Associação Nacional de Professores de História), da qual eu, apesar de graduado em História, nunca tinha ouvido falar - e da qual, pelo que segue, orgulho-me de não ser sócio.

É uma resposta (ou deveria ser) ao obituário publicado na revista VEJA do historiador inglês Eric Hobsbawn, falecido no dia 1 de outubro aos 95 anos de idade. Os senhores da tal ANPUH se mostram indignados pelo que consideram um tratamento desrespeitoso dado pela revista ao historiador marxista inglês, uma das vacas sagradas da intelligentisia esquerdista mundial e, por tabela, brasileira - o que significa: um autor obrigatório nas universidades brasileiras, sobretudo para quem não conhece outro autor e acredita que a historiografia marxista é a única existente.

O texto é um típico produto coletivo de mentes que só sabem pensar coletivamente (ou seja: que não sabem pensar). Tanto que seus autores, na ânsia de darem uma "resposta" a quem teve a ousadia de criticar um de seus ídolos (um crime, enfim, de lesa-santidade), parecem esquecer-se de fatos básicos, fundamentais. O que apenas reforça minha convicção de que os esquerdistas são guiados por um misto de cegueira voluntária e amnésia. E por nenhum senso do ridículo.

Fiz questão de transcrever o texto na íntegra. Vai em vermelho. Meus comentários vão em preto.  

ANPUH- RESPOSTA À REVISTA VEJA

09/10/2012

Eric Hobsbawm: um dos maiores intelectuais do século XX

Na última segunda-feira, dia 1 de outubro, faleceu o historiador inglês Eric Hobsbawm. Intelectual marxista, foi responsável por vasta obra a respeito da formação do capitalismo, do nascimento da classe operária, das culturas do mundo contemporâneo, bem como das perspectivas para o pensamento de esquerda no século XXI. Hobsbawm, com uma obra dotada de rigor, criatividade e profundo conhecimento empírico dos temas que tratava, formou gerações de intelectuais.

Não se discute que Hobsbawn foi um historiador de talento, dotado de inteligência. Falo sobre isso depois. Tampouco está em questão sua influência sobre gerações de intelectuais. O debate é outro, como se verá adiante.

Ao lado de E. P. Thompson e Christopher Hill liderou a geração de historiadores marxistas ingleses que superaram o doutrinarismo e a ortodoxia dominantes quando do apogeu do stalinismo.

Nem tanto. Hobsbawn, se procurou distanciar-se do stalinismo, depois da denúncia dos crimes de Stálin feita por Kruschev em 1956, não teve a coragem e a ousadia de abandonar o barco do comunismo nos anos seguintes. Pelo contrário: até intensificou sua militância comunista, recusando-se a criticar abertamente a URSS e justificando os milhões de assassinatos de Stálin, como veremos em seguida. Ele sempre se manteve no campo marxista, dando "apoio crítico" ao Kremlin e considerando os EUA "a maior ameaça à humanidade". Nos últimos tempos, não cansava de elogiar Lula como um exemplo de governante marxista.

Deu voz aos homens e mulheres que sequer sabiam escrever. Que sequer imaginavam que, em suas greves, motins ou mesmo festas que organizavam, estavam a fazer História. Entendeu assim, o cotidiano e as estratégias de vida daqueles milhares que viveram as agruras do desenvolvimento capitalista.

Para começar, a função do historiador, como a de qualquer intelectual, não é "dar voz aos excluídos", ou, como está acima, "aos homens e mulheres que sequer sabiam escrever". Ele pode até fazer isso, mas como militante político, não como um investigador, que deve ter como único compromisso a realidade dos fatos. E a realidade da História é que as "agruras do desenvolvimento do capitalismo", ao contrário do que diz o texto, levaram à melhoria das condições gerais de vida dos trabalhadores em todos os países capitalistas europeus, conforme demonstraram, com dados e números inquestionáveis, estudiosos sérios como Ludwig von Mises (ver o seu As Seis Lições, se quiserem tirar a prova).

Mas Hobsbawm não foi apenas um "acadêmico", no sentido de reduzir sua ação aos limites da sala de aula ou da pesquisa documental. Fiel à tradição do "intelectual" como divulgador de opiniões, desde Émile Zola, Hobsbawm defendeu teses, assinou manifestos e escolheu um lado. Empenhou-se desta forma por um mundo que considerava mais justo, mais democrático e mais humano.

Aqui há uma falsidade disfarçada de verdade biográfica: Hobsbawn foi sim, além de historiador, um militante - ou um "divulgador de opiniões". Mas de maneira nenhuma essas se enquadram numa perspectiva fiel à tradição intelectual de autores como Émile Zola - Hobsbawn era comunista, Zola era um liberal e um democrata, um defensor da tolerância, famoso pela defesa do capitão Dreyfus no final do século XIX. Aliás, Hobsbawn, judeu como Dreyfus, assinou manifestos e participou de passeatas a favor do nacionalismo palestino (na época em que este sequer reconhecia o direito de Israel à existência). Aproximou-se, assim, portanto, muito mais dos detratores antissemitas de Dreyfus do que de Zola e outros paladinos da liberdade de imprensa. Algo, aliás, inexistente na defunta URSS, que Hobsbawn sempre tratou com simpatia em seus livros, como um paradigma daquilo que ele considerava um mundo "justo, democrático e mais humano"... Nada mais longe da verdade.

Claro está que, autor de obra tão diversa, nem sempre se concordará com suas afirmações, suas teses ou perspectivas de futuro. Esse é o desiderato de todo homem formulador de ideias. Como disse Hegel, a importância de um homem deve ser medida pela importância por ele adquirida no tempo em que viveu. E não há duvidas que, eivado de contradições, Hobsbawm é um dos homens mais importantes do século XX.

Deixando de lado o português arrevesado - isso de escrever "desiderato"... -, a frase de Hegel, no contexto em que está colocada, não significa rigorosamente nada: Napoleão, Hitler, Lênin e Stálin foram importantes no tempo em que viveram, e isso não acrescenta ou retira absolutamente nada do significado de suas ações. O que está em questão não é a importância de Hobsbawn - ele foi, sim, um historiador importante -, mas o valor de suas idéias. Ou, melhor dizendo: a moralidade delas.

Eis que, no entanto, a Revista Veja reduz o historiador à condição de "idiota moral" (cf. o texto "A imperdoável cegueira ideológica da Hobsbawm", publicado em www.veja.abril.com.br). Trata-se de um julgamento barato e despropositado a respeito de um dos maiores intelectuais do século XX.

Aqui, finalmente, entramos na questão principal. Vejamos quão "barato" e "despropositado" é o julgamento da revista sobre Hobsbawn.

Veja desconsidera a contradição que é inerente aos homens. E se esquece do compromisso de Hobsbawm com a democracia, inclusive quando da queda dos regimes soviéticos, de sua preocupação com a paz e com o pluralismo.

Pelo menos o texto reconhece que Hobsbawn tinha contradições... Mas somente para, logo em seguida, incorrer na maior das contradições, ao afirmar que o marxista Hobsbawn tinha uma compromisso com a democracia (!). Ora, de que democracia os autores do manifesto estão falando? Se é das "democracias populares" do Leste Europeu ou da ex-URSS, então acertaram em cheio. Mas não da democracia liberal, da democracia tal qual a conhecemos, com alternância de poder, eleições livres e liberdade de associação e de expressão, a qual Hobsbawn, como todo bom marxista, dedicava um desprezo solene, tachando-a de "burguesa". E isso mesmo após a queda dos regimes soviéticos, ao contrário do que está dito acima. Preocupação com a paz e com o pluralismo? Qual pluralismo existia na finada URSS? Existe tal coisa na moribunda ditadura cubana (que Hobsbawn admirava)? Uma coisa é a contradição que é inerente a todos os homens. Outra, é a idiotice moral de justificar a morte de milhões de seres humanos em nome do que quer que seja. 

A Associação Nacional de História (ANPUH-Brasil) repudia veementemente o tratamento desrespeitoso, irresponsável e, sim, ideológico, deste cada vez mais desacreditado veículo de informação.

A tal ANPUH considera desrespeitoso e irresponsável (!?) chamar Hobsbawn, por sua posição esquerdista pró-URSS, de idiota moral. E investe contra o mensageiro e não a mensagem. Deixando de lado o ódio da esquerda brasileira ao "cada vez mais desacreditado veículo de informação" - ódio que se estende aliás a todo e qualquer órgão de imprensa que não esteja sob seu controle -, devo dizer que, a meu ver, a denominação de idiota moral para referir-se a Hobsbawn não lhe faz justiça. Isso porque, ao contrário do que afirma a revista, ele não era um idiota. Idiota é quem não sabe o que faz. E Hobsbawn sabia. Ao se negar a criticar a URSS e ao justificar o morticínio de milhões de pessoas em nome de "um mundo melhor", ele mostrou mais que idiotice: mostrou cumplicidade moral com o terror e com a barbárie. Se ele fosse um idiota, desses de babar na gravata, seria melhor para ele: seria um álibi. Portanto, a VEJA foi até boazinha com ele...

O tratamento desrespeitoso é dado logo no início do texto "historiador esquerdista", dito de forma pejorativa e completamente destituído de conteúdo. E é assim em toda a "análise" acerca do falecido historiador.

Em primeiro lugar, o tratamento de "historiador esquerdista" (na verdade, "comunista"), não é dado pela revista, mas por outro historiador eminente, o igualmente britânico e também recentemente falecido Tony Judt. Este, citado no texto da VEJA, advertira Hobsbawn em 2008 que, com sua insistência ideológica em tratar de forma benigna a ex-URSS, ele seria lembrado pela posteridade não como "o" historiador, mas como "o historiador marxista" (ou "comunista"). E, de fato, foi isso que Hobsbaw sempre foi, e jamais escondeu que fosse.

Nós, historiadores, sabemos que os homens são lembrados com suas contradições, seus erros e seus acertos. Seguramente Hobsbawm será, inclusive, criticado por muitos de nós. E defendido por outros tantos. E ainda existirão aqueles que o verão como exemplo de um tempo dotado de ambiguidades, de certezas e dúvidas que se entrelaçam. Como historiador e como cidadão do mundo. Talvez Veja, tão empobrecida em sua análise, imagine o mundo separado em coerências absolutas: o bem e o mal. E se assim for, poderá ser ela, Veja, lembrada como de fato é: medíocre, pequena e mal intencionada.

São Paulo, 05 de outubro de 2012

Diretoria da Associação Nacional de História

ANPUH-Brasil

Gestão 2011-2013

Sempre desconfiei de textos escritos na primeira pessoa do plural, ainda mais referentes a toda uma categoria profissional ("Nós, historiadores"). Como se todos os historiadores estivessem representados etc. Mas deixa pra lá. É curioso como, ao mesmo tempo em que afirmam, corretamente aliás, que "os homens são lembrados com suas contradições, seus erros e seus acertos", os autores do manifesto buscam isentar Hobsbawn de qualquer julgamento crítico. Como se ele, Hobsbawn, estivesse acima de qualquer análise que não fosse hagiográfica - em outras palavras: acima do bem e do mal. E isso ao mesmo tempo em que caem num relativismo fácil, negando a própria validade de conceitos como bem e mal, vistos como categorias absolutas, mais em termos teológicos do que históricos ou ideológicos. (Menos, claro, se for para atacar o "imperialismo ianque" ou a besta-fera do capitalismo, mas já desisti de tentar explicar para esse pessoal que o capitalismo não é um jogo de soma zero.) 

Basta fazer um pequeno exercício para desmontar essa falácia. Imaginem se um historiador se propusesse a escrever "a" História do século XX e que, ao fazê-lo, denunciasse acerbamente os crimes do comunismo mas evitasse, de propósito, qualquer menção ao nazi-fascismo. Seria chamado, no mínimo, de intelectualmente desonesto. Agora imaginem que esse mesmo historiador fizesse declarações nas quais buscasse justificar os crimes de Hitler e de Mussolini. Algum dos signatários do manifesto da ANPUH se oporia a que se criticasse tal historiador, no mínimo como cúmplice moral dos crimes do totalitarismo nazi-fascista? Quem, em vez disso, acusaria o crítico de não levar em conta as contradições e ambiguidades do historiador, considerando a condenação moral deste como uma visão "medíocre, pequena e mal-intencionada"?

Mas deixemos que o próprio Hobsbawn responda essa questão. No artigo da VEJA, do qual o manifesto dos "historiadores" é, supostamente, uma réplica, há o relato de um episódio que os autores da "resposta" estranhamente não citam. E que apenas aumenta minha certeza de que os devotos brasileiros de Hobsbawn realmente mal e mal conhecem o pensamento e a obra do autor. Eis o episódio, uma entrevista dada em 1994 por Hobsbawn ao jornalista da BBC Michael Ignatieff (conforme relatado pelo historiador britânico Robert Conquest, autor do clássico O Grande Terror):

Segundo o historiador, o Grande Terror de Stalin [mais de 20 milhões de mortos apenas na principal de três ondas, fora outros milhões de mortes fora dos Expurgos] teria valido a pena caso tivesse resultado na revolução mundial. Ignatieff replicou essa afirmação com a seguinte pergunta: “Então a morte de 15, 20 milhões de pessoas estaria justificada caso fizesse nascer o amanhã radiante?” Hobsbawm respondeu com uma só palavra: “Sim”.

Este era Hobsbawn. O verdadeiro Hobsbawn. Aquele que em nenhum momento aparece no manifesto da ANPUH.

Não pensem vocês que não reconheço, na obra de Hobsbawn, qualidades, inclusive literárias. Entre suas obras, estão livros interessantes como A Era das Revoluções, A Era do Capital e a A Era dos Impérios (A Era dos Extremos, que trata do "breve século XX" [1914-1991], é o mais fraco da série, por razões ideológicas - Hobsbawn passa ao largo dos crimes do comunismo, como se tivessem sido uma nota de rodapé). Mesmo obras como Bandidos, se foram pioneiras em suas áreas de pesquisa, por enfocar temas até então relegados a um plano secundário pela historiografia tradicional, trazem consigo um forte ranço ideológico (no caso, a tese marxista do "banditismo social", que trata criminosos como "rebeldes primitivos" em luta contra uma ordem social injusta etc.).  Ele certamente foi um grande historiador e um intelectual importante, que não se rebaixava à condição de panfletário produtor de agitprop. Não era um agitador vulgar, como Noam Chomsky, ou um filósofo de quinta, como Slavoj Zízek. Mas, sinto dizer, ele foi, assim como estes, um idiota moral. A exemplo de intelectuais e figuras proeminentes da esquerda, como Jean-Paul Sartre, José Saramago e Gabriel García Márquez, que não quiseram ou não foram capazes de deixar suas preferências ideológicas e seus preconcentos anticapitalistas e antiamericanos fora de suas análises, Hobsbawn justificou o terror stalinista.  Flertou, para dizer o mínimo, com uma das faces do Mal. Talvez a pior de todas.


Hobsbawn foi um historiador inteligente, mas colocou a sua inteligência a serviço de um projeto totalitário que deixou mais de 100 milhões de mortos no século XX. E se recusou a fazer uma autocrítica consistente. Seu talento e capacidade acadêmica apenas aumentam sua culpa. E ainda há quem escreva manifestos defendendo (ou omitindo) essa sua atitude. Enfim, isso sim, uma visão pequena, medíocre e mal-intencionada. Coisa de idiotas.

HOBSBAWN E A ERA DOS IDIOTAS

sábado, outubro 13, 2012


Está circulando na internet um troço curioso. Trata-se de um texto-manifesto, assinado por uma certa ANPUH (Associação Nacional de Professores de História), da qual eu, apesar de graduado em História, nunca tinha ouvido falar - e da qual, pelo que segue, orgulho-me de não ser sócio.

É uma resposta (ou deveria ser) ao obituário publicado na revista VEJA do historiador inglês Eric Hobsbawn, falecido no dia 1 de outubro aos 95 anos de idade. Os senhores da tal ANPUH se mostram indignados pelo que consideram um tratamento desrespeitoso dado pela revista ao historiador marxista inglês, uma das vacas sagradas da intelligentisia esquerdista mundial e, por tabela, brasileira - o que significa: um autor obrigatório nas universidades brasileiras, sobretudo para quem não conhece outro autor e acredita que a historiografia marxista é a única existente.

O texto é um típico produto coletivo de mentes que só sabem pensar coletivamente (ou seja: que não sabem pensar). Tanto que seus autores, na ânsia de darem uma "resposta" a quem teve a ousadia de criticar um de seus ídolos (um crime, enfim, de lesa-santidade), parecem esquecer-se de fatos básicos, fundamentais. O que apenas reforça minha convicção de que os esquerdistas são guiados por um misto de cegueira voluntária e amnésia. E por nenhum senso do ridículo.

Fiz questão de transcrever o texto na íntegra. Vai em vermelho. Meus comentários vão em preto.  

ANPUH- RESPOSTA À REVISTA VEJA

09/10/2012

Eric Hobsbawm: um dos maiores intelectuais do século XX

Na última segunda-feira, dia 1 de outubro, faleceu o historiador inglês Eric Hobsbawm. Intelectual marxista, foi responsável por vasta obra a respeito da formação do capitalismo, do nascimento da classe operária, das culturas do mundo contemporâneo, bem como das perspectivas para o pensamento de esquerda no século XXI. Hobsbawm, com uma obra dotada de rigor, criatividade e profundo conhecimento empírico dos temas que tratava, formou gerações de intelectuais.

Não se discute que Hobsbawn foi um historiador de talento, dotado de inteligência. Falo sobre isso depois. Tampouco está em questão sua influência sobre gerações de intelectuais. O debate é outro, como se verá adiante.

Ao lado de E. P. Thompson e Christopher Hill liderou a geração de historiadores marxistas ingleses que superaram o doutrinarismo e a ortodoxia dominantes quando do apogeu do stalinismo.

Nem tanto. Hobsbawn, se procurou distanciar-se do stalinismo, depois da denúncia dos crimes de Stálin feita por Kruschev em 1956, não teve a coragem e a ousadia de abandonar o barco do comunismo nos anos seguintes. Pelo contrário: até intensificou sua militância comunista, recusando-se a criticar abertamente a URSS e justificando os milhões de assassinatos de Stálin, como veremos em seguida. Ele sempre se manteve no campo marxista, dando "apoio crítico" ao Kremlin e considerando os EUA "a maior ameaça à humanidade". Nos últimos tempos, não cansava de elogiar Lula como um exemplo de governante marxista.

Deu voz aos homens e mulheres que sequer sabiam escrever. Que sequer imaginavam que, em suas greves, motins ou mesmo festas que organizavam, estavam a fazer História. Entendeu assim, o cotidiano e as estratégias de vida daqueles milhares que viveram as agruras do desenvolvimento capitalista.

Para começar, a função do historiador, como a de qualquer intelectual, não é "dar voz aos excluídos", ou, como está acima, "aos homens e mulheres que sequer sabiam escrever". Ele pode até fazer isso, mas como militante político, não como um investigador, que deve ter como único compromisso a realidade dos fatos. E a realidade da História é que as "agruras do desenvolvimento do capitalismo", ao contrário do que diz o texto, levaram à melhoria das condições gerais de vida dos trabalhadores em todos os países capitalistas europeus, conforme demonstraram, com dados e números inquestionáveis, estudiosos sérios como Ludwig von Mises (ver o seu As Seis Lições, se quiserem tirar a prova).

Mas Hobsbawm não foi apenas um "acadêmico", no sentido de reduzir sua ação aos limites da sala de aula ou da pesquisa documental. Fiel à tradição do "intelectual" como divulgador de opiniões, desde Émile Zola, Hobsbawm defendeu teses, assinou manifestos e escolheu um lado. Empenhou-se desta forma por um mundo que considerava mais justo, mais democrático e mais humano.

Aqui há uma falsidade disfarçada de verdade biográfica: Hobsbawn foi sim, além de historiador, um militante - ou um "divulgador de opiniões". Mas de maneira nenhuma essas se enquadram numa perspectiva fiel à tradição intelectual de autores como Émile Zola - Hobsbawn era comunista, Zola era um liberal e um democrata, um defensor da tolerância, famoso pela defesa do capitão Dreyfus no final do século XIX. Aliás, Hobsbawn, judeu como Dreyfus, assinou manifestos e participou de passeatas a favor do nacionalismo palestino (na época em que este sequer reconhecia o direito de Israel à existência). Aproximou-se, assim, portanto, muito mais dos detratores antissemitas de Dreyfus do que de Zola e outros paladinos da liberdade de imprensa. Algo, aliás, inexistente na defunta URSS, que Hobsbawn sempre tratou com simpatia em seus livros, como um paradigma daquilo que ele considerava um mundo "justo, democrático e mais humano"... Nada mais longe da verdade.

Claro está que, autor de obra tão diversa, nem sempre se concordará com suas afirmações, suas teses ou perspectivas de futuro. Esse é o desiderato de todo homem formulador de ideias. Como disse Hegel, a importância de um homem deve ser medida pela importância por ele adquirida no tempo em que viveu. E não há duvidas que, eivado de contradições, Hobsbawm é um dos homens mais importantes do século XX.

Deixando de lado o português arrevesado - isso de escrever "desiderato"... -, a frase de Hegel, no contexto em que está colocada, não significa rigorosamente nada: Napoleão, Hitler, Lênin e Stálin foram importantes no tempo em que viveram, e isso não acrescenta ou retira absolutamente nada do significado de suas ações. O que está em questão não é a importância de Hobsbawn - ele foi, sim, um historiador importante -, mas o valor de suas idéias. Ou, melhor dizendo: a moralidade delas.

Eis que, no entanto, a Revista Veja reduz o historiador à condição de "idiota moral" (cf. o texto "A imperdoável cegueira ideológica da Hobsbawm", publicado em www.veja.abril.com.br). Trata-se de um julgamento barato e despropositado a respeito de um dos maiores intelectuais do século XX.

Aqui, finalmente, entramos na questão principal. Vejamos quão "barato" e "despropositado" é o julgamento da revista sobre Hobsbawn.

Veja desconsidera a contradição que é inerente aos homens. E se esquece do compromisso de Hobsbawm com a democracia, inclusive quando da queda dos regimes soviéticos, de sua preocupação com a paz e com o pluralismo.

Pelo menos o texto reconhece que Hobsbawn tinha contradições... Mas somente para, logo em seguida, incorrer na maior das contradições, ao afirmar que o marxista Hobsbawn tinha uma compromisso com a democracia (!). Ora, de que democracia os autores do manifesto estão falando? Se é das "democracias populares" do Leste Europeu ou da ex-URSS, então acertaram em cheio. Mas não da democracia liberal, da democracia tal qual a conhecemos, com alternância de poder, eleições livres e liberdade de associação e de expressão, a qual Hobsbawn, como todo bom marxista, dedicava um desprezo solene, tachando-a de "burguesa". E isso mesmo após a queda dos regimes soviéticos, ao contrário do que está dito acima. Preocupação com a paz e com o pluralismo? Qual pluralismo existia na finada URSS? Existe tal coisa na moribunda ditadura cubana (que Hobsbawn admirava)? Uma coisa é a contradição que é inerente a todos os homens. Outra, é a idiotice moral de justificar a morte de milhões de seres humanos em nome do que quer que seja. 

A Associação Nacional de História (ANPUH-Brasil) repudia veementemente o tratamento desrespeitoso, irresponsável e, sim, ideológico, deste cada vez mais desacreditado veículo de informação.

A tal ANPUH considera desrespeitoso e irresponsável (!?) chamar Hobsbawn, por sua posição esquerdista pró-URSS, de idiota moral. E investe contra o mensageiro e não a mensagem. Deixando de lado o ódio da esquerda brasileira ao "cada vez mais desacreditado veículo de informação" - ódio que se estende aliás a todo e qualquer órgão de imprensa que não esteja sob seu controle -, devo dizer que, a meu ver, a denominação de idiota moral para referir-se a Hobsbawn não lhe faz justiça. Isso porque, ao contrário do que afirma a revista, ele não era um idiota. Idiota é quem não sabe o que faz. E Hobsbawn sabia. Ao se negar a criticar a URSS e ao justificar o morticínio de milhões de pessoas em nome de "um mundo melhor", ele mostrou mais que idiotice: mostrou cumplicidade moral com o terror e com a barbárie. Se ele fosse um idiota, desses de babar na gravata, seria melhor para ele: seria um álibi. Portanto, a VEJA foi até boazinha com ele...

O tratamento desrespeitoso é dado logo no início do texto "historiador esquerdista", dito de forma pejorativa e completamente destituído de conteúdo. E é assim em toda a "análise" acerca do falecido historiador.

Em primeiro lugar, o tratamento de "historiador esquerdista" (na verdade, "comunista"), não é dado pela revista, mas por outro historiador eminente, o igualmente britânico e também recentemente falecido Tony Judt. Este, citado no texto da VEJA, advertira Hobsbawn em 2008 que, com sua insistência ideológica em tratar de forma benigna a ex-URSS, ele seria lembrado pela posteridade não como "o" historiador, mas como "o historiador marxista" (ou "comunista"). E, de fato, foi isso que Hobsbaw sempre foi, e jamais escondeu que fosse.

Nós, historiadores, sabemos que os homens são lembrados com suas contradições, seus erros e seus acertos. Seguramente Hobsbawm será, inclusive, criticado por muitos de nós. E defendido por outros tantos. E ainda existirão aqueles que o verão como exemplo de um tempo dotado de ambiguidades, de certezas e dúvidas que se entrelaçam. Como historiador e como cidadão do mundo. Talvez Veja, tão empobrecida em sua análise, imagine o mundo separado em coerências absolutas: o bem e o mal. E se assim for, poderá ser ela, Veja, lembrada como de fato é: medíocre, pequena e mal intencionada.

São Paulo, 05 de outubro de 2012

Diretoria da Associação Nacional de História

ANPUH-Brasil

Gestão 2011-2013

Sempre desconfiei de textos escritos na primeira pessoa do plural, ainda mais referentes a toda uma categoria profissional ("Nós, historiadores"). Como se todos os historiadores estivessem representados etc. Mas deixa pra lá. É curioso como, ao mesmo tempo em que afirmam, corretamente aliás, que "os homens são lembrados com suas contradições, seus erros e seus acertos", os autores do manifesto buscam isentar Hobsbawn de qualquer julgamento crítico. Como se ele, Hobsbawn, estivesse acima de qualquer análise que não fosse hagiográfica - em outras palavras: acima do bem e do mal. E isso ao mesmo tempo em que caem num relativismo fácil, negando a própria validade de conceitos como bem e mal, vistos como categorias absolutas, mais em termos teológicos do que históricos ou ideológicos. (Menos, claro, se for para atacar o "imperialismo ianque" ou a besta-fera do capitalismo, mas já desisti de tentar explicar para esse pessoal que o capitalismo não é um jogo de soma zero.) 

Basta fazer um pequeno exercício para desmontar essa falácia. Imaginem se um historiador se propusesse a escrever "a" História do século XX e que, ao fazê-lo, denunciasse acerbamente os crimes do comunismo mas evitasse, de propósito, qualquer menção ao nazi-fascismo. Seria chamado, no mínimo, de intelectualmente desonesto. Agora imaginem que esse mesmo historiador fizesse declarações nas quais buscasse justificar os crimes de Hitler e de Mussolini. Algum dos signatários do manifesto da ANPUH se oporia a que se criticasse tal historiador, no mínimo como cúmplice moral dos crimes do totalitarismo nazi-fascista? Quem, em vez disso, acusaria o crítico de não levar em conta as contradições e ambiguidades do historiador, considerando a condenação moral deste como uma visão "medíocre, pequena e mal-intencionada"?

Mas deixemos que o próprio Hobsbawn responda essa questão. No artigo da VEJA, do qual o manifesto dos "historiadores" é, supostamente, uma réplica, há o relato de um episódio que os autores da "resposta" estranhamente não citam. E que apenas aumenta minha certeza de que os devotos brasileiros de Hobsbawn realmente mal e mal conhecem o pensamento e a obra do autor. Eis o episódio, uma entrevista dada em 1994 por Hobsbawn ao jornalista da BBC Michael Ignatieff (conforme relatado pelo historiador britânico Robert Conquest, autor do clássico O Grande Terror):

Segundo o historiador, o Grande Terror de Stalin [mais de 20 milhões de mortos apenas na principal de três ondas, fora outros milhões de mortes fora dos Expurgos] teria valido a pena caso tivesse resultado na revolução mundial. Ignatieff replicou essa afirmação com a seguinte pergunta: “Então a morte de 15, 20 milhões de pessoas estaria justificada caso fizesse nascer o amanhã radiante?” Hobsbawm respondeu com uma só palavra: “Sim”.

Este era Hobsbawn. O verdadeiro Hobsbawn. Aquele que em nenhum momento aparece no manifesto da ANPUH.

Não pensem vocês que não reconheço, na obra de Hobsbawn, qualidades, inclusive literárias. Entre suas obras, estão livros interessantes como A Era das Revoluções, A Era do Capital e a A Era dos Impérios (A Era dos Extremos, que trata do "breve século XX" [1914-1991], é o mais fraco da série, por razões ideológicas - Hobsbawn passa ao largo dos crimes do comunismo, como se tivessem sido uma nota de rodapé). Mesmo obras como Bandidos, se foram pioneiras em suas áreas de pesquisa, por enfocar temas até então relegados a um plano secundário pela historiografia tradicional, trazem consigo um forte ranço ideológico (no caso, a tese marxista do "banditismo social", que trata criminosos como "rebeldes primitivos" em luta contra uma ordem social injusta etc.).  Ele certamente foi um grande historiador e um intelectual importante, que não se rebaixava à condição de panfletário produtor de agitprop. Não era um agitador vulgar, como Noam Chomsky, ou um filósofo de quinta, como Slavoj Zízek. Mas, sinto dizer, ele foi, assim como estes, um idiota moral. A exemplo de intelectuais e figuras proeminentes da esquerda, como Jean-Paul Sartre, José Saramago e Gabriel García Márquez, que não quiseram ou não foram capazes de deixar suas preferências ideológicas e seus preconcentos anticapitalistas e antiamericanos fora de suas análises, Hobsbawn justificou o terror stalinista.  Flertou, para dizer o mínimo, com uma das faces do Mal. Talvez a pior de todas.

Hobsbawn foi um historiador inteligente, mas colocou a sua inteligência a serviço de um projeto totalitário que deixou mais de 100 milhões de mortos no século XX. E se recusou a fazer uma autocrítica consistente. Seu talento e capacidade acadêmica apenas aumentam sua culpa. E ainda há quem escreva manifestos defendendo (ou omitindo) essa sua atitude. Enfim, isso sim, uma visão pequena, medíocre e mal-intencionada. Coisa de idiotas.

Mises contra Marx



por , quarta-feira, 11 de novembro de 2009


KarlMarxCemetery.jpgludwig-von-mises2.jpg
Se instados a citar o principal crítico do marxismo, a maioria dos economistas simpáticos ao livre mercado iria mencionar Eugen von Böhm-Bawerk, que em seu tratado Capital and Interest (Capital e Juro) e em seu folheto Karl Marx and the Close of His System (Karl Marx e o Fim do Seu Sistema) demoliu por completo a teoria do valor-trabalho, o sustentáculo da economia marxista.
Mas a teoria do valor-trabalho é apenas uma parte do marxismo.  E quanto ao resto do sistema?  É aqui que se faz necessário analisar a obra do maior e melhor aluno de Böhm-Bawerk, Ludwig von Mises, cuja análise devastadora do marxismo é de inigualável excelência.  Sua contribuição à crítica do marxismo é encontrada principalmente em dois de seus livros: Socialismo e Teoria e História.
O Manifesto Comunista (1848) famosamente declara:  "A história de todas as sociedades existentes até hoje é a história da luta de classes".  Cada sistema social, na visão marxista, é caracterizado por uma diferente variedade de conflitos de classe.  No sistema capitalista, obviamente, o infindável conflito se dá entre capitalistas e proletários.  No decorrer da batalha social entra as classes, os membros ou amigos de cada classe elaboram teorias de vários tipos voltadas exclusivamente para a defesa daquela classe.  Essas teorias, independente do que digam, não se originaram da busca pela verdade objetiva.  Como todo o pensamento "ideológico", as teorias econômicas, sociais e políticas refletem meramente o interesse de classe.
Mises, mais vigorosamente do que qualquer outro crítico de Marx, transpôs e descortinou a essência dessa visão falaciosa.  Se todo o pensamento sobre questões sociais e econômicas se baseia na questão social, o que dizer sobre o próprio sistema marxista?  Se, como Marx orgulhosamente proclamava, sua intenção era explicar para a classe operária sua condição de espoliada, por que então qualquer uma de suas visões deveria ser aceita como verdadeira?  Mises corretamente apontou que a visão de Marx era autorefutável: se todo pensamento social é ideológico, então a proposição marxista é em si ideológica, o que faz com que seus fundamentos já nasçam naturalmente solapados.  Em sua obra Teorias Sobre a Mais-Valia, Marx não consegue conter seu escárnio em relação à "apologética" de vários economistas burgueses.  Ele não percebeu que, ao escarnecer constantemente a tendenciosidade de seus economistas contemporâneos, ele estava cavando a sepultura de seu enorme trabalho de propaganda em favor do proletariado.
Mises nunca se cansou de enfatizar um tema que ele expressou sucintamente em seu livro Liberalismo: "O homem tem apenas uma ferramenta com a qual lutar contra o erro: a razão".  Por "razão", ele se referia a um procedimento lógico de validade universal.  Aquele que nega o poder da razão cai em contradição — logo, está se refutando a si próprio.  Se a razão for subordinada a alguma outra faculdade, seja o interesse de classe, o conhecimento hermenêutico ou qualquer outra idiossincrasia não-racional que seja atraente, o resultado não será outro que não uma estultice.  Se não há lógica, qual razão pode haver em qualquer postulado?
O ataque de Mises ao marxismo não se limitou à essencial porém hermética área da epistemologia.  Ele também analisou em detalhes os principais temas da interpretação marxista da história.  De acordo com Marx, o segredo da história está nas forças da produção. (Grosso modo, as forças de produção de uma sociedade consistem na tecnologia dessa sociedade).  Essas forças, ao longo da história, apresentam uma constante tendência ao desenvolvimento.  À medida que o fazem, elas exigem mudanças nas relações de produção, isto é, no sistema econômico e social que existe em uma determinada sociedade.  Em um momento, por exemplo, o feudalismo era o sistema que melhor estava adaptado para desenvolver as forças de produção.  A partir do momento em que ele deixou de ser o sistema mais eficiente, o capitalismo o substituiu, quebrando aquilo que Marx chamou de "grilhões" que a economia senhorial do feudalismo impunha à produção.  Por sua vez, por imposição das forças de produção, o capitalismo será substituído pelo socialismo, um sistema que, como Marx antecipou, seria imensamente mais produtivo que seu antecessor.
Em seu livro Teoria e História, Mises apresentou uma simples indagação que se comprovou letal à alegada "ciência do materialismo histórico".  Como foi explicado, o crescimento das forças de produção supostamente é a causa-mor das revoluções.  É ele quem impele a sociedade a realizar mudanças drásticas em sua estrutura.  Mas o que exatamente determina esse crescimento das forças de produção?  Como Mises vivia dizendo, apenas indivíduos agem.  As classes, as "forças de produção", "as relações de produção" etc., são em si apenas abstrações.  Separadas da ação dos seres humanos, elas são nulas e impotentes.  Assim como o Geist (Espírito) hegeliano, as forças de produção de Marx são um fenômeno que se desenvolve autonomamente e que governa a vontade humana.  Marx jamais se preocupou em explicar como tais forças, elas próprias os efeitos da ação humana, podem exclusivamente determinar toda a importante ação humana.
Uma vez que se tenha entendido que são os indivíduos que agem — e não as forças de produção —, todo o esquema marxista sobre a evolução histórica cai por terra.  Se são os seres humanos que criam por seus próprios atos as forças de produção, ao invés de serem as forças de produção que determinam esses atos, então a transição de um sistema econômico para outro não é uma inevitabilidade, como Marx dizia ser.  Tais mudanças irão ocorrer apenas se as pessoas agirem para criá-las — e somente assim.  Se alguém contestar dizendo que existem leis que determinam a ação humana, esse contestador terá de ter a bondade de produzir essas leis para que possamos examiná-las.  Agora, que os resultados daquilo que as pessoas criam podem não ser aqueles esperados, isso já é outra discussão.
O marxismo, como o "filósofo" stalinista M.B. Mitin gostava de afirmar pomposamente, é "um chamado à ação".  E a ação que os marxistas têm em mente é obviamente a substituição do capitalismo pelo socialismo.  Em uma famosa passagem no volume III do Capital, Marx antevê um futuro auspicioso sob as bênçãos do socialismo, no qual as pessoas poderão dedicar a maior parte do seu tempo ao lazer.  Trabalhar pelo mero sustento se tornará simples memórias de um passado longínquo.
Tal é a promessa marxista.  Porém a realidade, como Mises demonstrou, era algo bem diferente.  Em seu argumento, Mises não se baseou empiricamente nos resultados do experimento socialista na Rússia soviética.  Ao invés disso, como aqueles familiarizados com seu método praxeológico já imaginam, Mises ofereceu a prova de que o socialismo era em sua natureza impossível.
Ele apresentou seu argumento em um famoso artigo publicado em 1920 que, com maior elaboração, foi incorporado a sua grande obra Socialismo (1922).  Como é característico de Mises, seu argumento em essência é um só (o grande economista austríaco tinha um infalível instinto para analisar o âmago de qualquer teoria por ele considerada): dada uma lista de bens a serem produzidos — sejam aqueles desejados pelos membros da sociedade (os consumidores) ou aqueles planejados por um ditador — qualquer economia desenvolvida precisa ter uma maneira de decidir como empregar seus recursos da melhor maneira possível para produzir os bens desejados.
Sob o capitalismo, esse desafio é respondido totalmente à altura das dificuldades apresentadas.  Os recursos que existem — a terra, o capital ou o trabalho — são propriedade de indivíduos. Essas pessoas irão comercializar suas propriedades no mercado.  Ao fazerem isso, elas poderão precificar os bens de produção de acordo com a eficiência com que estes podem ser utilizados para atender os desejos dos consumidores.
Os detalhes desse complexo e fenomenal processo não podem ser aqui elaborados.  Porém, em todo caso, ninguém pode seriamente negar que o livre mercado é capaz de realizar a tarefa do cálculo econômico acima descrita.  O ponto principal da acusação de Mises ao socialismo, e o aspecto mais controverso de seu argumento, é sua afirmação de que somente o capitalismo pode resolver o problema do cálculo econômico.  O socialismo, em particular, não pode.
Novamente sem entrar em detalhes, o ponto principal do raciocínio de Mises pode ser rapidamente entendido.  O socialismo por definição consiste no gerenciamento centralizado da economia, sendo que seus principais meios de produção são de propriedade "pública", ou seja, do governo.  Como pode um sistema centralizado, onde não há mercados, decidir qual é a maneira mais eficiente de se utilizar os recursos necessários para a produção de um determinado bem?  Pois se não há um livre sistema de preços para balizar a produção, a utilização de recursos passa a ser feita às cegas.  Qualquer "preço" que o planejador da economia imponha para qualquer bem será arbitrário e não terá qualquer valor para um cálculo genuíno.  (Um detalhe técnico deve ser mencionado para que o argumento não seja mal entendido: Mises afirma que um sistema socialista não tem os meios para calcular os preços dos bens de produção, o mesmo não sendo necessariamente válido para os preços dos bens de consumo ou bens de primeira ordem).
Ou seja, a explicação de Mises pode ser sucintamente resumida da seguinte forma: se os meios de produção pertencem exclusivamente ao estado, não há um genuíno mercado entre eles.  Se não há um mercado entre eles, é impossível haver a formação de preços legítimos.  Se não há preços, é impossível fazer qualquer cálculo de preços.  E sem esse cálculo de preços, é impossível haver qualquer racionalidade econômica — o que significa que uma economia planejada é, paradoxalmente, impossível de ser planejada.
Podemos imediatamente ver como o argumento de Mises desfere o golpe de misericórdia no marxismo.  Este sistema alega que o socialismo é uma inevitabilidade porque o desenvolvimento das forças de produção irá inevitavelmente levar à sua implementação.  Mesmo que desconsiderássemos o argumento de Mises, de que o crescimento das forças de produção não é algo inevitável, poderíamos perceber que a visão de Marx é comicamente absurda: o capitalismo não apenas é o mais eficiente sistema econômico como também é o único sistema econômico eficiente.  Se — por mais impossível que isso seja — as forças de produção de fato crescessem por conta própria, não seria o socialismo o sistema que elas iriam estabelecer.  Seria o capitalismo.
Continuando seu ataque ao marxismo, Mises explorou o porquê de Marx não levar em conta o problema da eficiência.  E nesse quesito a resposta de Mises não admite contestações.  Marx não disse nada sobre o problema do cálculo simplesmente porque ele não dedicou atenção alguma às instituições econômicas do socialismo.  Fazer isso, pensava Marx, seria o equivalente a estabelecer "modelos" para o futuro, no mesmo estilo dos socialistas utópicos, os quais ele sempre escarnecera.  Com uma completa irresponsabilidade intelectual, ele pregava a derrubada da intricada economia capitalista — que ele próprio havia admitido ser a mais produtiva da história — para poder estabelecer um sistema cujas instituições ele sequer havia se dado ao trabalho de analisar.
Entretanto, quando se considera as respostas dadas a Mises por seus críticos socialistas, pode-se pensar que talvez a política de Marx — a de desconsiderar os problemas do socialismo — acabou sendo mais sabia do que ele poderia imaginar.  Mises não teve dificuldades em refutar todas as soluções socialistas que foram tentadas em resposta ao seu problema do cálculo econômico.  Alguns correram para a matemática: um sistema de equações simultâneas permitiria que os preços necessários fossem descobertos.  Como, em um regime em constante mudança, essas equações funcionariam, é algo que os proponentes dessa idéia preferiram não responder.
A mais famosa resposta dada a Mises, entretanto, está em outra área.  O economista polonês Oskar Lange, que residiu nos EUA por um bom tempo até que, após a Segunda Guerra Mundial, a bajulação e o charme da Polônia comunista acabaram com sua resistência e imunidade ao regime, alegou que a economia socialista não precisava necessariamente abandonar o mercado.  Era possível que ambos coexistissem, embora para alguns a expressão "socialismo de mercado" tenha tanto sentido quanto um "círculo quadrado" — Lange, obviamente, não estava dentre os que pensavam assim.  Mas sua proposta, conquanto original, não teve melhor sucesso que as outras.  Mises submeteu-a a impiedosos ataques, os detalhes dos quais deixo para o leitor interessado explorar nos trabalhos de Mises.  Em particular, sua iluminadora discussão sobre seus críticos em Ação Humana deve ser consultada.
Mises expôs inúmeros, cruciais e irremediáveis erros do marxismo.  Uma leitura de suas críticas inevitavelmente fará com que se aplique ao marxismo o famoso trecho do poema "Ozymandias":
"Nada mais resta: em redor a decadência
Daquele destroço colossal, sem limite e vazio
As areias solitárias e planas espalham-se para longe."

David Gordon é membro sênior do Mises Institute, analisa livros recém-lançados sobre economia, política, filosofia e direito para o periódico The Mises Review, publicado desde 1995 pelo Mises Institute. É também o autor de The Essential Rothbard

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Direita e esquerda

26/10/2013 - 03h40

Visitei Praga em 1989, às vésperas da Revolução de Veludo. Naquela cidade, "comunista" era estigma. No Brasil, a ditadura militar definiu a palavra "direita". "O cara é de direita." Impossibilitado de internar dissidentes em instituições psiquiátricas, o lulopetismo almeja isolá-los num campo de concentração virtual. No processo, devasta o sentido histórico dos termos até virá-los pelo avesso: eles é que são "de direita"; eu sou "de esquerda".
Eles financiaram com dinheirohttp://cdncache1-a.akamaihd.net/items/it/img/arrow-10x10.png público a bolha Eike Batista. Na fogueira do Império X, queimam-se US$ 5,2 bilhões do povo brasileiro. "O BNDES para os altos empresários; o mercado para os demais": eis o estandarte do capitalismo de Estado lulopetista. Anteontem, Lula elogiou o "planejamento de longo prazo" de Geisel; ontem, sentou-se no helicóptero de Eike para articular um expediente de salvamento do megaempresário de estimação. O lobista do capital espectral é "de direita"; eu, não.
Eles são fetichistas: adoram estatais de energia e telecomunicações, chaves mágicas do castelo das altas finanças. Mas não contemplam a hipótese de criar empresas públicas destinadas a prestar serviços essenciais à população. Na França, os transportes coletivos, que funcionam, são controlados pelo Estado. Eu defendo esse modelo para setores intrinsecamente não-concorrenciais. O Partido prefere reiterar a tradição política brasileira, cobrando de empresários de ônibus o pedágio das contribuições eleitorais para perpetuar concessões com lucros garantidos. "De esquerda"? Esse sou eu, não eles.
Eles são corporativistas. No governo, modernizaram a CLT varguista, um híbrido do salazarismo com o fascismo italiano, para integrar as centrais sindicais ao aparato do sindicalismo estatal. Eles são restauracionistas. Na década do lulismo, inflaram com seu sopro os cadáveres políticos de Sarney, Calheiros, Collor e Maluf, oferecendo-lhes uma segunda vida. O PT converteu-se no esteio de um sistema político hostil ao interesse público: a concha que protege uma elite patrimonialista. "De direita"? Isso são eles.
Eles são racialistas; a esquerda é universalista. O chão histórico do pensamento de esquerda está forrado pelo princípio da igualdade perante a lei, a fonte filosófica das lutas populares que universalizaram os direitos políticos e sociais no Ocidente. Na contramão dessa herança, o lulopetismo replicou no Brasil as políticas de preferências raciais introduzidas nos EUA pelo governo Nixon. Inscrevendo a raça na lei, eles desenham, todos os anos, nas inscrições para o Enem, uma fronteira racial que atravessa as classes de aula das escolas públicas. Esses plagiários são o túmulo da esquerda.
Eles são atavicamente conservadores. Os programas de transferência de renda implantados no Brasil por FHC e expandidos por Lula têm raízes intelectuais nas estratégias de combate à pobreza formuladas pelo Banco Mundial. Na concepção de FHC, eram compressas civilizatórias temporárias aplicadas sobre as feridas de um sistema econômico excludente. Nos discursos de Lula, saltaram da condição de "bolsa-esmola" à de redenção histórica dos pobres. Quando os manifestantes das "jornadas de junho" pronunciaram as palavras "saúde" e "educação", o Partido orwelliano sacou o carimbo usual, rotulando-os como "de direita". Eles destroem a linguagem política para esvaziar a praça do debate público. Mas, apesar deles, não desapareceu a diferença entre "esquerda" e "direita" --e eles são "de direita".

"Esquerda"? O lulopetismo calunia a esquerda democrática enquanto celebra a ditadura cubana. Fidel Castro colou a Ordem José Martí no peito de Leonid Brejnev, Nicolau Ceausescu, Robert Mugabe e Erich Honecker, entre outros tiranos nefastos. Da esquerda, eles conservam apenas uma renitente nostalgia do stalinismo. Sorte deles que Praga é tão longe daqui
DEMÉTRIO MAGNOLI

Eu acuso


04/11/2013 - 03h00


Muitos alunos de universidade e ensino médio estão sendo acuados emsala de aula por recusarem a pregação marxista. São reprovados em trabalhos ou taxados de egoístas e insensíveis. No Enem, questões ideológicas obrigam esses jovens a "fingirem" que são marxistas para não terem resultados ruins.
Estamos entrando numa época de trevas no país. O bullying ideológico com os mais jovens é apenas o efeito, a causa é maior. Vejamos.
No cenário geral, desde a maldita ditadura, colou no país a imagem de que a esquerda é amante da liberdade. Mentira. Só analfabeto em história pensa isso. Também colou a imagem de que ela foi vítima da ditadura. Claro, muitas pessoas o foram, sofreram terríveis torturas e isso deve ser apurado. Mas, refiro-me ao projeto político da esquerda. Este se saiu muito bem porque conseguiu vender a imagem de que a esquerda é amante da liberdade, quando na realidade é extremamente autoritária.
Nas universidades, tomaram as ciências humanas, principalmente as sociais, a ponto de fazerem da universidade púlpito de pregação. No ensino médio, assumem que a única coisa que os alunos devem conhecer como "estudo do meio" é a realidade do MST, como se o mundo fosse feito apenas por seus parceiros políticos. Demonizam a atividade empresarial como se esta fosse feita por criminosos usurários. Se pudessem, sacrificariam um Shylock por dia.
Estamos entrando num período de trevas. Nos partidos políticos, a seita tomou o espectro ideológico na sua quase totalidade. Só há partidos de esquerda, centro-esquerda, esquerda corrupta (o que é normalíssimo) e do "pântano". Não há outra opção.
A camada média dos agentes da mídia também é bastante tomada por crentes. A própria magistratura não escapa da influência do credo em questão. Artistas brincam de amantes dos "black blocs" e se esquecem que tudo que têm vem do mercado de bens culturais. Mas o fato é que brincar de simpatizante de mascarado vende disco.
Em vez do debate de ideias, passam à violência difamatória, intimidação e recusam o jogo democrático em nome de uma suposta santidade política e moral que a história do século 20 na sua totalidade desmente. Usam táticas do fascismo mais antigo: eliminar o descrente antes de tudo pela redução dele ao silêncio, apostando no medo.
Mesmos os institutos culturais financiados por bancos despejam rios de dinheiro na formação de jovens intelectuais contra a sociedade de mercado, contra a liberdade de expressão e a favor do flerte com a violência "revolucionária".
Além da opção dos bancos por investirem em intelectuais da seita marxista (e suas similares), como a maioria esmagadora dos departamentos de ciências humanas estão fechados aos não crentes, dezenas de jovens não crentes na seita marxista soçobram no vazio profissional.
Logo quase não haverá resistência ao ataque à democracia entre nós. A ameaça da ditadura volta, não carregada por um golpe, mas erguida por um lento processo de aniquilamento de qualquer pensamento possível contra a seita.
E aí voltamos aos alunos. Além de sofrerem nas mãos de professores (claro que não se trata da totalidade da categoria) que acuam os não crentes, acusando-os de antiéticos porque não comungam com a crença "cubana", muitos desses jovens veem seu dia a dia confiscado pelo autoritarismo de colegas que se arvoram em representantes dos alunos ou das instituições de ensino, criando impasses cotidianos como invasão de reitorias e greves votadas por uma minoria que sequestra a liberdade da maioria de viver sua vida em paz.
Muitos desses movimentos são autoritários, inclusive porque trabalham também com a intimidação e difamação dos colegas não crentes. Pura truculência ideológica.
Como estes não crentes não formam um grupo, não são articulados nem têm tempo para sê-lo, a truculência dos autoritários faz um estrago diante da inexistência de uma resistência organizada.
Recebo muitos e-mails desses jovens. Um deles, especificamente, já desistiu de dois cursos de humanas por não aceitar a pregação. Uma vergonha para nós.


LUIZ FELIPE PONDÉ