sábado, 26 de novembro de 2011

Trecho de Guia Politicamente Incorreto da América Latina, de Leandro Narloch e Duda Teixeira

Como deixar de ser latino-americano Foram os franceses os primeiros a usar a expressão “América Latina”. Por volta de 1860, o imperador Napoleão III tentava aumentar sua influência no México, na época um país tumultuado por revoltas e guerras entre políticos liberais e conservadores. Um bom jeito de aproximar culturalmente os dois países era destacando o que eles tinham em comum, como a mesma origem do idioma. Tanto o francês quanto o espanhol e o português são línguas derivadas do latim – essa semelhança não só deixava a influência francesa mais natural como isolava os imperialistas britânicos e seu idioma anglo-saxão.1 “América Latina” se tornou assim uma ideia tão vazia quanto abrangente. Reúne sujeitos e povos dos mais diversos: o que há em comum entre ribeirinhos amazônicos, vaqueiros gaúchos, executivos da Cidade do México, índios das ilhas flutuantes do lago Titicaca e haitianos praticantes de vodu? Eles falam línguas derivadas do latim, mas... e daí? Colocar todos em um mesmo saco não seria o mesmo que igualar sujeitos tão diferentes quanto um xeque radical egípcio, um fazendeiro branco da África do Sul e um pigmeu do Congo? São todos africanos, é certo, mas pouca gente fala em uma única identidade para a África. Talvez a principal semelhança entre os latino-americanos não seja algo que venha de nossos longínquos antepassados, como a língua, e sim em um traço recente, forjado lentamente ao longo de séculos. Bolivianos, mexicanos, brasileiros e todos os demais, quando vislumbram o próprio passado, contam exatamente a mesma história. É como se ingredientes de sabores, cores e tamanhos diferentes entrassem todos numa grande batedeira para criar uma massa homogênea; e é como se essa massa fosse recortada por um mesmo molde de biscoito, dando origem a seres graciosos com o mesmo formato e o mesmo discurso. Tão parecidas são suas narrativas, e tão importante é a história para a identidade de um povo, que é possível tirar dessa massa algumas regras para ser um típico habitante da nossa região. Na receita para se preparar um bom latino-americano, parece ser necessário: 1. Lamentar. Todo latino-americano nutre uma obsessão por episódios tristes de sua história: o massacre dos índios, os horrores da escravidão, a violência das ditaduras. Além dessas histórias de opressão, nada de bom aconteceu. 2. Encarar a cultura local como uma forma de resistência. Fica proibido ligar na tomada instrumentos musicais típicos e populares e passa a ser um requisito moral usar ponchos e saias coloridas – ou pelo menos desfilar com um colar de artesanato indígena. 3. Condenar o capitalismo. O latino-americano que honra o nome acredita que o comunismo foi uma ideia boa, só que mal implantada. E, se já não luta para implantar esse falido modelo por aqui, ao menos defende sistemas mais “sociais”, “solidários”, “justos” e “comunitários”. 4. Denunciar a dominação externa. Se a responsabilidade pelos problemas do continente não pode ser atribuída à Espanha, à França ou a Portugal, então certamente tem alguma mão da Inglaterra ou dos Estados Unidos. Ou, como prega o livro As Veias Abertas da América Latina, clássico desse pensamento simplista, “a cada país dá-se uma função, sempre em benefício do desenvolvimento da metrópole estrangeira do momento”. 5. Cultuar heróis perversos. Quanto mais bobagens eles falarem e quanto mais sabotarem seu próprio país, mais estátuas equestres e estampas em camisetas serão feitas em sua homenagem. Tudo neste livro é contra essas regras tão batidas para se contar a história da América Latina. Não nos sentimos representados por guerrilheiros ou por indignados líderes andinos e suas roupas coloridas. Não há aqui destaque para veias abertas do continente, mas para feridas devidamente tratadas e curadas com a ajuda de grandes potências. Conhecemos bem as tragédias que nossos antepassados índios e negros sofreram, mas, honestamente, estamos cansados de falar sobre elas. E acreditamos que todos os povos passaram por desgraças semelhantes, inclusive aqueles que muitos de nós adoramos acusar. Por isso, quando vítimas da história aparecerem nesta obra, é para revelarmos que elas também mataram e escravizaram – e como elas se beneficiaram com ideias e costumes vindos de fora. Figuras ilustres da América Latina também passam neste livro, mas longe de nós mostrar somente que elas não são tão admiráveis quanto se diz. Na história de quase todo país, é comum abrilhantar as palavras de figuras públicas e até inventar virtudes de seu caráter – e não passa de chatice ficar insistindo numa realidade menos interessante. Acontece que na América Latina se vai além: escolhem-se como heróis justamente os homens que mais atrapalharam a política, mais arruinaram a economia, mais perseguiram os cidadãos. Não importam as tragédias que Salvador Allende, Che Guevara e Juan Perón tenham tornado possíveis. Importantes são o carisma, o rosto fotogênico, a morte trágica, os discursos inflamados contra estrangeiros. Por isso, não há como escapar: é ele, o falso herói latino-americano, o principal alvo deste livro. Nota: 1 John Charles Chasteen, Born in Blood & and Fire: A Concise History of Latin America, W. W. Norton & Company, 2011, página 156.

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