Nuno Severiano Teixeira
Diário de Notícias, 13|Abril|2005 |
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O
Papa? Mas quantas divisões tem o Papa? Perguntava Estaline quando se
tratava do Vaticano na política internacional. Divisões, divisões, o
Papa não tinha nenhuma. Mas como se viu, não precisou delas para
derrotar o comunismo.
Aquela
simples pergunta encerrava, na sua essência, a definição mais acabada e
definitiva desse princípio da política internacional a que chamamos
"realismo". Um princípio que faz assentar as Relações Internacionais,
exclusivamente, no poder e o poder, exclusivamente, na força. Foi esse o
erro de Estaline. Confundir o poder com a força militar. Nesse sentido o
Papa não tinha poder. Mas tinha influência. Ou melhor, tinha o poder da
influência. Não tinha o poder das armas, mas tinha o poder da Fé. E a
diplomacia da fé João Paulo II soube usá-la como nenhum dos seus
predecessores. Foi um testemunho vivo de luta contra o princípio
realista. E foi a prova provada dos limites do "realismo". Sem uma única
espingarda, foi um verdadeiro actor internacional. Apenas com a
autoridade espiritual transformou-se, como disse Garton Ash, no primeiro
líder mundial.
Nas
tragédias do século XX, outros Papas antes de si tinham desempenhado um
papel internacional. Bento XV, que em 1917 tentou, em vão, uma solução
para a Grande Guerra. Pio XII, que em 1939, igualmente em vão, apelou à
paz. E o próprio João XXIII, que dedicou a sua última encíclica Pacem in
Terris às questões internacionais. Mas nenhum foi tão longe como João
Paulo II.
Simultaneamente,
líder religioso e líder político, o Papa concentra em si a chefia
espiritual da Igreja Católica e a chefia do Estado do Vaticano. E João
Paulo II soube como ninguém pôr os instrumentos políticos ao serviço da
sua missão religiosa e a autoridade religiosa ao serviço das suas causas
políticas.
Usou,
é certo, os instrumentos tradicionais da diplomacia do Estado. Quando
chegou ao Vaticano, a Santa Sé tinha relações diplomáticas com 92
países. Hoje, tem relações com 174. Praticamente, duplicou o número das
nunciaturas apostólicas e estendeu a sua rede de relações bilaterais a
todo o mundo.
Mas
não foram os instrumentos tradicionais da diplomacia do Vaticano que
fizeram a dimensão internacional do Papa Wojtyla. Foram, precisamente,
os instrumentos não convencionais. Foi, em primeiro lugar, a sua
compreensão de que se o Vaticano é um simples Estado, ainda por cima sem
divisões, a Igreja é a maior instituição transnacional do mundo. Não é
uma organização internacional que reúne Estados. É uma instituição
transnacional que reúne milhões de seres humanos unidos pela sua Fé e a
quem o Papa soube levar uma mensagem universal. E isso é um enorme poder
na cena internacional. Foi, em segundo lugar, a sua capacidade para
usar as tecnologias e através delas levar a sua palavra aos quatro
cantos do mundo o avião, o papamóvel, a televisão. Fez 104 viagens
oficiais, visitou 129 países, percorreu mais de um milhão de quilómetros
e arrastou multidões que, dizem, tratava como se fossem pessoas
individuais.
Tornou a sua mensagem universal numa linguagem global. E foi isso que potenciou o seu poder na cena internacional.
Mas
que marca deixa João Paulo II do seu pontificado? Papa de paradoxos,
deixa uma marca conservadora no plano teológico e moral e uma marca
inovadora no plano político e social. Ambas, com reflexo evidente na sua
presença internacional.
Primeiro,
foi a queda do comunismo. Quebrando as fronteiras tradicionais entre a
acção eclesial e a acção política, desde a primeira visita à sua Polónia
natal, em 1979, que o Papa apoiou o movimento operário e encorajou o
Solidariedade. A Igreja tornou-se um pólo de resistência política ao
totalitarismo e o catolicismo uma visão do mundo alternativa ao
comunismo. Sem a Igreja e sem o Solidariedade nada tinha sido assim na
Polónia. E se nada tivesse sido assim na Polónia, nada tinha sido assim
na queda do império soviético e no fim da Guerra Fria.
Depois,
foi a luta constante a favor da Paz. Construiu uma doutrina (que reuniu
nas suas mensagens para as Jornadas Mundiais da Paz) e passou-a à
prática. No conflito do Médio Oriente, nos Balcãs e no Iraque. João
Paulo II rejeitou, sempre, a violência como solução para os conflitos
internacionais. Pugnou pela legalidade internacional e envolveu a
diplomacia do Vaticano em mediações directas entre os beligerantes. No
fim da guerra apelou, sempre, à reconciliação. Nos conflitos entre o
Ocidente e o Islão, a acção do Papa contra a guerra foi decisiva para
que não fosse vista como uma guerra entre religiões ou um choque de
civilizações.
Mas
o conservadorismo teológico e moral também se traduziu na acção
internacional. Ao contrário da Europa de Leste, em que acção eclesial e
acção política se confundiram na luta contra a ditadura comunista, na
América Latina a recusa da teologia da libertação conduziu a outra
perspectiva, sem o mesmo sucesso na luta contra as ditaduras militares e
a pobreza. Em África, a proibição dos meios artificiais de contracepção
não ajudou à contenção da sida, que é, hoje, um dos maiores problemas
de segurança internacional. Não é, seguramente, o único meio de luta
contra a sida, mas perante um tal flagelo todos os meios são
necessários. E talvez, hoje, a melhor homenagem que se possa prestar à
memória do Papa é olhar para a África e para América Latina.
Comunguemos ou não das convicções de João Paulo II, é preciso reconhecer que o mundo precisa de líderes como ele.
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