José Maria e Silva
“A revolução é biófila, é criadora de vida, ainda que, para criá-la, seja obrigada a deter vidas que proíbem a vida.”
Paulo Freire, em Pedagogia do Oprimido, defendendo os fuzilamentos sumários comandados por Che Guevara e Fidel Castro
Com quantas vidas se faz uma ditadura? Na belíssima novela de John Boyne, O Menino do Pijama Listrado,
essa pergunta é respondida pelo espanto de Bruno, um menino de nove
anos. Sempre que ele se surpreende com o mundo do Fúria à sua volta,
seus olhos se arregalam, sua boca faz o formato de um O e seus braços
caem ao longo do corpo. A obra, uma elegia à inocência da vida que não
sabe da morte, deveria ser lida — e meditada — pelos 3.949 intelectuais
que, até agora, assinaram um manifesto contra a Folha de S. Paulo,
repudiando o editorial “Limites a Chávez”, publicado em 17 de fevereiro
último, no qual a ditadura militar brasileira é indiretamente chamada
de “ditabranda”. O Menino do Pijama Listrado (o
livro, não vi o filme) demonstra, metaforicamente, a abissal diferença
entre um regime autoritário (circunscrito à esfera política) e um regime
totalitário (que permeia todas as instâncias sociais).
As primeiras reações ao editorial da Folha
partiram da socióloga Maria Victória Benevides, professora da Faculdade
de Educação da USP, e do advogado Fábio Konder Comparato, professor
aposentado pela mesma instituição. Esquecendo-se que a universidade que
representam arrasta até hoje um cadáver insepulto (o do estudante de
medicina morto num trote em 1999), Benevides e Comparato encenaram uma
indignação que jamais sentiram diante das quase 100 mil mortes
perpetradas pela Trindade Cubana (Fidel, Guevara e Raúl Castro) — 17 mil
na boca dos fuzis, em execuções sumárias, e 80 mil nos dentes dos
tubarões, em fuga para os Estados Unidos. Como a Folha de S. Paulo
chamou a atenção para essa dúbia moral de Benevides e Comparato,
lembrando que eles jamais protestaram contra a ditadura cubana, os dois
intocáveis uspianos se sentiram feridos e, em resposta, fizeram o que os
intelectuais de esquerda mais sabem fazer quando são pegos sem
argumentos — conclamaram o rebanho para um manifesto.
O inefável Antonio Candido, decano dos intelectuais de esquerda, encabeça o repúdio à Folha,
que também conta com figuras como o indefectível Emir Sader,
intelectual que, diante de Che Guevara, cai de joelhos por terra,
parafraseando a missa: “Guevara, eu não sou digno de que entreis em
minha morada, mas dizei uma só palavra e serei salvo”. Quem duvida que
Emir Sader é capaz dessa oração diante do guerrilheiro argentino, leia o
que ele escreveu num artigo publicado em Carta Maior: “Não vou gastar palavras inúteis para falar do Che. Basta reproduzir algumas das suas frases, que selecionei para o livro Sem Perder a Ternura”. Também diante de Marx e Fidel, Sader emudece: “O que falar de Marx que permaneça à sua altura? O que escrever sobre Fidel?”
Se
o ensino superior no Brasil, público e privado, não fosse mero aparelho
ideológico da esquerda, Emir Sader jamais teria virado doutor em
ciência política pela USP e professor titular da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, além de orientador de teses e dissertações. Sem dúvida,
estaria até hoje tentando passar no vestibular e sendo reprovado
sempre, por não ter argumentos para retratar personagens da história.
Que universidade isenta aceitaria um aluno que, ao ouvir falar de Marx,
Guevara e Fidel, não fosse capaz de articular uma só palavra e se
comportasse feito os silvícolas do Anhangüera, embriagado pelo álcool
incandescente da revolução? Já imaginaram se um intelectual de “direita”
dissesse não ter palavras diante de Karl Popper? Seria acusado de
ignorante e charlatão. Emir Sader é um paradigma da universidade
brasileira. Ele é a prova cabal de que, por trás da cantilena de
“produção do conhecimento”, o que há nos mestrados e doutorados do país é
uma usina de produção de marxismo e derivados.
Estou
plenamente convicto de que a universidade brasileira não é solução para
nada — ela é parte essencial do problema. As principais mazelas do
Brasil são fomentadas artificialmente pela universidade, que, desde a
década de 50, na ânsia de criar um novo mundo, especializou-se em
destruir o existente. Isso fica muito claro quando se estuda a origem
social dos guerrilheiros que pegaram em armas contra o regime militar.
Eles vieram, em sua maioria, das universidades. Não tinham o menor apoio
popular. Como é que o povo podia apoiar um bando de tresloucados que,
de arma em punho, pregavam a derrubada de uma ditadura imaginária?
Porque até o final de 1968, com a edição do AI-5, só havia ditadura na
imaginação dos universitários.
Foi
exatamente durante os propalados “Anos de Chumbo” que o Brasil viveu
uma das maiores efervescências culturais de sua história, com os
festivais, a imprensa alternativa, a Tropicália, o Cinema Novo, Chico e
Vandré, Caetano e Gil. Ao contrário de Cuba, onde Chico Buarque seria
fuzilado ou condenado a 20 anos de prisão se falasse mal de Fidel
Castro, no Brasil, o máximo que lhe aconteceu foi ser admoestado pelos
militares, o que lhe garante até hoje uma conta bancária maior do que
seu indiscutível talento. Num ambiente assim, existe alguma razão
plausível para se pegar em arma ou até para se perpetrarem atentados
terroristas, como fizeram muitos grupos guerrilheiros? Obviamente, não.
Em toda guerra, os primeiros sacrificados são os inocentes, portanto, a
opção pela luta armada para derrubar um regime só se justifica quando
esse regime é sanguinário e opressivo, incidindo sobre toda a vida
social e não apenas sobre a esfera política. Era o que acontecia na
terra do Menino do Pijama Listrado, daí o Levante do Beco de Varsóvia,
em 1943, quando judeus desesperados — não tendo senão uma morte horrenda
como alternativa — preferiram abreviar a vida numa luta suicida contra
as tropas nazistas.
Mas
esse não era o caso do Brasil dos militares. Aqui, os guerrilheiros
eram homens e mulheres bem nascidos que, por puro espírito de aventura,
jogavam fora o futuro como médicos, engenheiros e advogados e se
arvoravam a libertadores da pátria, sem notar que a maioria esmagadora
da população — provavelmente mais de 90 por cento — não se sentia
oprimida nem pedia para ser libertada. Pelo contrário, o regime
instalado em 1964 teve forte apoio popular e quando começou a ser
repudiado nas urnas, em 1974, com a expressiva vitória do velho MDB,
esse repúdio era mais de caráter econômico que político. A inflação
estava recomeçando e os pobres votaram contra a “carestia”, que é como
chamavam a inflação na época.
Já
escrevi repetidas vezes, mas a ocasião me obriga a escrever de novo:
quem acha que no Brasil houve uma ditadura sanguinária, totalitária, nos
moldes nazistas (é essa a visão que se tem dos militares nas escolas)
deve ler Pedagogia do Oprimido,
o panfleto de auto-ajuda marxista do pedagogo Paulo Freire. Esse livro —
que faz uma defesa explícita da luta armada e santifica Che Guevara,
Fidel Castro e Mao Tsé-Tung — foi publicado em pleno ano de 1970, no Rio
de Janeiro, pela Editora Paz e Terra, ligada aos padres da Teologia da
Libertação. Em 1981, Pedagogia do Oprimido já estava na 10ª edição. Um verdadeiro best-seller,
levando em conta que não é um livro comercial e o Brasil tinha muito
menos estudantes universitários do que tem hoje. Ora, se o regime
militar foi o período “mais sombrio da nossa história”, como dizem os
intelectuais de esquerda, como se explica o sucesso editorial de uma
obra que o combatia? Em Havana seria possível publicar um livro do
gênero contra Fidel Castro, o santo fardado de Buarques e Sáderes?
Mas
nem é preciso recorrer à ditadura cubana para demonstrar que os
intelectuais brasileiros mentem descaradamente quando dizem que o regime
militar de 64 foi uma ditadura sanguinária. A própria história recente
do Brasil — contada mentirosamente por eles — mostra a contradição em
que incorrem. É só comparar a “Revolução de 30” com a “Ditadura Militar”
(ponho as expressões entre aspas para remeter ao modo como os dois
períodos costumam ser chamados nos livros de história). Qual a diferença
entre os dois períodos? A rigor, nenhuma. Salvo o fato de que Getúlio
Vargas era um ditador civil, obviamente apoiado por militares, porque
toda ditadura precisa de armas.
Sob
o ponto de vista da repressão, Vargas foi muito pior do que os
militares. O seu período, sim, foi literalmente “anos de chumbo”.
Enquanto os militares procuraram preservar as instituições, garantindo
eleições legislativas e a independência do Judiciário, Vargas
centralizou todos os poderes em suas mãos, destituindo governadores e
nomeando interventores em seu lugar. São Paulo se rebelou, na chamada
Revolução Constitucionalista de 32, e Vargas bombardeou o Estado — o
episódio mais sangrento da história brasileira no século passado, apesar
de ofuscado pela preferência dos intelectuais pela Guerrilha do
Araguaia. Todavia, mesmo quem não pegava em armas, não ficava ileso. O
escritor Graciliano Ramos, individualista nato, incapaz de arregimentar
qualquer movimento político, acabou sendo preso durante quase um ano,
num presídio comum, sem julgamento. Seu único crime: escrever o romance São Bernardo,
entre outros escritos tidos como comunistas. Bem que merecia, mas não
teve indenização alguma pelo arbítrio de que foi vítima. Ao contrário
dos fanfarrões que pegaram em armas contra os militares, o Velho Graça
tinha vergonha na cara.
Se
a sanguinária ditadura de Getúlio Vargas merece, nos livros de
história, o epíteto de “Revolução de 30” (justificadamente, por sinal),
por que os governos militares não podem ser chamados de “Revolução de
64”, levando em conta que também mudaram a face do Brasil? Vargas já era
ditador desde o início de seu governo, antes mesmo da implantação do
Estado Novo, em 1937, quando a tresloucada Intentona Comunista de 35
levou ao recrudescimento do regime. Já os militares só foram
verdadeiramente ditadores a partir de 12 de dezembro de 1968, quando
editaram o AI-5, obrigados pelos atos de terror da esquerda armada,
treinada e financiada por Fidel Castro e abençoada por intelectuais como
Paulo Freire. Mesmo assim, foi uma ditadura cirúrgica, circunscrita aos
inimigos declarados do regime. Tanto que não chegou a matar nem 500
pessoas, como reconhecem os próprios autores de esquerda nos balanços
que fizeram do período. As vítimas inocentes, em sua maioria, tombaram
por terem sido usadas como escudo pelos adversários do regime.
Um dos argumentos de Maria Victoria Benevides para criticar o editorial da Folha
é que não se mede ditadura com estatísticas: “Quando se trata de
violação de direitos humanos, a medida é uma só: a dignidade de cada um e
de todos, sem comparar ‘importâncias’ e estatísticas”. Em artigo
publicado, na terça-feira, 24, o jornalista Fernando de Barros e Silva,
editor de Brasil da Folha,
corrobora a tese da socióloga: “Algumas matam mais, outras menos, mas
toda ditadura é igualmente repugnante. Devemos agora contar cadáveres
para medir níveis de afabilidade ou criar algum ranking entre regimes
bárbaros?” Claro que devemos — respondo eu. Todo crime só se iguala em
repugnância para aquele que é sua vítima, mas para quem o analisa de
fora, especialmente se esse alguém for um historiador, há uma enorme
diferença entre matar 100 pessoas ou matar 100 mil. Se Hitler tivesse
matado apenas uma centena de judeus, o nazismo seria a encarnação do mal
no imaginário do mundo contemporâneo?
Só
não vê que ditadura também se mede com estatísticas aqueles que têm
medo dos números. Ao ver que nenhuma ditadura capitalista até hoje
conseguiu igualar os mais de 100 milhões de mortos do comunismo no
mundo, a esquerda inventou esse argumento falacioso de que uma só morte
perpetrada por uma ditadura diminui toda a humanidade, como se o
homem-massa da revolução marxista tivesse lugar na poesia metafísica de
John Donne. Justamente a esquerda, que não faz conta do individuo de
carne e osso, só da massa de manobra da revolução. O regime militar não
apenas matou muito menos gente do que outros regimes autoritários —
também foi capaz de criar um modelo de ditadura que deveria ser
exportado. Toda ditadura costuma ser encarnada por um homem só, que se
torna escravo do poder que concentra, perdendo inclusive os freios
morais. Daí a profusão de ditadores sádicos, pessoalmente sedentos de
sangue humano.
No
Brasil isso não ocorreu. Os militares criaram uma espécie de ditadura
institucional, em que o poder não era encarnado por nenhum homem, mas
pela instituição — as Forças Armadas. Nem o principio federativo foi
quebrado num primeiro momento, como ocorreu de imediato com a ditadura
de Getúlio Vargas. Antes do recrudescimento da luta armada, ainda houve
eleição para governadores e, mesmo depois que elas foram suspensas, o
legislativo continuou funcionando. Essa quase normalidade institucional
propiciou até o surgimento e fortalecimento de uma oposição que jamais
houvera em toda a história do Brasil — a oposição institucional, criada e
mantida pelas próprias entranhas do Estado.
Boa
parte do chamado movimento social — que hoje alimenta o PT e demais
partidos de esquerda — começou a ser construído graças a esse processo
de institucionalização do país gestado pelos militares. Começando pelas
próprias universidades federais — cobras a quem os militares deram asas.
A Reforma Universitária feita pelos militares em 1968 profissionalizou o
ensino superior no país, instituindo antigas reivindicações da própria
comunidade acadêmica, como dedicação exclusiva de docentes, introdução
de vestibular unificado e implantação de mestrados e doutorados.
Valendo-se dessa estrutura, os intelectuais de esquerda se infiltraram
nas universidades e, a partir delas, forjaram em todo o país um
movimento social de proveta, destinado não a resolver problemas, mas a
fomentá-los.
Um
exemplo são os quase 50 mil homicídios que ocorrem anualmente no país.
Eles decorrem, em grande parte, da irresponsabilidade doentia dos
intelectuais brasileiros, que, à força de pressionar o Congresso
Nacional, levaram à completa lassidão das leis penais, hoje
irreversível, já que a mentalidade pueril da esquerda parece ter
contaminado até os ministros do Supremo. Não é a toa que o ministro
Gilmar Mendes deixa entrever que, a qualquer momento, pode soltar nas
ruas 189 mil dos cerca de 440 mil presos do país, muitos deles homicidas
e estupradores. Aí, sim, teremos um verdadeiro genocídio da população
indefesa, em parte porque a esquerda, com o objetivo de demonizar os
militares, transformou o falacioso conceito de direitos humanos num
dogma divino. Como se vê, a criminalização paranóica dos militares só
atende a um objetivo — esconder que os intelectuais de esquerda forjaram
um país muito pior que o deles.
Publicado no Jornal Opção, de Goiânia, em 1º de março de 2009.
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