Por Bento XVI
Tradução: Zenit
Fonte: Vaticano/Zenit
Queridos irmãos e irmãs:
Na história do cristianismo antigo, é fundamental a distinção entre
os primeiros três séculos e os sucessivos ao Concílio de Nicéia do ano
325, o primeiro ecumênico. Entre os dois períodos está a assim chamada
«mudança de Constantino» e a paz da Igreja, assim como a figura de
Eusébio, bispo de Cesaréia na Palestina.
Foi o expoente mais qualificado da cultura cristã de seu tempo, em
contextos muito variados, da teologia à exegese, da história à erudição.
Eusébio é conhecido sobretudo como o primeiro historiador do
cristianismo, mas também como o filósofo maior da Igreja antiga.
Na Cesaréia, onde provavelmente nasceu em torno do ano 260, Orígenes
se havia refugiado procedente da Alexandria, e lá havia fundado uma
escola e uma ingente biblioteca. Precisamente com estes livros se teria
formado, uma década depois, o jovem Eusébio. No ano 325, como bispo de
Cesaréia, participou com um papel de protagonista no Concílio de Nicéia.
Subscreveu o «Credo» e a afirmação da plena divindade do Filho de Deus,
definido por este com «a mesma substância» do Pai («homooúsios tõ
Patrí»). É praticamente o mesmo «Credo» que nós rezamos todos os
domingos na santa liturgia.
Sincero admirador de Constantino, que havia dado paz à Igreja,
Eusébio sentiu por ele estima e consideração. Celebrou o imperador, não
só em suas obras, mas também em discursos oficiais, pronunciados no
vigésimo e trigésimo aniversários de sua chegada ao trono, e depois de
sua morte, ocorrida no ano 337. Dois ou três anos depois também morria
Eusébio.
Estudioso incansável, em seus numerosos escritos, Eusébio busca
refletir e fazer um balanço dos três séculos de cristianismo, três
séculos vividos sob a perseguição, recorrendo em boa parte às fontes
cristãs e pagãs conservadas sobretudo na grande biblioteca de Cesaréia.
Deste modo, apesar da marca objetiva de suas obras apologéticas,
exegéticas e doutrinais, a fama imperecedora de Eusébio continua estando
ligada em primeiro lugar aos dez livros de sua «História eclesiástica».
Foi o primeiro em escrever uma história da Igreja, que segue sendo
fundamental graças às fontes que Eusébio põe à nossa disposição para
sempre. Com esta «história» conseguiu salvar do esquecimento numerosos
acontecimentos, personagens e obras literárias da Igreja antiga.
Trata-se, portanto, de uma fonte primária para o conhecimento dos
primeiros séculos do cristianismo.
Podemos nos perguntar como estruturou e com que intenções redigiu
esta nova obra. Ao início do primeiro livro, o historiador apresenta os
argumentos que pretende enfrentar em sua obra: «Eu me propus redigir as
sucessões dos santos apóstolos desde nosso Salvador até nossos dias,
quanto e quão grandes foram os acontecimentos segundo a história da
Igreja e quem foi distinguido em seu governo e direção nas comunidades
mais notáveis, inclusive também aqueles que, em cada geração, foram
embaixadores da Palavra de Deus, seja por meio da escritura ou sem ela, e
os que, impulsionados pelo desejo de inovação até o erro, anunciaram-se
como promotores do falsamente chamado conhecimento, devorando assim o
rebanho de Cristo como lobos rapazes… e também o número, o modo e o
tempo dos pagãos que lutaram contra a palavra divina e a grandeza dos
que em seu tempo atravessaram, por ela, à prova de sangue e tortura;
assinalando também os martírios de nosso tempo e o auxílio benigno e
favorável para com todos de nosso Salvador» (1, 1, 1-2).
Desta maneira, Eusébio envolve diferentes setores: a sucessão dos
apóstolos, como estrutura da Igreja, a difusão da Mensagem, os erros, as
perseguições por parte dos pagãos e os grandes testemunhos que
constituem a luz desta «História». Em tudo isso, resplandecem a
misericórdia e a benevolência do Salvador. Eusébio inaugura assim a
historiografia eclesiástica, abarcando sua narração até o ano 324, ano
no qual Constantino, depois da derrota de Licínio, foi aclamado como
imperador único de Roma. Trata-se do ano precedente ao grande Concílio
de Nicéia, que depois oferece a «summa» do que a Igreja — doutrinal,
moral e inclusive juridicamente — havia aprendido nesses trezentos anos.
A reunião que acabamos de referir do primeiro livro da «História
eclesiástica» contém uma repetição que certamente é intencional. Em
poucas linhas, repete o título cristológico de «Salvador», e faz
referência explícita à «sua misericórdia» e à «sua benevolência».
Podemos compreender assim a perspectiva fundamental da historiografia de
Eusébio: é uma história «cristocêntrica», na qual se revela
progressivamente o mistério do amor de Deus pelos homens. Com genuína
surpresa, Eusébio reconhece que «de todos os homens de seu tempo e dos
que existiram até hoje em toda a terra, só Ele é chamado e confessado
como Cristo [ou seja, 'Messias' e 'Salvador do mundo'], e todos dão
testemunho d’Ele com este nome, seguidores, em toda a terra; é honrado
como rei, é contemplado como sendo superior a um profeta e é glorificado
como o verdadeiro e único sumo sacerdote de Deus; e, acima de tudo
isso, é adorado como Deus por ser o Logos pré-existente, anterior a
todos os séculos, e tendo recebido do Pai a honra de ser objeto de
veneração. E o mais singular de tudo é que nós, que estamos consagrados a
Ele, não honramos com a voz ou com os sons de nossas palavras, mas com
uma completa disposição da alma, chegando inclusive a preferir o
martírio por sua causa à nossa própria vida» (1, 3, 19-20).
Deste modo, aparece em primeiro lugar outra característica que será
uma constante na antiga historiografia eclesiástica: a «intenção moral»
que preside a narração. A análise histórica nunca é um fim em si mesmo;
não só busca conhecer o passado, mas aponta com decisão à conversão, e a
um autêntico testemunho de vida cristã por parte dos fiéis. É uma guia
para nós mesmos.
Desta maneira, Eusébio interpela vivamente os fiéis de todos os
tempos sobre sua maneira de enfrentar as vicissitudes da história, e da
Igreja em particular. Interpela também a nós: qual é nossa atitude ante
as vicissitudes da Igreja? É a atitude de quem se interessa por simples
curiosidade, buscando o sensacionalismo e o escândalo a toda custa? Ou é
mais a atitude cheia de amor e aberta ao mistério de quem sabe pela fé
que pode perceber na história da Igreja os sinais do amor de Deus e as
grandes obras da salvação por ele realizadas?
Se esta é nossa atitude, temos que sentir-nos interpelados para
oferecer uma resposta mais coerente e generosa, um testemunho mais
cristão de vida, para deixar os sinais do amor de Deus também às futuras
gerações.
«Há um mistério», não se cansava de repetir esse eminente estudioso
dos Padres, o Pe. Jean Daniélou: «Há um conteúdo escondido na história… O
mistério é o das obras de Deus, que constituem no tempo a realidade
autêntica, escondida detrás das aparências… Mas esta história que Deus
realiza pelo homem, não a realiza sem Ele. Ficar na contemplação das
‘grandes coisas’ de Deus significaria ver só um aspecto das coisas. Ante
elas está a resposta» («Ensaio sobre o mistério da história», «Saggio
sul mistero della storia», Brescia 1963, p. 182).
Muitos séculos depois, também hoje Eusébio de Cesaréia nos convida a
surpreender-nos ao contemplar na história as grandes obras de Deus pela
salvação dos homens. E com a mesma energia, ele nos convida à conversão
da vida. De fato, ante um Deus que nos amou assim, não podemos
permanecer insensíveis. A instância própria do amor é que toda a vida se
oriente à imitação do Amado. Façamos tudo o que estiver a nosso alcance
para deixar em nossa vida um traço transparente do amor de Deus.
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