Roland
Dalbier, num livro que se tornou clássico (O Método Psicanalítico e a
Doutrina de Freud, tr. José Leme Lopes, Agir) começar por uma distinção
entre a parte científica e experimental da descoberta de Freud, e a
parte filosófico-doutrinária, que não chega a ser uma filosofia por sua
espantosa falta de coesão racional, mas que os chamados "ortodoxos"
(como se houvesse na ciência lugar para ortodoxia!) acompanham com
religiosa fidelidade. "O freudismo — diz o mesmo Dalbier — é uma
dogmática."
Na
verdade Freud pretendeu filosofar. Malgrado suas repetidas declarações
em contrário, onde até se advinha um certo desprezo pelas especulações
metafísicas, Freud fez metafísica. E nessa parte de sua obra revelou uma
incapacidade que muitas vezes tangencia o domínio da vulgar inépcia.
Consideremos,
por exemplo, o processo da "sublimação" pelo qual a energia sexual
desviada dos obstáculos da censura se manifestaria disfarçada,
transformada em atividades psíquicas superiores chamadas culturais ou
espirituais. O mestre vienense, depois de ter descoberto os jogos de
força que explica os tiques e os atos falhados, pretende estender
o diagrama até a zona dos mais altos feitos humanos, como se houvesse
homogeneidade de natureza e de causas entre o homem que coça o bigode e o
homem que compõe os concertos de Brandenburgo. O pensamento de Freud,
nesse capítulo, não tem a tranqüila nitidez que se encontrará mais tarde
entre os discípulos ortodoxos. É sempre assim. O gênio que tem o vigor
para descobrir coisas até então escondidas, e que se entrega à tentação
das generalizações grandiosas, salva-se pela incoerência. Corrige-se.
Hesita. Desdiz-se. Mas o medíocre que o segue não tem a mesma
sensibilidade: seu vigor consiste em ser coerente e nítido no erro. O
medíocre tem a capacidade de ser lógico no desacerto, o brio de ser fiel
ao disparate. Assim são os marxistas e freudianos ortodoxos. Mas aqui,
sem intenção de cultivar paradoxos, eu direi que os seguidores medíocres
são sempre os que têm razão, isto é, são os que interpretam melhor os
erros do mestre, forçando-os até as últimas conseqüências.
O
pensamento de Freud, dissemos, é hesitante no que concerne ao mecanismo
da sublimação, mas através das reprises e das ressalvas, subsiste o
bastante para nos autorizar a dizer que ele considerava homogêneas com o
instinto sexual as manifestações psíquicas superiores. Se em algumas
passagens o processo é descrito como uma ativação ou estimulação de
funções psíquicas pré-existentes, noutros lugares, mais brutalmente, o
processo é apresentado como se a energia primitiva engendrasse, sob
disfarce, as formas de atividade superiores. No livro em que estuda as
reminiscências infantis de Leonardo Da Vinci, diz assim: "A observação
da vida cotidiana nos mostra que a maioria dos homens consegue derivar
partes consideráveis de suas forças instintivas sexuais em favor de sua
atividade profissional. O instinto sexual se presta muito para essas
contribuições, pois é dotado da faculdade de sublimação, isto é, capaz
de abandonar seu fim imediato em favor de outros fins não sexuais e eventualmente mais elevados no conceito dos homens". (Un souvenir d´enfance de Léonard De Vinci, trad. M. Bonaparte, pg. 52).
A
parte por mim sublinhada mostra que Freud quer evitar o julgamento de
valor deixando-o por conta do consenso. Não é ele, cientista, psicólogo,
que reconhece a superioridade real, a superioridade metafísica daqueles
fins, são os homens, é a cultura, será até, digamos assim, a força de
um preconceito que estabelece a tal superioridade. Com essa pequena
cautela o psicólogo tem as mãos livres para homogeneizar o efeito com a
causa.
É
aliás inerente ao pensamento freudiano a idéia de um abismo entre a
manifestação das coisas, visível ao homem comum, e a fisionomia das
causas, visíveis somente para os doutos. O mundo dos fenômenos é um
mundo de disfarces onde nada é o que parece ser.
Todo
analitismo, ou toda investigação polarizada pela hipertrofia das causas
materiais, chegará a esta mesma óbvia conclusão: há entre a fisionomia
do todo e os aspectos das partes uma diferença prodigiosa. O físico dirá
— como já disse o Edington — que sua mesa só é mesa, sólida, estável,
para o olho vulgar. Para o cientista ela é uma nuvem de elétrons e
prótons. A idéia de chocar o senso-comum e de mostrar que a face dos
fenômenos tem uma epiderme diferente dos nervos e ossos que a sustentam
não é de Freud, nem é nova. Em geral, todos os cientistas, e
principalmente os tolos, gostam muito de chocar o senso-comum com a
exibição das vísceras dos fenômenos. Em Freud, porém, o vezo tem
significação mais profunda e revela o pessimismo radical de sua
metafísica disfarçada também, já que tudo é disfarçado. Em Freud eu
diria que há uma exorbitação do erro nominalista que trouxe a cisão
entre a inteligência e o ser. O ser, para o psicólogo vienense, é algo
que tem um novo transcendental de perfídia e de deslealdade. É
essencialmente enganador.
Mas o que mais espanta na filosofia freudiana é a grosseria com que é tratada a noção de causa.
O exemplo da sublimação é frisante. Se a observação dos fatos
demonstra, no campo do microscópio psicanalista, a presença de matizes,
de lembranças marcadas de sexualidade, o psicólogo, com imperdoável
precipitação, afirma a causalidade. Um estudante de filosofia de alguma
universidade do século XIII que ouvisse tal raciocínio, piscaria o olho
para o colega próximo e diria: "cum hoc ergo propter hoc".
Com isto, logo por causa disto, é o que traduz essa fórmula cunhada para denunciar o erro elementar de julgamento que confunde concomitância com causa.
Todos
os casos que ilustram o fenômeno da sublimação só provam que o homem
tem a capacidade de elevar o potencial, o nível ontológico de uma
experiência primitiva e que a manifestação em nível elevado traz certas
marcas do nível inferior. E daí? Concluirei que o maior sai do menor, ou
que um ser possa sozinho por sua própria capacidade potencial, galgar o
nível entitativo superior? "Nada pode passar da potência ao ato, a não
ser por algo que já seja em ato", murmuraria ao nosso ouvido, e em
latim, o estudante medieval.
Os
mesmos fenômenos descritos por Freud seriam salvos com uma explicação
infinitamente mais lógica: o que se passa na sublimação é um processo de
erguimento ontológico, um processo de espiritualização semelhante
àquele que no dinamismo do conhecimento, por ação do intelecto agente,
espiritualiza o conteúdo da imagem dotando-a de inteligibilidade e de
universalidade. Como empirista, Freud não podia atinar com esse processo
de espiritualização promovida por energias espirituais em ato e capazes
de produzir a elevação da experiência primitiva. Situa-se pois em pólo
oposto a causa verdadeira do processo, e não é de admirar que no
resultado da sublimação subsista o gosto, a cor da matéria in-formada.
Basta dizer que a energia transformadora é sexuada e não sexual, uma vez
que provém de um espírito vivendo em condição carnal. Salva-se assim o
fenômeno sem ser preciso agredir o bom-senso e assassinar a razão.
("Diário de Notícias", 27/05/1956)
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