Referi-me,
em artigo anterior, ao pessimismo intelectual, inerente ao analismo e à
hipertrofia da investigação das causas materiais, que levava Freud a
ver o mundo psíquico como um mecanismo de disfarces e de ilusionismos.
Na extensão de sua concepção construiríamos uma metafísica em que o ser,
em vez de ser objeto adequado à inteligência, é o enganador, o
despistador. Teríamos uma espécie de deslealdade metafísica do ser, e um
novo transcendental de perfídia. Daí não é de admirar que o genial
investigador, de tanto considerar os fenômenos, tenha perdido a
lucidez de ver as naturezas; e por isso não saiba mais distinguir a
anormalidade da normalidade. Tratando das aberrações sexuais, eis o que
conclui Freud: “Somos levados, diante dessa freqüência da perversão, a
admitir que a disposição para a perversidade não é rara e excepcional,
mas é parte integrante da constituição normal”. (Introduction à la Psychanalyse, p.424).
A
primeira coisa que choca nesse trecho é a impropriedade dos termos. Se
ele conclui que tais ou quais fenômenos, pela freqüência com que
ocorrem, devem ser considerados normais, como se explica que ainda os
chamem de perversões? A segunda coisa que produz espanto é o conceito
que esse médico tem da normalidade. Normal, na sua definição, é aquilo
que ocorre freqüentemente. Então, se houver uma epidemia que atinja a
quase totalidade de uma população, os médicos poderão ficar em casa
descansando, porque todos estão normais. Ou deverão talvez procurar os
poucos não atingidos pela peste normalizadora para providenciar o
enquadramento deles na norma fornecida pelas estatísticas. Já abordei
esse problema, há tempo, a propósito de certos sociólogos que, seguindo
as lições de Durkeim (Les Régles de la Methode Sociologique),
definiam como normal aquilo que mais freqüentemente ocorre. Há erros
filosóficos que se explicam pela sutileza dos elementos postos em
equação; mas este é tão grosseiro, tão prodigiosamente estúpido que só
se explica por uma colossal obliteração da inteligência, ou por uma
espécie de fatalidade que leva os homens mais inteligentes a pagar um
tributo à burrice universal. Disse atrás que esses analisadores, atentos
demais aos fenômenos, não vêem as naturezas. O conceito de normalidade é
correlato ao de natureza. Só posso saber, de uma coisa, que está em
condições normais quando sei o que ela é. As essências entretanto não se
concretizam, não existem em estado puro. Inseridas nas outras
existências, sujeitas aos choques, às interseções, elas nos aparecem
machucadas, feridas, amassadas. Na medida que sofrem esses acidentes que
lhes subtraem alguma perfeição devida à sua natureza, as coisas se
afastam da normalidade. A anormalidade é, portanto, definida pela
presença de um mal físico ou moral que desfalca uma perfeição exigida
por natureza. No compacto universo criado, a anormalidade pode ser muito
mais freqüente do que a normalidade. Há mais automóveis arranhados do
que ilesos; há mais dentaduras incompletas que perfeitas. E assim, não
será por via estatística que poderemos decidir a questão. Nem sempre o
cientista está habilitado a se pronunciar sobre a normalidade em que se
acha uma coisa, porque nem sempre sabe defini-la, ou nem sempre vê a sua
essência. Num caso desses pode lançar mão do que os filósofos chamam
“abstração total”, e que consiste na consulta da coleção de coisas da
mesma espécie; para ter uma descrição mediana que toma provisoriamente o
lugar da definição. Mas tem a obrigação de saber que não pode
generalizar esse critério. Na maioria dos casos não podemos dizer que a
estatura de um homem é anormal, a não ser por uma comparação com o valor
médio. Mas é evidente que o médico, diante de uma apendicite supurada
ou de um câncer, não seguirá esse mesmo critério. Como também eu sei que
devo procurar um lanterneiro ainda que todos os sociólogos da escola de
Durkeim me provem que o automóvel-médio no Rio de Janeiro tem um ou
dois pára-lamas amassados.
Se
eu me convencesse de que é impossível conhecer uma natureza para poder
formar juízo do estado em que tal natureza se concretiza, então, por
amor à propriedade do termo e à lógica, eu deixaria de usar as
expressões “normal” e “anormal”, substituindo-as por “encontradiço” e
“raro”. E, se fosse médico, fecharia o consultório.
É
triste ter de repetir coisas tão óbvias. Mas o mundo é assim, cheio de
anormalidades. No caso de Freud, dirão que não se pode incriminar o
psiquiatra por suas deficiências filosóficas. É exato. Talvez seja mais
justo incriminar os filósofos que possuíam a melhor tradição, os mais
sólidos critérios, a mais gloriosa herança intelectual, e que, por uma
terrível mediocridade, não conseguiram dar o tom à cultura
contemporânea. Há, entretanto, um mínimo de bom senso e de saúde de
espírito que podemos reclamar em qualquer cientista, e que falta de um
modo impressionante em Sigmund Freud.
Atrás
daquele erro filosófico, e daquela impropriedade de termos, escondem-se
complexos de um radical e profundo pessimismo. Freud pertence a uma
família espiritual que traz na alma um certo rancor do ser, um
pessimismo infeccioso que vê o mal nas essências, ou que, por fim, já
não vê o mal onde ele existe. Se tudo é perversão, alegremo-nos com riso
amarelo, e cantemos o cântico novo que anuncia a extinção da secular e
incômoda diferença entre o bem e o mal, entre o mórbido e o saudável,
entre o reto e o torto. Neurotics, be glad! Amanhã ou depois,
pela generalização crescente, será a vez de se alegrarem os
homossexuais. E desde já podem aprontar o foguetório de ingresso na
normalidade os peculatários, os aproveitadores do poder, os funcionários
que ganham pelo que não fazem, porque o padrão de comportamento deles,
pela freqüência, está se tornando “parte integrante da constituição
normal” de nosso país.
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