Cícero de Andrade Urban
O
século XX representou o ápice da luta da modernidade em conceber uma
medicina autônoma, fundamentada apenas na ciência, isolando-a das
instituições religiosas, da metafísica e também da filosofia, com temor
de que estas pudessem contaminá-la com idéias supersticiosas que viessem
em prejuízo da razão positiva.
Entretanto,
como afirmou Lain Entralgo, "[...] a ciência pode sempre mais daquilo
que deve...", e muitos acontecimentos fizeram com que a opinião pública e
o ambiente acadêmico começassem a se preocupar com o desenvolvimento
desordenado e sem controles do discurso científico. O distanciamento das
humanidades tornou a ciência incompleta em seu objetivo fundamental de
servir ao homem.
A
bioética surgiu dentro deste ambiente histórico conturbado e mais
precisamente devido a dois fatores fundamentais: a proteção dos sujeitos
vulneráveis nas pesquisas científicas e aquela dada aos pacientes na
clínica. A experiëncia moral, por outro lado, sempre existiu nos seres
humanos individuais e na coletividade. É o fenômeno que verdadeiramente
antecede ao discurso bioético e é também, como a bioética, objeto da
razão. Entretanto, ao mesmo tempo, é subordinada a aspectos considerados
pouco racionais, tais como as emoções, os valores, as crenças e as
tradições, o que a torna ainda mais complexa em suas interpretações. O
verdadeiro desafio para a bioética contemporânea está no respeito à
autonomia individual aliado à objetividade da ciência, inserindo-os em
um sistema de valores que possam ser condivisíveis.
Neste
sentido, a bioética possui um vínculo irrenunciável com a ética
filosófica. Constitui uma das maiores encarnações do espírito filosófico
em toda a história, a ponto de caracterizar o ethos (originário do
grego e escrito aqui com eta para significar morada) atual em que
vivemos, assim como foram o Iluminismo e o Renascimento. Em poucas
décadas a bioética tornou-se parte integrante do ambiente acadêmico e
das discussões de alguns dos temas mais conflitantes da atualidade,
vencendo uma série de críticas iniciais que lhe foram feitas. Para
aqueles que estão envolvidos com ela, tanto no ambiente acadêmico quanto
à beira do leito, encontrar no seio da sociedade pluralista e secular
os elementos filosóficos para fundamentá-la dentro da linguagem da razão
e inserí-los no discurso bioético é algo muitas vezes oneroso e
difícil.
A
contribuição dos teólogos, sobretudo os protestantes e católicos, assim
como dos filósofos com inspiração cristã, foram marcantes para o
desenvolvimento da ética profissional nos Estados Unidos e,
posteriormente, ao da bioética. De fato, algumas das figuras mais
proeminentes da bioética mundial são teólogos e filósofos moralistas.
Mesmo no nosso meio grandes contribuições surgiram de pessoas com
inspiração religiosa. Talvez porque a experiência moral, sobretudo
aquela inserida dentro da tradição tomista, baseada na lei natural, não
seja imposta de fora, mas uma exigência interna e pessoal vivenciada
como uma maneira de sintonizar a natureza humana imperfeita com a
vontade de Deus. Assim, com esta fonte de inspiração, o bem seria a
tendência natural para os seres humanos. Isto, permitiu uma maior
clareza de conceitos para estes indivíduos no estabelecimento das
fundamentações para o discurso bioético.
Mas
a ética não precisa de Deus, mesmo considerando que existe proximidade
entre a ética e a religião dentro da chamada experiência moral em
relação à exigência do dever e do absoluto e da sua importância inegável
para o surgimento da bioética. Para Jorge José Ferrer e Juan Carlos
Álvarez reduzir a teologia e a religião à ética é empobrecê-las, e
reduzir a ética à teologia e à religião constituiria um grave problema
dentro da sociedade pluralista e secular em que vivemos. Na tradição
cristã o núcleo da experiência religiosa encontra-se em Deus, no Amor
Absoluto e não na observância de determinadas normas morais.
O
elemento básico fundamental para a bioética e para a ética filosófica é
a alteridade, o respeito ao próximo. Nesse sentido, aproxima-se
novamente do discurso religioso, mas podendo prescindir do mesmo sem
nenhum prejuízo prático. Um indivíduo isolado em uma ilha deserta não
têm necessidade da ética ou da bioética. Estaria apenas, com as suas
decisões, buscando preservar a sua própria existência, sem preocupar-se
com os demais ou com a continuidade da espécie. Assim sendo, como então
podemos conceber a existência de uma bioética de inspiração católica e
outra laica?
Bioética laica ou bioética da qualidade de vida
“Non enim vivere bonum est, sed bene vivere” - não é um bem viver, mas o viver bem - Seneca
Para
Francesco D`Agostino a bioética é ética, um ramo da filosofia e não da
teologia moral. Portanto nela devem ser empregados argumentos meramente
racionais, controversos entre si, mais ou menos condivididos, mas nunca
dogmáticos. Para ele, assim como para outros autores, a bioética é laica
(mesmo a personalista), é antidogmática e antimetafísica. Norberto
Bobbio dá um senso de exclusão de doutrina religiosa à palavra laico. O
estado laico não confessional não é nem religioso e nem ateu, nem
cristão e nem não cristão. Não representa uma nova cultura, mas uma
condição de sobrevivência para todas as culturas. Da mesma forma para
Umberto Eco, em seu debate com o Cardeal Carlo Maria Martini, a bioética
laica não está vinculada a nenhum magistério que não seja aquele da
reta razão. Neste sentido, ser laico não significa ser ateu ou
agnóstico, mas apenas excluir as premessas metafísicas e religiosas que
pretendam valer para toda a sociedade.
A
experiência moral então seria uma construção humana, sem uma fonte
externa de valores. Existem diversas correntes que fazem da bioética
laica um conjunto de teorias morais diversas e não uma única visão
dominante: utilitarista, contratualismo, principialismo, liberalismo,
etc. Entretanto, como afirma Giovanni Fornero, em muitos aspectos, as
suas argumentações se aproximam e partem do princípio da autonomia como o
mais importante, da disponibilidade da vida humana
(auto-disponibilidade), do conhecimento como instrumento de progresso,
da não aceitação do sofrimento e a defesa do valor qualitativo da vida
humana. Apresenta um conceito funcional de pessoa, sendo este o aspecto
mais original e controverso da bioética laica. Enquanto para a bioética
personalista ser pessoa depende da existência da natureza humana
(substrato ontológico essencial existente em todos os seres humanos),
para a bioética laica ser pessoa (e portanto sujeito ético e jurídico)
depende da existência de determinadas características e funções tais
como: consciência, capacidade de interação com outros seres e capacidade
de auto-determinação. Assim sendo, fetos, pacientes terminais,
inconscientes ou com graves problemas neurológicos estariam fora do
sacrário secular da bioética laica.
Esta
opção pluralista e liberal é o reconhecimento das diferenças como
condição preliminar e normativa ao discurso bioético laico. O seu
raciocínio é como se Deus não existisse. Mas nesse ponto, a bioética
personalista também está de acordo, pois se utiliza de argumentações
filosóficas e não teológicas em seu discurso. A bioética laica secular,
com suas diversas ramificações, é a corrente dominante na bioética atual
e aquela que encontra o maior número de seguidores, inclusive no
Brasil.
O que é a bioética católica e qual a sua importância?
“Non videtur esse lex, quae justa non fuerit” - uma lei injusta não é uma lei - Santo Agostinho
Existe
uma longa tradição dentro da Igreja Católica na reflexão sobre temas
que hoje são abordados dentro da bioética. Desde os escritos da
patrística sobre o suicídio e sobre as leis até os documentos recentes
do Magistério da Igreja sobre eutanásia e reprodução assistida. A
bioética católica está fundamentada na fé e na razão. Dentro da visão
católica existe o paradigma da sacralidade da vida, que está articulado
em três princípios fundamentais: criação por Deus, indisponibilidade e
inviolabilidade da vida humana. Apesar disso, a vida não é considerada
como um valor absoluto, pois o mais importante seria o que estaria
esperando na Jerusalém celestial, no pós-morte. Mesmo assim, dentro da
lei natural da tradição tomista, a vida sendo um dom, não poderia ser
objeto de especulações utilitarísticas. Para Angelo Bompiani a linha
teológica de matriz católica, sem renegar os fundamentos deontológicos,
considera na sua totalidade a complexidade do agir humano: nas intenções
do agente, nos valores em jogo, na conseqüências que derivam das
decisões e no ambiente sócio-cultural em que está inserido o sujeito.
Apesar de admitir excessões em casos particulares, para o Catequismo da
Igreja Católica existem atos que por si mesmos, independente das
circunstâncias em que se encontrem e das intenções do sujeito, que serão
sempre ilícitos, tais como o homicídio e o adultério. Dentro desta
visão não é lícito realizar um mal, mesmo que com ele se possa atingir
um bem.
O
conhecimento da bioética de inspiração católica é importante pois
pacientes e familiares que professam a religião católica esperam que
seus valores sejam respeitados, independente do credo do profissional de
saúde que esteja responsável pelos cuidados. Além disso, oferece uma
visão diversa daquela existente na antropologia pós-cartesiana que
fundamenta a bioética laica secular, que insiste na primazia do agir
sobre o ser e que nega a existência de uma natureza humana
pré-constituída. A bioética de inspiração católica é representada na
Europa pelo personalismo de Sgreccia e nos Estados Unidos, o que mais se
aproxima desta visão é a do paradigma das virtudes de Edmond
Pellegrino. No Brasil ainda existem poucos expoentes desta visão
personalista.
Dicotomia no discurso e na prática?
O
ex-presidente dos Estados Unidos Ronald Regan declarou que "[...]
legisladores, médicos e cidadãos devem reconhecer que o grande problema
está em afirmar e tutelar a sacralidade da vida humana ou abraçar, por
outro lado, uma ética social onde alguns tipos de vida devem ser mais
protegidos, enquanto outros não. Como nação, nós devemos escolher entre a
ética da sacralidade da vida e a ética da qualidade de vida". Os
Estados Unidos atualmente convivem com este dilema em suas decisões
políticas.
Ambas
as visões dominantes - a da sacralidade da vida e a da qualidade de
vida - exprimem a complexa realidade da bioética atual. Este conflito
dualista é mais intenso e em muitos aspectos inconciliável em suas
visões quando se discutem problemas como o aborto, a eutanásia, a
fertilização assistida e as pesquisas com células tronco embrionárias.
Nestes temas, a antítese entre as duas bioéticas - a metafísica e a
relativista - é notória. Apesar disto, ambas estão constritas a
co-existirem e dialogarem dentro do panorama da sociedade pós-moderna.
Dentro deste espírito, podemos conceber uma bioética sem Deus, ou até
que a bioética verdadeiramente seja laica em suas raízes fundamentais,
como filha da ética filosófica e da reta razão. Mas todas aquelas
correntes que anulem a visão do homem como centro da fundamentação
bioética, que forem contrárias ao respeito ao próximo (alteridade) e à
responsabilidade do homem para com o homem (sobretudo para com aqueles
mais vulneráveis) e para com o meio ambiente em que vivemos (compromisso
para com a continuidade da espécie) estarão e deverão estar condenadas a
viverem isoladas no academicismo, formalmente de fora do universo
prático.
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