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Joseph Ratzinger |
Na ocasião, cardeal Ratzinger. Hoje Papa Bento XVI.
Extraído da Palestra Verdades do cristianismo?,
proferida pelo cardeal Joseph Ratzinger, no dia 27 de novembro 1999,
na Universidade da Sorbone em Paris, publicada em italiano pela revista
Il Regno-Documenti, vol. XLV (2000), n. 854, pp. 190-195.
Criação e evolução, segundo o professor Ratzinger: o cristianismo é o verdadeiro iluminismo |
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A
separação operada pelo pensamento cristão entre metafísica e física vem
sendo progressivamente abandonada: tudo precisa voltar a ser “física”.
A teoria da evolução vai se delineando como a via para finalmente
provocar o desaparecimento da metafísica e tornar supérflua a “hipótese
de Deus” (Laplace), formulando uma explicação estritamente “científica”
do mundo. Uma teoria da evolução que queira explicar toda a realidade
torna-se uma espécie de “filosofia primeira”, que, por assim dizer,
representa o verdadeiro fundamento da compreensão racional do mundo.
Qualquer tentativa de colocar em ação causas diferentes daquelas
elaboradas por tal teoria “positiva”, qualquer tentativa de
“metafísica”, é tachada como um retrocesso para uma era anterior ao
iluminismo, como renúncia à aspiração universal da ciência. Portanto, a
idéia cristã de Deus deve ser considerada não-científica. A ela não
corresponde mais nenhuma theologia physica: em tal visão, a única theologia naturalis
é a teoria da evolução; e esta, justamente, não conhece nenhum Deus,
nenhum criador, no sentido dado ao termo pelo cristianismo (pelo
judaísmo e pelo islã), nem uma alma do mundo e nem mesmo uma força
propulsora ou dynamis, no sentido da “stoa” [escola estóica].
No entanto, no sentido do budismo poder-se-ia considerar todo este nosso
mundo como uma aparência, e o nada seria a verdadeira realidade; nesse
sentido, justificam-se formas místicas de religião, que pelo menos não
competem diretamente com o iluminismo (ou seja, com a razão).
Com isso, está dita a última palavra? A razão e o cristianismo estão definitivamente separados entre si?
De qualquer modo, não há como fugir da discussão sobre o alcance da
teoria da evolução como filosofia primeira e sobre a exclusividade do
método positivo como a única modalidade da ciência e da racionalidade.
Essa discussão deve ser empreendida por ambas as partes de modo sereno e
com disposição para o diálogo, o que até agora tem sido muito difícil.
Ninguém pode seriamente colocar em dúvida as provas científicas em
relação aos processos microevolutivos. Reinhard Junker e Siegfried
Scherer, em seu “manual crítico” sobre a evolução, dizem: “Tais
processos (processos microevolutivos) tornaram-se bem conhecidos a
partir dos processos de variação e de formação naturais. O exame deles
mediante a biologia da evolução permitiu a aquisição de importantes
conhecimentos sobre a genial capacidade de adaptação dos sistemas
vitais”. Eles afirmam, conseqüentemente, que o estudo das origens pode
ser bem definido como a disciplina principal da biologia. Portanto, a
pergunta que um crente faria à razão [evolutiva] não se refere a isso,
mas à sua pretensão de se tornar philosophia universalis,
explicação global do real, e assim rejeitando qualquer outro nível de
pensamento. No seio mesmo da teoria da evolução o problema aparece
quando da passagem da micro para a macroevolução. Sobre isso, porém,
Szathmáry e Maynard Smith – ambos convictos defensores de uma teoria
globalizante da evolução – declaram: “Não há nenhum motivo teórico para
se presumir que as linhas evolutivas, com o tempo, aumentem de
complexidade; não há nenhuma prova empírica de que isso ocorra”.
A questão que devemos levantar vai mais fundo: o problema é se a teoria
da evolução pode se apresentar como teoria universal de todo o real,
além da qual não são mais admissíveis e nem mesmo necessárias
ulteriores perguntas sobre a origem e sobre a natureza das coisas; ou se
tais questões últimas não podem ultrapassar o âmbito do que é possível
investigar só com as ciências naturais.
Gostaria de colocar a pergunta de uma forma ainda mais direta. Será que
já se disse tudo com um tipo de resposta como aquela que encontramos,
por exemplo, na seguinte formulação de Popper: “A vida, tal como a
conhecemos, é constituída por corpos físicos (ou melhor, por processos e
estruturas) que resolvem os problemas. As diversas espécies
aprenderam isso através da seleção natural, isto é, através do método
da reprodução mais variação; um método que, por sua vez, foi aprendido
com o mesmo método. Isso é um regresso, mas não é infinito...”? Não
acredito.
Em última análise, trata-se de uma alternativa que não pode ser
resolvida só naturalisticamente e nem mesmo filosoficamente. Trata-se
da questão se a razão ou o racional surgiu por acaso e por necessidade
(ou, com Popper, que se reporta a Butler, por luck e cunning – o acaso
fortuito e a previsão), portanto do irracional, se a razão é um
subproduto casual do irracional finalmente irrelevante no oceano do
irracional, ou se continua sendo verdade a convicção basilar da fé
cristã e de sua filosofia: In principio erat Verbum – na origem de todas as coisas está a força criadora da razão.
A fé cristã é, hoje, tal como no passado, a opção pela prioridade da
razão e do racional. Tal questão última não pode mais – como dissemos –
ser decidida com argumentos derivados das ciências naturais, e até
mesmo o pensamento filosófico bate-se, aí, contra os próprios limites.
Nesse sentido, não há uma demonstrabilidade última da opção cristã
fundamental. Mas a razão poderia verdadeiramente renunciar à prioridade
do racional sobre o irracional, à prioridade do Logos, sem se
auto-anular?
O modelo de explicação apresentado por Popper, que com variações
diversas retorna à apresentação da “filosofia primeira”, demonstra que a
razão não pode deixar de pensar também o irracional segundo a sua
medida, portanto racionalmente (resolver problemas, aprender métodos),
restabelecendo desse modo, implicitamente, o primado da razão, que
acabara de ser negado.
Mediante a sua opção pelo primado da razão, o cristianismo continua
sendo, ainda hoje, “iluminismo”. Eu penso que um iluminismo que cancele
essa opção, contra todas as aparências, não representa uma evolução,
mas uma involução do iluminismo.
Vimos que na concepção do cristianismo primitivo os conceitos de natureza, homem, Deus, ethos
e religião estavam indissoluvelmente ligados entre si e que justamente
essa imbricação contribuiu para a racionalidade do cristianismo na
crise dos deuses e na crise da antiga racionalidade. A orientação da
religião para uma visão racional da realidade em geral, o ethos
como parte dessa visão e a sua concreta aplicação sob o primado do amor
combinavam-se perfeitamente. O primado do Logos e o primado do amor
mostraram-se idênticos. O Logos não apareceu só como razão matemática na
base de todas as coisas, mas como amor criativo até o ponto de se
tornar compaixão com a criatura. O aspecto cósmico da religião, que
adora o Criador na força do ser, e o seu aspecto existencial, a
exigência de redenção, confluíram e se tornaram um unicum.
De fato, qualquer explicação da realidade que não seja capaz de fundar
significativa e racionalmente um ethos permanecerá insuficiente. Ora, a
teoria da evolução, lá onde se arroga o status de philosophia universalis, procura fundar de novo evolucionisticamente também o ethos. Mas esse ethos
evolucionista, que reencontra inevitavelmente o seu conceito-chave no
modelo da seleção, portanto na luta pela sobrevivência, na vitória do
mais forte, na adaptação bem-sucedida, tem a oferecer algo muito pouco
consolador. Mesmo quando procura melhorá-lo de vários modos, continua
sendo, em definitivo, um ethos impiedoso. A tentativa de instilar o racional em algo que é irracional em si fracassa aí de modo evidente.
Para uma ética da paz universal, do amor efetivo ao próximo, da
necessária superação do particular, de que temos necessidade, tudo isso
tem pouca serventia. Nessa crise da humanidade, a tentativa de dar
novamente um sentido racional à idéia do cristianismo como religião
verdadeira deve, por assim dizer, apoiar-se em igual medida na
ortopráxis e na ortodoxia. Seu conteúdo, hoje, tal como no passado,
deve consistir essencialmente no fato de que o amor e a razão, como
dois verdadeiros pilares do real, confluem mutuamente: a verdadeira
razão é o amor, e o amor é a verdadeira razão. Em sua unidade, eles
constituem o verdadeiro fundamento e o objetivo de todo o real. |
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