quinta-feira, 10 de março de 2011

O diálogo entre Budismo e Cristianismo

SCHMIDT-LEUKEL, Perry; GÖTZ, Thomas Josef; KÖBERLIN, Gerhard (orgs)
Buddhist Perceptions of Jesus, St. Ottilien: EOS-Verlag, 2001, ISBN 3-8306-7069-9, 180 pgs.

por Rafael Shoji [raffas@attglobal.net]
(Universidade de Hanover)
O diálogo entre Budismo e Cristianismo tem obtido um grande destaque, principalmente devido à crescente atração e simpatia que se encontra com relação ao Budismo nos chamados países ocidentais. De uma maneira mais geral nesse livro se acrescenta a principal função de um estudo comparativo entre quaisquer duas tradições religiosas, que é buscar o entendimento e o conhecimento de outras perspectivas espirituais. Se por um lado esse ganho nos faz conhecer melhor outras visões religiosas da realidade, um outro efeito é também um fortalecimento da própria identidade a partir de uma redescoberta dos nossos conceitos, que expressos em outra linguagem podem adquirir um novo significado e poder de realização (pg. 11). Não é incomum que muitos reencontrem sua própria identidade religiosa somente através de uma tal comparação. Nesse contexto esse livro é uma excelente oportunidade para os cristãos entenderem como os budistas analisam o Cristianismo, a partir das percepções budistas da figura de Jesus, fruto de uma iniciativa que desde muitos anos se dedica ao diálogo entre cristãos e budistas (ver as inúmeras informações disponíveis e sugestões para futuras leituras em http://www.buddhist-christian-studies.org).
Em geral tal diálogo acontece principalmente a partir da exposição pessoal ou filosófico-teológica da outra tradição religiosa, ou de algum de seus elementos. Uma das principais qualidades positivas desse livro é que a perspectiva metodológica para esse diálogo inclui além da visão mais espiritual, também um conhecimento histórico e uma separação geográfica (Extremo Oriente, Sudeste Asiático e Europa), elementos que em geral são ignorados em outras abordagens. O diálogo se localiza então no tempo (história) e no espaço (geografia), estimulando uma necessária contextualização. Uma tal perspectiva histórica inclui diversas vantagens, sendo a principal delas um entendimento mais refinado dos preconceitos e estereótipos, enquanto uma separação geográfica mostra como fatores locais influem no encontro entre as religiões. Isso faz com que esse diálogo encontre uma dimensão mais representativa das tensões históricas e da realidade mais popular, evitando que ele seja somente representativo das posições dos místicos ou teólogos. No contexto do contato entre Budismo e Cristianismo, os artigos que utilizaram esse método, bem como as contribuições a partir de uma perspectiva mais individual, mostram claramente o avanço global positivo desse diálogo no decorrer desse século. Essa tese é demonstrada naturalmente no decorrer do livro. Enquanto que os artigos que relatam a história desse contato mostram um panorama de conflito e de ataques mútuos, os textos que tratam da exposição atual e mais individualizada do papel de Jesus para os budistas mostram a visão não só conciliadora mas também mutuamente construtiva dessa troca.
Mas o caminho foi e continua sendo longo, estando ainda cheio de obstáculos. Nos artigos responsáveis pelo panorama histórico, três pesquisadores descrevem detalhadamente os conflitos locais em diferentes contextos. No contexto China e Japão, Iso Kern mostra como os jesuítas apresentaram o Catolicismo para os chineses no séc. XVII, o que foi feito principalmente a partir de argumentos racionais sobre Deus e a criação, praticamente excluindo a figura de Jesus da doutrina divulgada. Isso fez com que a figura de Jesus estivesse quase ausente nas polêmicas da época, e quando essa figura aparece, as diferenças culturais fazem com que Jesus como salvador seja praticamente ininteligível para os chineses. As principais dificuldades foram a unicidade da encarnação de Deus em Jesus (no Oriente em geral várias encarnações são potencialmente reconhecidas), a morte de Jesus na cruz (para os chineses isso era algo contraditório com a santidade), bem como o conceito de redenção dos pecados humanos pelo sacrifício de Jesus (que contraria o conceito budista de karma) (pgs. 38-41). A parte sobre o Sudeste Asiático se concentra no chamado Budismo modernista no Sri Lanka, tendo sido escrita por Heinz Mürmel. O Budismo modernista, que foi uma importante e influente força de renovação do Budismo Theravada, resultou de uma reação contra as atividades missionárias cristãs. Como Mürmel mostra, esse movimento se concentrou especialmente no meio laico e urbano, e sua crítica foi fruto do encontro com setores específicos do Protestantismo. Fatores importantes para essa reação foram uma associação do cristianismo com interesses coloniais no Sri Lanka, o que gerou esse movimento budista com um forte teor nacionalista. Nesse confronto foram decisivos os debates entre budistas e cristãos, principalmente o debate de Panadura em 1873. Esses famosos debates foram responsáveis por uma significativa revalorização da religião e da identidade local, já que nessa época o Budismo foi considerado como sendo bem mais compatível com época moderna do que o Cristianismo, considerado seu rival. Além de descrever esse contexto histórico e esses debates, o artigo também mostra a vida e os argumentos de um dos mais importantes expoentes dessa tendência, Anagarika Dharmapala (1864-1933). Para Dhramapala o Cristianismo apresentaria uma história de intolerância, opressão, violência e superstição (pgs 74-77). Apesar de criticada no debate de Panadura (pg. 69-70), a figura de Jesus encontra uma simpatia na visão de Dharmapala, que no entanto culpa as instituições cristãs pela perversão do ensinamento e pelas agressões em nome de Deus (pg. 77). O contexto da Europa é representado pelo artigo de Frank Usarski, que mostra a percepção do Cristianismo nos primeiros convertidos alemães ao Budismo na virada do séc. XX, principalmente a ambígua e controversa figura de Karl Seidenstücker (1876-1936). Muitos dos argumentos contra o Cristianismo são diretamente derivados do Budismo modernista, com a diferença de que no contexto europeu a história e a ciência assumem uma importância muito maior. O Cristianismo é considerado por esses primeiros budistas como sendo eticamente destrutivo, especialmente com relação aos animais, e de ser incapaz de criar padrões morais para a civilização ocidental da época. Isso seria comprovado não só por uma história de transgressões violentas (como as Cruzadas e a Inquisição), mas também pelo fato Cristianismo ser responsável por uma destruição cultural nas suas atividades missionárias na Ásia. Uma outra crítica é que o Cristianismo não teria um conteúdo histórico próprio, tendo sido na verdade uma deturpação derivada de princípios das religiões hindus ou do Budismo. Essa hipótese altamente especulativa era comum no ambiente budista da época e foi realmente objeto de vários estudos históricos, que não puderam comprovar essa dependência. Como Usarski mostra, essa atitude era parte de uma retórica que pode ser entendida dentro do processo de formação da identidade budista, bem como os primeiros passos em sua aculturação. Além disso, essas acusações contra o Cristianismo eram uma reação contra as fortes críticas recebidas pelos teólogos cristãos da época, que apresentavam o Budismo como uma religião que leva o homem a uma passividade pessimista (seguindo a interpretação de Schopenhauer) ou até ao suicídio.
Os textos que tratam de uma visão religiosa mais específica, tanto as visões de Jesus apresentadas pelos budistas, quanto às expectativas cristãs do que os budistas podem descobrir em Jesus, apresentam na minha opinião níveis de qualidade muito variados. Isso não deixa de ser natural devido às diferentes tendências individuais dos autores, muitas vezes contraditórias, o que se soma às diversificadas expectativas e inclinações dos leitores. Nesse sentido cada leitor deve decidir por si. O contexto China e Japão é representado por Shizuteru Ueda, representante da chamada Escola de Kyoto, que se tornou famosa devido ao seu estudo entre as relações entre Zen e Cristianismo, com uma forte influência da filosofia existencialista e do estudo da mística. Seguindo os passos da escola de Kyoto, especialmente em relação ao filósofo zen Keiji Nishitani (1900-1990), Ueda afirma a não fundamentação da existência (pg. 43) e discute a visão da unidade de Deus e do homem na figura de Jesus como uma particularidade histórica que não pode ser facilmente aceita pelo Zen. Para meu gosto particular, no entanto, essa mensagem se encontra permeada de uma metafísica que parece desnecessária. Como exemplo, ao discutir a realização do princípio Mahayana de sunyata, que é comumente traduzido como vazio, escreve Ueda: "Sunyata moves as sunyata to the sunyata of the sunyata." (pg. 46). Por outro lado, Ueda também defende um privilégio da Europa, no contexto da importância do Zen para a renovação religiosa, o que para mim carece totalmente de justificação. Ele escreve: "To put it bluntly, only what which counts in the European context can be also become decisively effective in the world." (pg. 47) . No contexto do Sudeste Asiático, Santikaro Bikkhu apresenta a visão de Jesus e do Cristianismo no pensamento de Buddhadasa Bikkhu (1906 - 1993), o importante monge e pensador tailandês que também foi um dos principais responsáveis pela modernização do Budismo Theravada. Estabelecida na diferenciação entre a linguagem religiosa popular e a linguagem do Dhamma (sânscrito Dharma), nota-se um esforço de integração da figura de Jesus e do Cristianismo no contexto budista, em claro contraste com as tendências nacionalistas e conflitos colonialistas ocorridos nos debates em Sri Lanka. No contexto europeu Karl Schmied apresenta principalmente a visão de Jesus nos escritos do monge vietnamês Thich Nhat Hanh. Se por um lado Thich Nhat Hanh tem sido um dos principais articuladores do chamado budismo engajado, com bastante prestígio nos países ocidentais e com escritos de alcance e fama mundial, ele também tem sido criticado por distorcer os conteúdos religiosos a ponto de ficar difícil a sua própria identificação original com o Budismo (conforme a introdução no mesmo livro, pg. 20). O livro por fim também inclui duas expectativas cristãs de Notto Thelle e Michael von Brück, por sinal com posições bastante diferentes, sobre o que eles esperam que os budistas descubram em Jesus.
Em resumo, esse livro apresenta um ponto bastante rico do diálogo entre o Budismo e Cristianismo, apesar do Budismo Tibetano não ter sido proporcionalmente representado e a visão de Jesus ser um ponto polêmico mesmo dentro do Cristianismo. No entanto, fica claro que a visão cristã da unicidade de Jesus Cristo na história da salvação é contraposta à visão budista que assimila a figura de Jesus dentro de conceitos budistas mais abstratos. A história desse contato também mostra que houve um significativo progresso no entendimento entre essas duas religiões, que apesar dos conflitos passados entraram em uma fase de diálogo que apresenta um futuro promissor, apesar das reconhecidas diferenças.
Além de mostrar esse panorama geral, o livro mostra uma perspectiva metodológica bastante frutífera para o diálogo inter-religioso em geral, que com isso pode dar um novo impulso ao já tradicional ritual conjunto ou à cooperação na ação social, sendo uma alternativa à busca de similaridades a partir da mística. Indo um pouco mais além, acho que pode ser sugerido que outros resultados da ciência da religião, frutos da sociologia e da antropologia, também podem ser utilizados com sucesso no diálogo entre as religiões (sobre isso ver o artigo de Pye, Michael. 2001. The study of religions and the dialogue of religions em Marburg Journal of Religion Vol 6 No 2, June 2001, disponível em http://www.uni-marburg.de/religionswissenschaft/journal/mjr/kyoto.html). Isso pode fazer com que essa troca tenha uma representatividade maior do setor leigo e popular, cuja opinião atual sobre outras religiões é em geral ignorada ou pouco trabalhada. Por outro lado, aqui se pode ainda lembrar que a perspectiva comparativa entre as religiões também faz parte da própria história da ciência da religião. Esse papel da ciência da religião, como uma possível intermediária entre as tradições espirituais a partir de uma perspectiva histórica e antropológica, poderia fazer com que esse diálogo tenha uma consistência e um contato com a realidade que muitas vezes se encontra ausente nas tentativas atuais. E se no caso do Budismo e do Cristianismo esse diálogo se encontra em um nível razoavelmente avançado, o mesmo não pode ser dito em relações a outras religiões. E se fatores religiosos parece estar no centro de muitos conflitos atuais, uma solução a partir do real entendimento desses elementos é raramente tentada, o que pode ser uma miopia causada pela até então relativa incompreensão do papel da religião no diálogo intercultural.

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