Por Francisco de Assis Razzo
1. Este texto tem como objetivo analisar dois assuntos
seguidos de um desses Cadernos do Professor, direcionado especificamente
para a disciplina de Filosofia para a 2ª Série do Ensino Médio do 3º
Bimestre de 2008, que a Secretaria da Educação [de São Paulo] tem
implementado como Proposta Curricular, onde se pode constatar uma
postura brutalmente "ideologizante" e pouco filosófica.
Duas aulas são propostas, a saber: "Filosofia e
Humilhação", "Filosofia e Racismo". Isso pra ficar apenas nesse caderno e
nessas aulas, fora outros. Chamo aqui ideologia qualquer distorção do
real fundamentada numa visão de mundo ou em alguma doutrina filosófica
fortemente ligada à tendência política e que camufla essa tendência.
2. Podemos chamar de doutrinação ideológica: a) tudo
aquilo que sai do foco da disciplina (no nosso caso a filosofia) para
ficar tratando de assuntos relacionados a temas do noticiário político
ou internacional. b) que adota publicações e autores, sem crítica
específica, identificados com determinada corrente ideológica, política e
filosófica; impõe a leitura de textos que mostram apenas um dos lados
de questões que são polemicamente controversas; c) submete os alunos à
discussão polêmicas em sala de aula sem fornecer os instrumentos
necessários à análise de mensagens veiculadas a certa postura ou
inclinação filosófica, sem dar tempo ao aluno para refletir sobre o
fundamento do conteúdo; d) encaminha o debate de qualquer assunto
controvertido para conclusões que necessariamente favoreçam pontos de
vista de determinada corrente de pensamento; e) não admite a mera
possibilidade de que o "outro lado" possa ter alguma razão; f)
utiliza-se da função para propagar idéias e juízos de valor
incompatíveis com os sentimentos morais e religiosos dos alunos. Há uma
série de outras posturas que compromete ideologicamente um tema, creio
que para análise dos temas do CP essas já bastam.
3. Se eu adotasse uma postura filosófica baseada em
Platão, Aristóteles, Plotino, Santo Agostinho, São Boaventura, Santo
Tomas de Aquino, Descartes, Pascal, Hume, Kant, Schelling, Kierkegaard,
Husserl, Voegelin, só pra ficar em alguns nomes, eu jamais ensinaria aos
meus alunos que a filosofia serve para "pensar novas formas de relações
sociais" ou "inserir os jovens numa prática política, a partir de
problemas de imediata configuração ética", cujo mote é "visar levar os
estudantes a uma reflexão sobre injustiças e violências cotidianas" pelo
viés do "enfrentamento a partir do compromisso político" cujo enfoque
seja o da "exclusão social". Honestamente, isso não faz parte do
programa filosófico proposto por esses filósofos, muito pelo contrário,
causaria muita estranheza; claro que qualquer um pode objetar dizendo
que os nossos problemas sociais, conseqüentemente os filosóficos e
pedagógicos, não são os mesmos que os deles e que, exatamente por isso,
devemos construir uma educação voltada apenas para os nossos problemas,
nesse sentido, esquecer ou abandonar a filosofia desses caras por ser
ultrapassada. Ou ainda objetar que a filosofia de Platão toda ela
formatada para construção de uma República e, nesse caso, sua
preocupação desde o início era a de relacionar
Filosofia-Educação-Política, não obstante, isso seja feito nos moldes do
pensamento grego cuja complicação histórica é bem genuína daquele
momento. Aristóteles a mesma coisa. Plotino a mesma. Santo Agostinho
etc. E todos esses não tem nada a ver com o modo como associamos
Educação com Política, precisamente hoje. Ou seja, é preciso escolher um
filósofo que fala mais dos nossos problemas, um que esteja mais próximo
de nós, como Hegel, Heidegger, Sartre, Foucault, Marx, Gramsci, Adorno,
José Gomes Filho, Jair Batista da Silva, Judith Butler etc. Por que
esses e não os outros? Por que esses justificam os nossos problemas? Ou
por que não pensar que nossas mentiras são justificadas por eles? Qual o
critério que me faz escolher a "Dialética do Esclarecimento" de
Adorno-Horkheimer e não a "Cidade de Deus" de Santo Agostinho? Por que
escolho Marx e não Leão XIII? Quando os critérios dessas escolhas não
são claros, precisamos suspeitar de ideologia ou doutrinação. Se eu sou
cristão católico conservador ou anarquista libertino, ou ainda, marxista
stalinista ou do tipo gramsciano, isso certamente influenciará e muito
na elaboração do meu programa de ensino. Como nossa escola é pública,
não posso evidentemente basear nas minhas preferências ou inclinações
intelectuais; é mais do que uma exigência que os critérios que definem a
escolha dos temas e, principalmente, dos textos e autores sejam bem
determinados, é uma obrigação do autor! E a Verdade a obrigação do
Filósofo.
***
4. É justamente o que não acontece quando é proposto aos
nossos alunos sobre "Filosofia e Humilhação", "Racismo e Filosofia" ou
"Feminismo e Filosofia". Vejamos o quanto é problemático o conceito de
"Humilhação social", baseado no psicanalista de viés marxista, José
Gomes Filhos: "A humilhação social consiste em uma modalidade de
angústia disparada pelo impacto traumático da desigualdade de classe,
isto é, a angústia que se sofre quando alguém se depara com um abismo
chamado desigualdade", ou ainda, "a desigualdade experimentada do lado
de fora é internalizada como sofrimento, ao qual muitas pessoas já estão
habituadas" (p. 9). "Existe em nossa sociedade uma hierarquia constante
que leva o humilhado a sentimentos que o agridem", "Na sociedade, todos
são, em alguma medida, humilhados, mas no caso das pessoas mais pobre
isso é constante e vai da infância à velhice", "Angústia que os pobres
conhecem bem e que, entre eles, inscreve-se no núcleo de sua submissão"
(p.10). "A humilhação é uma modalidade de angústia que se dispara a
partir do enigma da desigualdade de classes. Os pobres sofrem
freqüentemente o impacto dos maus-tratos. Psicologicamente, sofrem o
impacto de uma mensagem estranha, misteriosa: 'vocês são inferiores'".
Só faltou o autor deduzir disso que é preciso eliminar, à força ou não, a
sociedade de classe. Agora eu pergunto, por que esse autor? Por que não
outro que negue a idéia de "Igualdade" como paradigma de uma sociedade?
Por que não analisar com nossos alunos que por trás do conceito de
"humilhação social" vive uma filosofia marxista extremamente
controversa. Não dá passivamente pra aceitar esse conceito. Poderia ser
sugerida, justamente, uma série de outros autores que questionam essa
noção.Por exemplo, o próprio Platão ou Nietzsche, ou Santo Agostinho,
Aristóteles ou Tomas de Aquino, Alasdir MacIntayre ou Charles Taylor.
Nós professores de filosofia sabemos bem que o conceito de
"igualdade"/"desigualdade" social é um problemão filosófico!
5. Vamos supor uma situação muito simples, baseada
justamente nessa concepção de "humilhação social". Certa aluna leva um
notebook na escola cuja condição pecuniária da maioria é baixa. Senta na
hora do recreio com uns amigos para mostrar umas fotos de um trabalho
de ciência. Cinco garotos arrebentam a menina na saída da escola e ainda
roubam o notebook. Por que? Porque "internalizaram um abismo enigmático
chamado desigualdade?", "sentiram-se angustiados, internalizaram
misteriosamente sua inferiorização e agredidos por serem pobres,
resolveram roubar e espancar menina?". Claro que qualquer cartilha
socialista (seja qual for o viés) diria: esses problemas se resolvem
quando eliminarmos as classes. Gramsci não quis fazer isso à força e
escolheu o funcionário ou intelectual orgânico que atuará, sobretudo, na
educação – vide Paulo Freire no Brasil – para realizar seu projeto
socialista. Atuando como uma hegemonia cultural, manipula a mentalidade
viés educação e engajamento dos trabalhadores que atuarão como
intelectuais representantes dessa classe outrora "humilhada
socialmente". Mas nós não podemos nos furtar a isso e ainda que isso
seja o esperado precisamos analisar criteriosamente todos os possíveis
mecanismos dessa articulação político-filosófica. Mas será que isso
resolve o problema da menina que foi espancada e roubada porque levou o
notebook na escola? É eticamente viável legitimar determinadas atitudes
de comportamento só porque fulano é ou não pobre? Como é que vou ler um
texto desses para os meus alunos que tem "interiorizada magicamente" a
heróica noção de "paz, justiça e liberdade"? Se o problema dos alunos é
leitura e "humilhação social", por que não distribuir o "Quatrocentos
contra um" do magistrado professor William da Silva Lima?
***
6. Passemos agora à análise do "Filosofia e Racismo"
cujo objetivo é, segundo o CP, a "discussão ética e política a respeito
do racismo".A chamada "situação de aprendizagem" recomenda que se inicie
com a seguinte pergunta: "existe racismo no Brasil?" e logo em seguida
faz uso do texto "A particularidade do racismo do Brasil" do historiador
e sociólogo de viés marxista Jair Batista da Silva. A segunda aula foi
proposta com base no texto do psicanalista social Albert Memmi, que
escreveu obra importante sobre o problema das estruturas das relações
sociais de colonização de viés, evidentemente, materialista. De qualquer
maneira, essa Situação de Aprendizagem ao invés de discutir a polêmica
do racismo livre de qualquer perspectiva ideológica, pelo contrário,
reforça ainda mais a idéia de que todos nós somos racistas. Típico de
análises ideológicas.
7. Por que não apresentou a proposta da aula como
discussão e polêmica aberta: existe ou não existe racismo no Brasil?
Somos ou não somos um país racista?Quais os critérios científicos e
filosóficos pra dizer que alguém é ou não racista? Poderia investigar
autores que pensam completamente o contrário. O texto força tanto a
idéia de que somos racistas que chega ser constrangedor só imaginar um
professor branco lecionar pra uma classe, ou até mesmo comunidades, cuja
maioria é de negros. E o constrangimento para os amigos ou namoradas de
negros? O assunto é tão polêmico que jamais poderia ter sido adotada
essa postura: "Para o racista, a identificação do outro com um mal
qualquer é decisiva e absoluta." Até aí tudo bem, de fato, ser racista é
fazer essa identificação. O outro passa mesmo a ser visto como o Mal a
ser eliminado. O problema é o que o autor deduz disso e como isso é
disseminado nas salas de aula e, consequentemente, na opinião pública:
"Para agir de forma racista é necessário essa identificação absoluta,
mas também deve haver outras que são relativas." Entre "haver" e "deve
haver", ou seja, entre a realidade e a possibilidade dessa realidade há
um abismo epistemológico que não autoriza, em hipótese alguma, nenhum
autor concluir isso: "Ter amigos negros não faz ninguém menos racista.
Ser filho ou parente de negros também não." Como assim ter "amigos
negros não faz alguém menos racista"? É na própria noção de amizade que
está o reconhecimento absoluto do outro em absoluta dignidade. Como
assim, "ser filho ou parente de negros também não"?Estão dizendo que a
própria família é racista, como? Se é ela justamente a realização
fundamental de qualquer cultura. A dedução disso só pode ser mesmo de
"racismo imaginário" como alega o autor, pois imaginado na cabeça dele e
de alguns outros autores que agora querem disseminar a qualquer custo
essa imaginação.
8. Continua: "O que faz uma pessoa menos racista é
entender que o racismo é um mal cruel e excludente, que relega as
vítimas à pobreza material e destruição de seus valores e de sua
cultura." Claro, aqui está a base da ideologização que venho discutindo:
deduzir o racismo a partir da constatação e dados econômicos. Típica
ideologia reducionista! Como ele não consegue provar a real presença
atuante do racismo, na medida em que é capaz de produzir efetivamente
resultados pelo acúmulo de exclusões propositais dos negros pelos
brancos, o autor, evidentemente, preferiu antes desarticular a idéia de
amizade, família, solidariedade, coleguismo etc., fundamentado em textos
que só vê a coisa por esse viés.Ainda não terminou: "A relação do
racismo contra a sua vítima está ligada, diretamente, ao pensamento
colonizador. A atitude racista é uma atitude de colonizar. É preciso
ensinar o outro a ser gente, a salvar a sua alma, ensiná-lo a se vestir,
falar, comer; enfim, a ser como eu. Sem nunca dar os meus privilégios, o
outro sempre será inferior, por mais que pareça civilizado. Um bom
negro é aquele que trabalha com humildade, reconhece o seu lugar – lá em
baixo. Não dá a sua opinião, mas segue a opinião dominante. Aprende a
verdadeira cultura, que só pode ser cristã e européia. Aprender a se
comportar..." (p. 19) Então, por que estamos estudando filosofia na
escola? Se ela é o legado da cultura Européia, em essência,
greco-cristã? Ler esses textos sinceramente me deixou constrangido. O
que se pode deduzir dele não é nada mais além do que uma verdadeira
contradição intelectual e moral. "Se a escola deve valorizar atitudes
anti-racistas" esse texto cumpre exatamente o papel inverso: transforma o
suposto racismo imaginário (da cabeça de alguns autores) uma atitude
real de segregação racial, na escola, na família, nos círculos de
amizade. Os instrumentos apresentados pelo autor (evidente que não estou
dizendo que o autor seja racista) para se combater o suposto racismo
são eles, essencialmente, racistas. É necessário um aprofundamento e uma
escolha mais criteriosa no que diz respeito às essas categorias de
pensamento usadas para julgar o que é ou não racismo. A escola é o lugar
livre do pensamento e não do julgamento tendencioso.
0 comentários:
Postar um comentário