sábado, 19 de fevereiro de 2011

Mary del Priore resenha livro de Jorge Caldeira

Enviado por O Globo -
História do Brasil com empreendedores, de Jorge Caldeira. Editora Mameluco, 336 páginas Por Mary Del Priore
Apresentado, em geral, como "jornalista", "escritor", "ensaísta" ou qualquer outra fórmula que o afaste da disciplina histórica, Jorge Caldeira é, contra tudo e contra todos, um dos mais prolíficos e criativos historiadores brasileiros. Dono de uma pena ágil, capaz de pesquisas alentadas e hoje, se beneficiando do conhecimento adquirido na realização de uma obra importante - "Mauá, Empresário do Império", "A nação mercantilista", "O banqueiro do sertão", entre outros - ele surpreende com um livro que para muitos há de cheirar a enxofre: "História do Brasil com empreendedores". Na melhor tradição anglo-saxã o título revela o assunto de que trata: os atores centrais não são mitos. Mas figuras garimpadas através de documentos e que comprovam a existência de gente que, ao longo da chamada Colonização, foi capaz de criar riqueza por conta própria, abastecer o mercado interno, fomentar o consumo de produtos os mais variados - de arroz a couro, de cativos a manufaturados. Enfim, de gente que foi capaz de tornar a Colônia mais rica do que a metrópole. Autênticos empreendedores - palavra, que como demonstra Caldeira, já está presente na carta de Pero Vaz de Caminha e nos dicionários oitocentistas - eles deram um dinamismo nunca dantes estudado a nossa economia, tornando-a mais forte do que a de Portugal. Extraordinário: eram homens livres e, mais importante, mestiços. Totalizavam 62% da população.
E por que o cheiro de enxofre? Pois durante décadas, ai do jovem pesquisador ou historiador graduado que não se curvasse ao que Caldeira chama de "ideologia corporativa": a crença de que a colônia era absolutamente dependente da metrópole. De que toda sua riqueza seguia para Portugal. De que a exploração em benefício exclusivo da metrópole lançou o Brasil num ciclo de violência, pobreza e maus resultados econômicos que "explicariam" sua situação até os dias de hoje. Dividido em duas partes, primeiramente o livro desconstrói dois pensadores antagônicos, Caio Prado Júnior e Oliveira Vianna, demonstrando por meio de uma análise arguta que o primeiro, um marxista, bebe nas fontes do segundo, um conservador! O revolucionário se apropriou das teses do reacionário. Sempre apoiado em abundante documentação, inclusive no arquivo pessoal de Caio Prado, Caldeira revela simetrias e apropriações para a construção do conceito de "latifúndio agroexportador", idéia original de Oliveira Vianna. Reelaborado por Prado Júnior, o conceito centrava fogo na tese de que a economia resultava da relação de uma pequena elite branca com uma imensa população de escravos. E que tal relação de exploração resultaria em produção carreada direta e exclusivamente para os cofres lusitanos. Nada no meio...
Pois é sobre o "meio" que ele assesta as lentes de aumento, na segunda parte do livro: Construção. O título não é gratuito, pois é a partir daí que, graças a inúmeros exemplos extraídos de documentos de época, ele dá rosto aos personagens anônimos que edificaram o país. E não só lhes dá nomes, descreve os endereços e as atividades, mas explica as formas pelas quais os contratos comerciais eram celebrados: os adiantamentos financeiros, conhecidos como "armação", a introdução de uma escala no trabalho escravo para a manufatura mais eficiente de produtos, os dotes de casamento, a confiança entre parceiros comerciais sacramentada pelo "fio do bigode". E mais, ele revela como tais "produtores independentes, donos de seus meios de produção, capazes de produzir por conta própria," realizavam negócios de Norte a Sul e acumularam capital com capacidade para financiar tanto o crescimento interno quanto de dominar negócios em dois continentes: traficantes de escravos que o digam! Mereceram até choradeira das autoridades portuguesas, queixosas da concorrência. E isso porque aqui se estabeleceu uma economia baseada numa rede contratual entre agentes livres e independentes, com força suficiente para vencer barreiras, levando seus resultados em direção diversa daquela pretendida pelas autoridades. Esses agentes foram "empreendedores".
Caldeira demonstra que Brasil não dependia de Portugal como quiseram autores da década de 70. Nada de "sentido da colonização" apenas voltado para "fora" ou de "mercado interno ínfimo" como martelaram tantos. Tal explicação não tinha qualquer sentido histórico. Só ideológico. Ele comprova que, ao contrário, a Colônia cresceu mais do que o mercado metropolitano, mesmo numa realidade de monopólio comercial, subordinação política e pressões culturais destinados a fazer dela a parte explorada do Império. 
Viagem apaixonante pelas mãos de um grande e competente pesquisador, História do Brasil com empreendedores descortina novos horizontes de estudo, apresenta atores históricos desconhecidos, além de instigar a abordagem original da documentação. Trabalho rigoroso de pesquisa e reflexão, o livro há de encontrar eco entre acadêmicos cujas indagações também se aproximaram da mesma tese - a da acumulação interna - e que tiveram que enfrentar o antagonismo da "ideologia corporativa": Alcir Lenharo, Maria Odila Silva Dias, João Fragoso, entre outros. A cada novo livro, Jorge Caldeira se supera e comprova que aos epítetos já conhecidos, pode acrescentar o de historiador. E acrescento: dos melhores!


MARY DEL PRIORE é historiadora, sócia do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

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