terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Espírito científico e fé em Cristo


Espírito científico e fé em Cristo


Por Manuel García Morente



Conferência pronunciada em Pamplona no dia 12 de outubro de 1941,
na aula inaugural no Instituto Diocesano de Cultura Religiosa. Para facilitar a compreensão, inseriram-se alguns subtítulos.



A emoção que me embarga neste momento é muito grande. Há muitos anos que não cesso de sentir emoções vivas; quereria ter palavras para exprimi-las, mas não as tenho. Quereria também manifestar de algum modo a satisfação, a alegria profunda que sinto ao inaugurar hoje este Instituto Diocesano de Cultura Religiosa; a satisfação, porque a própria idéia de propagar a cultura religiosa, a própria idéia de ensinar o que é a religião católica, essa idéia toca uma das fibras mais profundas do meu coração. Porque estou profundamente convencido de que a única maneira – e, se não a única, ao menos a mais importante – de dar auxílio espiritual a alguns irmãos nossos que no mundo atual sofrem de uma profunda dor espiritual, é a propagação da cultura religiosa.
O que acabo de dizer ainda é obscuro, mas vou esclarecê-lo. Existe hoje um grande número de irmãos nossos que padecem de uma doença espiritual. Refiro-me aos chamados intelectuais. A doença espiritual de que os intelectuais sofrem torna-os dignos de uma profunda compaixão, e a nossa caridade deve derramar-se em rios de amor, em rios de misericórdia para com estas almas que sofrem.

MEDO DE CRISTO
Que doença espiritual é essa? Em duas palavras, essa doença é o medo da fé. As almas dos intelectuais no mundo de hoje sentem medo de ter fé; a maior parte, não todos, mas muitos deles, não são cristãos por esta razão.
Em que consiste esse medo? Vou explicá-lo também em duas palavras: desde o momento em que Jesus Cristo veio ao mundo aconteceu uma coisa singular e quase milagrosa; foi que esta figura santa e bendita se apoderou dos corações dos homens e neles penetrou tão profundamente que a sua marca aí ficou impressa indelevelmente. Pode haver – e há – muitos homens no mundo que, por desgraça, ainda não sabem que Cristo existiu, que não conhecem nada dEle. A Igreja está incumbida de lhes dar a conhecer Cristo; mas os que conhecem Cristo, a partir do momento em que O conhecem, ficam inevitavelmente subjugados por Ele; uns, para amá-lO, para reverenciá-lO, para Lhe darem graças a todo o momento pelo enorme e inefável benefício que veio fazer aos homens nesta terra; os outros, para odiá-lO, para escarnecer dEle, para persegui-lO. Mas ninguém é indiferente a essa figura; vocês não encontrarão ninguém que Lhe seja indiferente. Talvez haja alguns que finjam indiferença – outra maneira sutil de atacar –, mas no fundo da alma ninguém a sente.
Se folhearem, por exemplo, as obras de filósofos modernos e escritores notórios que não são cristãos, encontrarão, de duas em duas ou de três em três páginas, um leve indício de que no fundo da alma desses homens atua o verme da preocupação por Cristo. O filósofo francês Augusto Comte, fundador do positivismo, não cessava de pensar na idéia de Cristo, embora nunca O nomeasse. O escritor frívolo, cheio de beleza, de forma, mas de inconsistência mental, que é Anatole France, não cessa de revelar a todo o instante a intensa preocupação que a figura de Cristo lhe produz. Pode-se dizer que em todos os momentos da História, Cristo é o tema da época, como é o do tempo atual, como é o de há dezenove séculos.
Pois bem, na alma destes chamados intelectuais está, confessada ou inconfessadamente, a preocupação profunda por Cristo, e no seu coração existe uma luta trágica que nos enche de compaixão, de amor por eles. A luta entre o atrativo singular da figura de Cristo, entre a força da graça que se aproxima mas ainda não chega a ser o silvo do Bom Pastor – que ressoaria nos seus ouvidos e acariciaria as suas almas –, por um lado, e por outro, o medo de cair desse pedestal orgulhoso que a ciência e a filosofia do idealismo ergueram no coração dos homens modernos, o medo de se revelarem como meninos que se entretêm com fábulas inaceitáveis. Esse medo da fé contrapõe o orgulho da filosofia moderna à humildade do Evangelho e faz com que os homens, sobretudo os intelectuais, dividam o seu coração entre um afã de superioridade, de hombridade, que os coloque no centro da Criação, e a humildade simples de se confessarem ovelhas desse Pastor, cuja chamada escutam no fundo da alma.
DUAS CENSURAS
Essa contradição e essa luta é o que palpita no fundo dos espíritos intelectuais. Eu sinto, devido aos benefícios que o Senhor operou em mim, uma compaixão tão grande por esses homens que daria tudo para aliviar as suas penas, para aliviar a sua luta interior; e creio firmemente que a única, ou talvez a principal maneira de fazê-lo é mostrar-lhes o que é, na realidade, a nossa religião.
É que no desenvolvimento da cultura filosófica e científica moderna se foram desenhando pouco a pouco dois pensamentos que parecem constituir os fundamentos dessa atitude de medo e de receio que há entre os intelectuais. Esses dois pensamentos em que se traduz a atual hostilidade à religião são os seguintes:
– Por um lado diz-se: “A religião cristã é um anacronismo; a religião cristã foi uma religião boa há dezenove séculos, há dezoito, há dez, há cinco séculos; na Idade Antiga, na Idade Média, era uma religião boa, estava de acordo com aqueles tempos. Mas atualmente a religião cristã é um anacronismo. Os homens organizaram-se racionalmente em sociedade, os interesses históricos da humanidade são muito diferentes dos de há séculos, e, hoje em dia, a religião cristã é um anacronismo, está fora de moda, não é atual”. Esta é a primeira censura que se pode depreender de todo o movimento ideológico moderno.
– A segunda é ainda mais concreta. Consiste em contrapor o que se pode chamar o espírito científico à religião. É afirmar que o espírito científico e a religião são incompatíveis; que a maneira de pensar da ciência, que provou a sua eficácia em descobertas tão maravilhosas como as que se têm sucedido nos últimos séculos, é incompatível com o espírito cristão, porque entre os dois há abismos impossíveis de transpor. Esta é a segunda censura que se pode fazer, do ponto de vista heterodoxo, à religião cristã, e as duas, como vêem, são muito atuais; uma, o anacronismo histórico da religião cristã, a outra, a incompatibilidade do espírito religioso com o espírito científico.
UMA FILOSOFIA DA HISTÓRIA
Quanto à primeira acusação, a de anacronismo, não me parece difícil rebatê-la; pelo contrário, parece-me extremamente fácil ir ao encontro dela e refutá-la. É tanto mais fácil contrariá-la quanto mais elementos essenciais possuímos na doutrina cristã para construir uma verdadeira e autêntica filosofia da História. Se isso ainda se não fez com a na plenitude de um sistema, é porque talvez os católicos estejam preocupados com outros problemas mais urgentes, mas pode fazer-se facilmente.
Porque, digam-me: não se encontram no acervo da nossa fé as idéias fundamentais que podem conduzir a um esclarecimento da História? Por exemplo, o esquema material da história humana encontra-se traçado na Sagrada Escritura desde a criação do mundo, passando pelo momento auge da salvação da humanidade por Cristo, até ao último dia em que os homens hão de retornar à eternidade. Esse esquema em três partes, magnífico e grandioso, que reúne o tempo e a sua sucessão num ritmo de uma inteligibilidade e de clareza surpreendentes, pode fornecer-nos o esquema material da própria História.
Não temos, além disso, na doutrina cristã a idéia fundamental da perfeição do homem, como o ideal apresentado por Nosso Senhor Jesus Cristo quando disse: Estote perfecti, “Sede perfeitos”? Pois essa perfeição do homem como ideal é o motor da História, é o elemento que faz com que o homem nesta terra se esforce por todos os meios para conservar e acrescentar continuamente as suas perfeições pessoais, e com esse elemento vão-se acumulando no processo da perfeição humana todos os trabalhos das sucessivas gerações.
Por último, não temos também entre os tesouros da doutrina a idéia fundamental do que é e deve ser a continuidade histórica? A doutrina cristã, que há dezenove séculos vem sendo sempre a mesma e, no entanto, é sempre adaptada de acordo com as necessidades de cada época, sempre idêntica a si mesma e sempre nova para os espíritos, por acaso não nos proporciona o terceiro elemento de uma filosofia da História, a tradição? A tradição é o nervo da História; sem tradição não pode haver História, e a História não é mais, repito, do que a própria tradição viva, não morta. A História não poderia, de modo algum, compreender-se, seria ininteligível para os homens, e sendo ininteligível seria vã e irreal, se a História não fosse uma tradição contínua que, sem deixar de existir, continuasse sempre a renovar-se.
Na tradição, que é o nervo da Igreja e o nervo da história humana, encontramos, pois, um terceiro elemento que, ao lado dos dois anteriores, poderia constituir a base inequívoca de uma filosofia cristã da história, capaz de integrar aos olhos de todos os intelectuais a religião cristã no caudal do espírito histórico.
O CASO DO CIENTIFICISMO
Mas não posso estender-me por mais tempo nesta primeira censura, que se lança contra a religião cristã no campo dos intelectuais. Vocês me permitirão demorar-me um pouco mais na segunda censura, na pretensa contradição entre o pretenso espírito científico e o pretenso espírito cristão.
Dizem os nossos intelectuais que há uma contradição entre o espírito científico e o espírito religioso. Demonstram-no apontando alguns pontos essenciais em que essa pretensa contradição se tornaria patente. Dizem-nos, por exemplo, que o espírito científico é um espírito de objetividade, que se refere única e exclusivamente ao conhecimento das coisas cognoscíveis e das que estão neste mundo. O espírito religioso, pelo contrário, seria um espírito que se lança ao conhecimento impossível das coisas transcendentes, das coisas que estão para além deste mundo. Já a pretensão de conhecer as coisas que estão para além deste mundo revelaria a incompatibilidade entre o espírito científico e o espírito religioso.
Mas eles nos dizem também que o espírito científico encadeia os fenômenos segundo relações de causas e efeitos, considera o que existe como efeito do que existiu antes, e fixa estas concatenações naturais em leis da natureza, leis férreas a que tudo o que acontece tem de submeter-se. O espírito religioso, pelo contrário,  encheria o mundo de intenções, de finalidades. Pressuporia que um espírito ou vários espíritos criadores e orientadores dirigissem a seu talante a sucessão dos acontecimentos. Esta maneira de pensar é diametralmente oposta ao espírito do cientista, e enquanto o espírito religioso se encontrar no mundo, o espírito científico não pode de modo nenhum conviver com ele. Eis outro ponto em que se nos revela a pretensa incompatibilidade entre ambos os espíritos.
Diz-se também que o espírito científico é um espírito de liberdade, ao passo que o espírito religioso seria um espírito de submissão. O espírito científico baseia-se na livre opinião do espírito individual, ao passo que o espírito religioso se basearia na sujeição à fé, na sujeição da razão à fé. O espírito científico faz da razão critério único de toda a realidade. Em contrapartida, o espírito religioso [...] sujeitaria a razão às exigências da fé.

BASES DO “ESPÍRITO CIENTÍFICO”
Não vou entreter-me a refutar estes argumentos, vou passar à ofensiva. Vou expor os pressupostos em que o espírito científico se baseia e mostrar a inanidade da hipótese metafísica sobre a qual se assenta. Vou mostrar que essa hipótese metafísica é radicalmente falsa, e que é por isso que as censuras e as reprovações que o espírito científico faz ao religioso carecem inteiramente de fundamentação.
Nisto, nós, os católicos, não devemos colocar-nos na defensiva. Já estivemos muito tempo na defensiva, e sem razão; agora devemos passar à ofensiva, à ofensiva filosófica, tanto mais que a evolução natural e própria das idéias filosóficas vem atualmente, como que por desígnio profundo da Providência, ao encontro de uma nova filosofia sã, capaz de mostrar a harmonia profunda que existe entre a religião e a ciência.
1. A objetividade
Pois bem, em que consiste o decantado espírito científico? Consiste, em primeiro lugar, naquilo a que os cientistas chamam objetividade. Dizem que o espírito científico é espírito de objetividade, quer dizer, de submissão àquilo que o objeto é. Quando temos que dizer o que uma coisa é, o espírito científico opõe-se passivamente ao objeto, deixa que o objeto impressione o pensamento e que o pensamento se limite a reproduzir exatamente a estrutura do objeto. A isso chama-se objetividade.
O espírito científico consiste, pois, em não pressupor que existam nas coisas outros ingredientes além daqueles que nela existem realmente. Consiste em evitar totalmente o apriorismo, o preconceito, o juízo antecipado; consiste em possuir, no estudo das coisas, um espírito puro, um espírito disposto a não dizer das coisas senão aquilo que as coisas demonstram ser. Esse espírito de objetividade assenta nos métodos fundamentais que a ciência moderna conhece e pratica, o método da experimentação e o método da intuição intelectual. O espírito científico diz-nos que devemos conhecer as coisas tendo delas uma experiência direta, mantendo com elas uma relação empírica, tocando-as, vendo-as, determinando-as, medindo-as. É assim que as conheceremos realmente.
Todos os objetos da física, da química, da história natural, todos os objetos materiais podem conhecer-se dessa maneira. Mas também devemos conhecer os objetos materiais mediante uma intuição direta do espírito. Devemos representar os objetos matemáticos na objetividade de uma imaginação da qual a nossa personalidade deve estar absolutamente afastada. Devemos, pois, por intuição das essências matemáticas e por experiência direta das realidades materiais, conhecer com plena objetividade, e apenas com objetividade. A objetividade é a primeira característica do espírito científico.
2. A quantificação da realidade
À segunda dessas características poderíamos chamar-lhe quantificação da realidade. O espírito científico quer ser, não somente objetivo, mas, além disso, exato. E como se consegue essa exatidão?
Segundo o espírito científico, não existe senão uma maneira de consegui-la. Consiste em medir, em submeter o objeto material à matemática. Quando um objeto material se pode exprimir por números, podemos ter dele um conhecimento exato; pelo contrário, enquanto não pudermos converter a qualidade em quantidade, não teremos conhecimento científico.
Ponhamos um exemplo: digamos que se trata de conhecer o calor. Enquanto o calor não for senão uma qualidade que sentimos com os nossos órgãos de percepção sensível, o calor não é objeto científico. Dizemos, por exemplo, tenho muito calor, faz calor, faz frio, mas nada disto é quantitativo, logo nada disto é científico. Chega, porém, um momento em que, na história da ciência, se descobre um modo de medir com toda a exatidão o calor: descobre-se o termômetro, aplica-se a propriedade de o calor dilatar os corpos, e então possui-se a quantificação do calor e funda-se a ciência chamada termologia, parte da física.
Esta exigência de exatidão é, ao lado da exigência anterior da objetividade, outro dos sintomas característicos do espírito científico. O espírito científico é espírito de exatidão, e para conseguir a exatidão não tem outro remédio senão aplicar as matemáticas à realidade. Quando não se puder fazer a aplicação das matemáticas a alguma realidade, o espírito científico declara que não pode haver conhecimento científico dessa realidade.
3. A causalidade mecânica
Terceira característica do espírito científico: podemos chamar-lhe a causalidade mecânica. É em conseqüência das duas características anteriores que a terceira aparece. Quando o cientista se enfrenta com os fenômenos da natureza é necessário que possa observá-los objetivamente e medi-los matematicamente. Mas não poderia observá-los objetivamente nem medi-los matematicamente se esses fenômenos, no fundo, fossem movidos por intenções desconhecidas ou por vontades ignoradas. Logo, o espírito científico também procura expulsar da imagem do universo tudo o que sejam vontades, pensamentos e intenções, tudo o que sejam fins, tudo o que seja teologia, tudo o que seja interpretação dos fatos e dos fenômenos da natureza como meios ao serviço dos fins de uma inteligência superior, de uma vontade providencial.
O espírito científico considera tudo isso como contrário aos seus métodos de objetividade e de exatidão matemática. Mas a sucessão dos fenômenos como seqüências, sucessões reguláveis e determináveis em número e medida, isso é objeto do espírito científico. Poder determinar experimental e quantitativamente que um fenômeno A se segue ao fenômeno B, isto é, a lei de sucessão dos fenômenos, ou seja, aplicar o que os lógicos chamam causalidade eficiente, será a melhor garantia do espírito científico e do método que o espírito científico propugna para o conhecimento certo e verdadeiro – a conversão de todo o mundo e dos seus fenômenos num sistema de funções infinitesimais.
Não é necessário que vocês saibam matemática superior. Chama-se função à relação das variações de uma coisa no tempo com as variações de outra coisa no tempo, de tal modo que das variações da coisa A, conhecidas, possamos deduzir as variações da coisa B. Quando as duas séries variam uma em relação à outra, de modo a poderem exprimir-se mediante uma fórmula matemática as variações de uma em relação à outra, temos uma função; essa função é a única maneira como o espírito científico pretende apreciar a realidade. O ideal do espírito científico seria converter todo o universo num imenso sistema de fenômenos em que, conhecidas as variações de um fenômeno, possamos, por mera aplicação do cálculo infinitesimal, conhecer as variações de todos os outros fenômenos.
A terceira característica é, por conseguinte, a funcionalidade mecânica, oposta à intencionalidade teológica, que converte o mundo num sistema de causas eficientes contrapostas à relação de intenção voluntária, de intenção do pensamento, que converteria o universo numa espécie de “televisão” em que uma vontade providente decretaria e faria cumprir os seus mandamentos. Já temos três características: objetividade, quantificação e causalidade mecânica, oposta a causalidade teológica ou de fins.
4. Caráter técnico
Poderia acrescentar uma quarta característica, que seria o caráter propriamente técnico. Os cientistas modernos tendem a nos dizer que uma proposição tem caráter científico quando se podem obter dela aplicações técnicas, aplicações à vida prática; e, com efeito, o espetáculo que nos oferece a história das ciências no século dezenove parece confirmar essa afirmação. Porque logo que uma grande descoberta – a da corrente elétrica, a da dilatação dos gases – veio engrossar o acervo da física moderna, imediatamente depois vieram as aplicações técnicas que hoje espantariam Aristóteles ou Platão se, por acaso, pudessem ressurgir de repente e contemplar esses elevadores, esses automóveis, esses aviões, essas máquinas, essa luz elétrica de que gozamos.
UMA IMAGEM ESTRANHA
Com estas quatro características – embora se pudessem enumerar outras –, objetividade, quantificação matemática, causalidade mecânica e aplicação técnica, podemos considerar suficientemente desenhada a estrutura do que poderíamos chamar o espírito científico. Se examinarmos agora de perto esse espírito e a imagem do mundo que dele deriva, deparamos com uma conseqüência surpreendente: a imagem do mundo que deriva do espírito científico é-nos completamente estranha.
É uma imagem incompreensível, em que as cores, os sabores, os cheiros, o peso, a gravidade, tudo aquilo com que vivemos todos os dias e que constitui a nossa vida de todos os momentos, desapareceu. Em seu lugar, oferecem-nos uma tábua de logaritmos, umas fórmulas que dizem A mais B mais C; em vez de cor, uma vibração eletromagnética; em vez de som, uma vibração do ar; em vez de peso, uma flecha a descer e um número, ou, em teorias mais modernas, um sistema de equações vetoriais.
Numa palavra, o espírito científico escamoteou o mundo real em que vivemos, este mundo em que o céu é azul, onde as nuvens são cinzentas ou plúmbeas, onde o coração do homem palpita e ama, vive e sofre; onde as cores enchem o âmbito das coisas, onde os cheiros embalsamam ou empestam o ambiente, onde a vida existe realmente como vida. O espírito científico fez desaparecer o mundo da qualidade e substituiu-o por um mundo de pura quantidade, por um mundo de átomos, de elétrons, de equações diferenciais, de funções; um mundo que nos é alheio, que não compreendemos.
Não há dúvida que a ciência é exata e que mede com precisão, mas comprou a medida e a exatidão por um preço muito caro, tão caro que os homens de agora, os filósofos de agora, começam a dizer: “Meu senhor, este preço é caro demais, porque as ciências físico-matemáticas da realidade serão tão exatas quanto se quiser, mas já não podemos dizer que sejam ciências da realidade; são ciências de uma realidade coxa, mutilada, de uma realidade a que se tirou tudo o que é qualidade, vida, tudo o que é cor, amor, dor, palpitação profunda da existência. Tudo isso foi arrebatado da nossa imagem do mundo, e em lugar dessa imagem viva, em que os homens se prostram diante de Deus, erguendo a cabeça para o alto, em lugar disso, dão-nos esquemas matemáticos, e em lugar da Bíblia oferecem-nos uma tábua de logaritmos”.
UMA ABERRAÇÃO FILOSÓFICA
E como se chegou a esta conseqüência monstruosa? Simplesmente por uma aberração filosófica, que se traduz no postulado de que o ser é uma palavra que significa sempre a mesma coisa; ou, como dizem os filósofos em termos técnicos, que o ser é unívoco, isto é, que a palavra ser, qualquer que seja a relação em que se empregue, tem sempre o mesmo significado.
Suponhamos, por exemplo, que tomássemos a palavra cor num sentido unívoco: não haveria sete cores, mas apenas uma cor. A palavra cor significaria sempre a mesma coisa; a palavra cor, porém, significa umas vezes azul, outras cinzento, outras vermelho, etc. Pois bem; no fundo, o pensamento filosófico destes cientistas modernos está convencido de que a palavra ser, significando sempre a mesma coisa, significa ser objeto físico-matemático; e quando alguma coisa como a cor, a dor, o amor, Deus, não pode ser convertido em objeto físico-matemático, não o admitem, negam a sua existência.
Em suma, dão à palavra ser um sentido, e qualquer coisa que não seja redutível a esse sentido não existe. Não podemos negar que existe a cor, a dor, o amor, etc. ; e que o mundo tem qualidades que não são quantidades, também não podemos negá-lo. Mas, diz o espírito científico, esperamos que com o progresso técnico chegará um dia em que, como aconteceu com o calor, que foi quantificado graças ao termômetro, também quantificaremos o amor; chegará um dia – disse-se na filosofia alemã do século passado – em que também quantificaremos Deus.
O ÂMAGO DO PROBLEMA
Chegamos ao âmago do problema; ao espírito científico próprio da filosofia idealista, parece evidente a univocidade do ser. Mas importa perguntar, será assim? O ser é realmente um conceito unívoco? Não há motivos para pensar que o ser seja um conceito único. Poderia antes pensar-se que o ser não é um conceito único, que muda de sentido conforme a relação em que se emprega.
Nesse caso poderia afirmar-se o contrário, poderia dizer-se que o conceito de ser é um conceito equívoco, que tem um número infinito de sentidos, que a palavra ser muda de sentido a todo o instante. Houve na História alguns filósofos, poucos, que afirmaram que a palavra ser tem um número infinito de sentidos. A palavra “macaco” significa duas coisas completamente diferentes: o animal primata, que toda a gente conhece, e o instrumento com que se levantam grandes pesos, por exemplo, os automóveis para lhes mudar as rodas. Assim como a palavra “macaco” é equívoca, tem dois sentidos, também a palavra ser seria equívoca, e não teria apenas dois sentidos, mas um número infinito de sentidos; assim pensaram alguns filósofos antigos, como por exemplo Heráclito, e alguns modernos, como por exemplo Bergson.
A conseqüência deste modo de ver seria fatal: não poderia haver ciência alguma. Pois se a palavra ser significasse coisa diferente em cada momento, ao dizermos que alguma coisa é não saberíamos bem o que dizemos, porque, como teria um número infinito de sentidos, não poderíamos ater-nos a nenhum.
A palavra ser pode, por conseguinte, ser considerada por alguns como unívoca, como por exemplo os filósofos idealistas modernos, os avatares do espírito científico, que afirmam tranqüilamente que tudo o que não é redutível à físico-matemática não é. Também pode considerar-se a palavra ser como equívoca; assim o fazem, por exemplo, os historicistas, que dizem que não há ciência possível, que o homem não pode determinar nada porque a idéia de ser com a qual o homem trabalha significa coisa diferente em cada momento, e por conseqüência não pode haver ciência.
A ANALOGIA DO SER
Destes dois extremos, tão errados um como o outro, deve fugir a razão humana, porque, por mais que nos queiram convencer, nunca poderemos admitir que o ser seja sempre o ser físico-matemático do espírito científico, nem que o ser seja sempre coisa diferente do que nos parece.
Neste caso, a verdade está a meio caminho. A verdade, disse-a Aristóteles e, com ele, a série de filósofos que, em vez de considerarem o ser como um conceito unívoco, consideraram-no como conceito análogo. Então disseram: a palavra ser muda de significado, mas não absolutamente; possui umas vezes um significado, outras vezes outro, dentro de limites fixos. Há o ser físico e o espiritual; há o Criador e a criatura. Há várias estruturas do ser, e tão ser é uma como a outra.
Com este fundamento filosófico já temos uma arma e um elemento muito forte para nos defrontarmos com o espírito científico, como dizíamos antes, para passarmos à ofensiva e dizer-lhe: “Você, que forjou a sua própria concepção das ciências sobre a idéia de uma ciência determinada, que é a ciência físico-matemática dos fenômenos da natureza, com que direito estende às outras ciências e aos outros objetos, que não são físico-matemáticos, os mesmos conceitos que possui daqueles objetos? Com que direito dizer que não há mais ser do que o ser físico-matemático?”
Numa ontologia completa, numa ontologia racional e verdadeiramente humana, teríamos que dizer que há várias espécies de ser, que há seres físico-matemáticos, cuja estrutura é, com efeito, tal como o espírito científico a pinta, objetiva, exata, matemática, submetida às aplicações técnicas. Mas ao lado desse ser físico-matemático há outros seres; há, por exemplo, o ser espiritual, que não é extenso nem mensurável, nem se submete às matemáticas, e que tem uma estrutura ontológica completamente diferente da do ser físico-matemático.
ORGULHOSA JACTÂNCIA
Com que direito o espírito científico se arroga a administração de todos os seres? Administre o seu ser físico, o seu ser químico, o seu ser astronômico, que é para ele que tem os seus conceitos preparados; mas os outros seres, os seres espirituais, os seres metafísicos, Deus, o universo na sua totalidade, a história e a vida humana, o amor e a dor, o prazer e tudo o mais, não devem ser administrados pela físico-matemática; e quando se tentou fazê-lo, do século XIX até hoje, chegou-se a conclusões monstruosas. [...]
Um exemplo: seduzidos pelo canto de sereia da filosofia idealista, houve há uma porção de anos alguns teólogos que pensaram que a melhor maneira de pôr de acordo a religião católica com o espírito científico moderno seria aplicar à religião os métodos do espírito científico. Mas, para isso, tinham de admitir que Deus não existe, e que só imaginamos que existe; que é uma idéia nossa, uma necessidade do espírito, uma necessidade psicológica, graças à qual forjamos a idéia de Deus e procedemos como se Deus existisse. Cristo não existiria, mas teríamos a necessidade psicológica de um homem que fosse o nosso modelo, e então procederíamos como se existisse. E por fim aplicaram a idéia de evolução à religião.
Assim compreendemos facilmente que daqueles infelizes teólogos que se deixaram seduzir nasceu o que se chamou modernismo, uma teoria que não passou da ingênua tentativa de submeter o conteúdo da fé à atitude arrogante do espírito científico, e criar assim uma religião que negava a existência de Deus e de Cristo, e por conseguinte se aniquilava completamente a si mesma...
Felizmente já não há quase ninguém no mundo que se deixe impressionar pela orgulhosa jactância do chamado espírito científico. Atualmente compreendemos o artifício interior em que se baseia. Vemos como o cientificismo, no fundo, não é científico; falta-lhe a famosa objetividade que tanto apregoa, porque o verdadeiro espírito científico é aquele que se submete à própria realidade, aquele que não pretende impor o seu pensamento à realidade. Se nos colocamos nesta atitude sincera e totalmente objetiva, teremos que reconhecer que a estrutura interna de um modo de ser como o do espírito, ou a do modo de ser metafísico ou histórico, são estruturas internas completamente irredutíveis ao tipo de ser físico-matemático que serviu de base ao chamado espírito científico.
O espírito científico não é, por conseguinte, incompatível com a religião. Cada coisa das que existem tem o seu tratamento cognoscitivo próprio, e então a harmonia entre a ciência e a fé é completamente clara. Então verificam-se uma vez mais e com toda a propriedade as palavras de São Tomás, quando, comparando a religião com a razão, a fé e a ciência, afirma que é absolutamente impossível que haja, não já contradição, mas a mais pequena divergência entre uma e a outra, porque a verdade não pode ter dois caminhos.

CONFUSÃO ENTRE SER E VERDADE
Com isto, chegamos ao termo da nossa análise. Que aconteceu na filosofia moderna? Uma coisa muito simples, e muito profunda, de tão simples que é. A filosofia moderna confundiu o ser com a verdade. A verdade é una. Não há senão uma verdade, porque a verdade não é mais do que a adequação do pensamento à coisa, àquilo que é. Pelo contrário, há várias espécies de seres, e o erro do idealismo moderno é confundir o ser com a verdade e dizer: o ser é uno porque a verdade é sempre una, e aqui está o erro.
A verdade é una; mas o ser não é uno, é análogo, e é necessário distinguir o ser da matéria do ser do espírito; o que é matéria, a riqueza, o dinheiro, não podemos dá-lo a outrem sem nos privarmos dele, mas o que é espírito podemos dá-lo, que nem por isso teremos menos. Quem tem dez moedas e dá cinco, fica com cinco; mas quem tem espírito e dá espírito, nem por isso fica com menos espírito. Quem dá uma moeda perde-a; quem dá a outro um bom conselho não perde nada.
Agora que já vimos as origens do erro do espírito filosófico moderno, podemos dirigir-nos tranqüilamente aos nossos irmãos intelectuais e dizer-lhes: “Não tenham medo da fé, porque entre a fé e o espírito científico não existe essa divergência que o século XIX supôs. A divergência só surge entre essa filosofia estreita, obtusa, do idealismo, e o espírito religioso, porque a filosofia do idealismo é radicalmente falsa”.
Que os intelectuais não tenham medo da fé, nem vocês, ao propagarem por toda a parte a cultura religiosa, ao fazerem saber que as verdades sobrenaturais não são contrárias nem opostas às verdades científicas físico-matemáticas, pois com isso fazem um beneficio e uma obra de caridade de um valor extraordinário, e Deus lhes dará o prêmio. E se algum deles receber o golpe da graça, a que terá que render-se irremediavelmente – porque a mão de Deus se percebe com a mesma clareza com que se percebem os dedos diante dos olhos –, quando algum deles receber o golpe da graça, não poderá, não terá maneira de resistir-lhe, e assim vocês fazem uma obra que redundará em maior glória de Deus, mas também uma obra de amor e de caridade.
Porque esses homens que hoje vivem uma tragédia espantosa, desorientados, desfeitos, sem saberem em que pensar, em que acreditar, sem saberem que caminho hão de seguir, que conduta hão de adotar, encontrarão, graças ao trabalho de vocês, a paz da alma, essa paz da alma que nos torna estáveis e firmes como uma rocha, diante da qual podem erguer-se e cair os impérios, suceder-se os fatos, tremer a terra e despedaçar-se o universo. Quando estamos seguros de nós mesmos, seguros daquilo em que acreditamos e que pensamos, seguros do que amamos e queremos, seguros na presença de Deus, podemos, com a luz dos olhos acesa pela verdade eterna, encontrar nos momentos breves desta vida algum vislumbre da eternidade e dizer: «Meu Deus, dou-te graças por me teres dado a fé em Ti».

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Manuel García Morente
Nascido em 1886, foi um dos maiores filósofos espanhóis do século XX, amigo e colaborador de José Ortega y Gasset e professor de Julian Marías. Realizou os seus estudos na França e na Alemanha e, em 1912, aos 24 anos, obteve a cátedra de Ética na Universidade de Madrid. Juntamente com as aulas, dedicou-se a uma intensa atividade de tradução de obras clássicas da filosofia para o espanhol, como as três Críticas de Kant e as Meditações metafísicas de Descartes. Trabalhou ininterruptamente até 1936, quando eclodiu a Guerra Civil Espanhola. Destituído do cargo pelos republicanos, foge para Paris após a morte da esposa e o assassinato do genro. Certa noite, no hotel parisiense onde esperava ansiosamente pela chegada das duas filhas, dá-se conta do amor de Deus e converte-se ao catolicismo que havia abandonado. Após um retiro espiritual no mosteiro beneditino de Ligugé, próximo de Poitiers, decide fazer-se sacerdote. Adia o projeto para poder sustentar a família e aceita em 1937 o cargo de reitor da Universidade de Tucumán (Argentina). Em 1938, retorna à Espanha e inicia os estudos eclesiásticos, ordenando-se presbítero em 1939. Faleceu a 7 de dezembro de 1942 durante uma cirurgia que, a princípio, parecia ser simples.
Fonte: Capítulo do livro “Fé e razão”, Éfeso, Lisboa, 1959.

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