quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

"A CONVENÇÃO EUROPEIA: AS RAÍZES CRISTÃS DA EUROPA, DO LESTE AO OESTE" INTERVENÇÃO DO PRESIDENTE DO PONTIFÍCIO CONSELHO D. RENATO MARTINO

PONTIFÍCIO CONSELHO "JUSTIÇA E PAZ"
E
PONTIFÍCIO ATENEU REGINA APOSTOLORUM

27 de Janeiro de 2003
 

Em primeiro lugar, desejo felicitar o Pontifício Ateneu "Regina Apostolorum" por ter organizado esta Assembleia. A participação de autoridades políticas e de especialistas qualificados mostra o interesse desta inciativa. O processo em ordem à Constituição Europeia constitui um facto de importância histórica, que merece ser encorajado, mas também atentamente avaliado pelas consequências que terá para o futuro da Europa.
O trabalho da Convenção
A Convenção não teve um mandato fácil. Ela deverá encontrar uma forma de consenso sobre os modelos, os princípios inspiradores e as modalidades de realização. Trata-se de indicar se se prefere uma forma aproximadamente confederativa, respeitadora das prerrogativas da soberania dos Estados, ou então um verdadeiro salto qualitativo para uma forma de tipo federal, com todos os possíveis matizes intermediários. É sintomático o facto de que, no debate político destes meses, mesmo entre as pessoas que falavam de federação de Estados, houve quem o fizesse realçando a federação e quem o fizesse sublinhando o Estado e a salvaguarda da sua soberania.
Além disso, a Convenção deverá dar uma resposta à questão insolúvel da inserção da Carta dos direitos fundamentais na nova estrutura dos textos fundamentais sobre os quais se assentará a nova União.
A futura "Constituição" não nasce do nada. Os seus fundamentos já estão consolidados no património de conceitos e de normas dos Estados membros da União e da própria União.
Liberdade, direitos humanos, democracia e estado de direito estão esculpidos no património institucional da União Europeia, e encontram garantias sólidas tanto nas instituições políticas como, sobretudo, no controlo jurídico exercido, por um lado, pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias e, por outro - no seu mais vasto contexto do Conselho da Europa - pelo Tribunal Europeu dos direitos do homem.
A Europa de que estamos a falar constitui um ambicioso projecto político. Hoje, mais do que nunca, estão em jogo os próprios caracteres fundamentais do projecto e as conotações institucionais que ele terá no futuro próximo e menos próximo. A decisão que poderá fazer evoluir a União Europeia para soluções de tipo federal, ou então que a levará a preferir soluções tradicionais, de cooperação diplomática entre Estados soberanos, unidos por um ténue vínculo confederativo, é demasiado comprometedora.
Além disso, os trabalhos da Convenção estão estritamente ligados à dinâmica do alargamento da União Europeia. O alargamento aos países da Europa Central e Oriental tem sido objecto de uma escolha política específica, e é destinado a verificar-se num espaço de tempo bastante amplo, a partir de 2004. O primeiro efeito será a extensão das instituições de integração a uma dimensão continental, pan-europeia. A Comunidade nasceu de um pequeno grupo de democracias livres do Ocidente; a União abre-se às novas democracias, que se libertaram do totalitarismo no final dos anos 80, e forma com elas uma construção complexa, dotada de grandes ambições e fundamentada sobre outros valores compartilhados, codificados nos seus actos normativos institutivos e nas constituições dos Estados membros. Na primeira fase, o problema relativo aos futuros novos membros é o da assimilação de todo o enorme património normativo acumulado pela Comunidade em meio século, o chamado acquis communautaire.
De qualquer forma, é importante ter sempre presente o facto de que a Convenção constitui um organismo chamado a apresentar um texto que, em seguida, será levado ao Conselho Europeu, o órgão dos Chefes de Estado e de Governo. Ou seja, a Convenção não é uma assembleia constituinte. Até agora, o processo de integração europeia tem progredido por iniciativa dos governos, com negociações de conferências intergovernamentais que apresentaram novos tratados, que os Estados membros se encarregam de ratificar. Os trabalhos da Convenção não se afastam desta elaboração.
Não é por acaso que o esboço apresentado pelo Presidente Giscard d'Estaing é intitulado como "Tratado constitucional". Por conseguinte, não se trata de uma Constituição em sentido próprio (a União não é um Estado), mas do resultado de um persistente "pacto" entre Estados que, na origem, eram soberanos e que quiseram compartilhar a sua soberania, dando vida a um modelo institucional novo, de tipo "supernacional", encetando e procurando completar uma progressiva transferência de poderes e competências particulares para a Comunidade/União. Fala-se sempre de "constituição", mas na dialéctica entre os Estados, ainda se continua a realçar sempre o "tratado", fonte do direito internacional:  o elemento constitucional é, por assim dizer, desclassificado para uma posição auxiliar, secundária.
A arquitectura institucional europeia
A peculiar natureza da Europa comunitária faz com que à União não sejam aplicáveis os modelos constitucionais dos Estados. A União é uma realidade institucional original, que parte dos Estados mas não parece destinada a chegar a um Estado ou superestado. A progressiva integração entre os Estados membros faz da Comunidade/União uma entidade em contínuo processo de formação.
Não é por acaso que à construção europeia se aplica, tradicionalmente, a metáfora da arquitectura, com a sua linguagem. A Europa económica, monetária e depois política é uma espécie de campo de trabalho permanente. As suas instituições transformam a sua fisionomia de maneira gradual, evoluindo de modo contínuo. Originariamente, o Parlamento Europeu era dotado do mero poder de exprimir pareceres (obrigatórios, mas não vinculativos) sobre actos de alcance económico. Hoje, afirma-se como um órgão mais propriamente político, em numerosas e relevantes matérias, e é chamado a adoptar actos normativos vinculativos em decisão conjunta com o Conselho da União, órgão de Estados, representativo dos interesses de cada um destes mesmos Estados. Paralelamente ao crescimento do perfil do Parlamento Europeu, a evolução das instituições viu os Estados decidirem elevar o seu nível de representação, ou seja, de governos.
Daqui, a instituição do Conselho Europeu, que levou à "verticalização" do processo decisório, investindo directamente as máximas responsabilidades de governo nas passagens cruciais da integração:  eleição por sufrágio universal e directo do Parlamento Europeu, adopção da moeda única, extensão dos tratados à política exterior e de segurança comum à cooperação policial e judicial. Por fim, no esquema institucional, a Comissão permanece central, como um verdadeiro e próprio motor da integração e garantia da salvaguarda do interesse comunitário.
A União deverá alargar o alcance do princípio de subsidiariedade, para evitar conflitos, procurar verdadeiramente os interesses dos povos dos Estados membros e atenuar os ricos de degenerações centralistas e burocráticas, como o mais amplo reconhecimento da iniciativa autónoma dos cidadãos e das suas associações.
O desafio central consiste na procura de equilíbrios interinstitucionais eficazes e válidos. Com efeito, as instituições reflectem a coexistência, na União, de diversas almas e de diferentes modelos inspiradores. Até agora, o processo de integração foi o resultado dos impulsos e dos contra-impulsos entre os modelos federalista, intergovernativo e comunitário (com todas as relativas variantes e matizes intermediários, que periodicamente vêm à superfície). A Convenção é chamada a dar respostas clarividentes acerca do novo paradigma a que se deseja dar vida. Deve adoptar-se um "Tratado constitucional", mas de que coisa? O que é que querem os "constituintes"?
Um superestado, ou então uma federação segundo o modelo dos Estados Unidos da América, ou ainda uma federação de "Estados soberanos", ou por fim uma confederação branda, em que os Estados conservem amplas conotações das suas próprias soberanias? Evidentemente, tudo depende do significado que se deseja atribuir à noção de soberania e à latitude do conceito de "federação", ou ao significado de "união".
Somente uma solução equilibrada destes problemas de modelos permitirá definir os elementos institucionais da "forma de governo" da futura União. De resto, tudo exige a consciência de que uma grande Europa, de pelo menos 25 Estados membros, tem necessidade de mecanismos decisórios e operativos mais rápidos, eficazes e transparentes.
Em última análise, o fulcro do desafio representado pela necessidade de voltar a definir os equilíbrios institucionais reside na capacidade de reflectir de maneira adequada uma Europa dos Estados e dos povos. E, em conjunto, trata-se de construir uma clara identidade política da União, que exteriormente se apresente como um gigante económico, e não como um anão político.
Os valores da Europa
Sobre os trabalhos da Convenção paira o grande tema dos fundamentos, dos valores em que a Europa quer inspirar-se. A democracia, a liberdade e os direitos do homem fazem parte do património genético de uma Comunidade/União,  que  nasceu  para  oferecer respostas a um continente duramente provado pelos totalitarismos nazista e comunista.
A Igreja, justamente, realçou que a herança cristã era considerada essencial e imprescindível por alguns dos grandes pais fundadores, como Robert Schuman, Konrad Adenauer e Alcide De Gasperi. Na sua carta aos Bispos italianos, no dia 6 de Janeiro de 1984, o Santo Padre afirmou:  "Não é significativo que entre os principais promotores da unificação do continente, haja homens animados por uma profunda fé cristã? Não foi, porventura, nos valores evangélicos da liberdade e da solidariedade que eles encontraram a inspiração para o seu corajoso projecto? De resto, um projecto que justamente lhes parecia realista, apesar das dificuldades previsíveis, pela clara consciência que eles tinham do papel desempenhado pelo cristianismo na formação e no desenvolvimento das culturas presentes nos vários países do continente". E, em seguida, no discurso à Assembleia pré-sinodal, de 31 de Outubro de 1991, o Papa João Paulo II recordava:  "A Europa, afirma Goethe, nasceu em peregrinação, e o cristianismo é a sua língua materna".
Agrada-me recordar as palavras que o Presidente da República Italiana, Sua Ex.cia o Senhor Carlo Azeglio Ciampi pronunciou, por ocasião do encontro com o Presidente da República Eslovaca, Sua Ex.cia o Senhor Rudolf Schuster, em Bratislava, no dia 9 de Julho de 2001:  "Nós derivamos de uma única herança humanista e cristã".
Toda a história europeia e a progressiva tomada de consciência de uma identidade comum trazem consigo a marca do cristianismo, realçando a estreita correlação entre a Igreja e a Europa. Tanto no Ocidente como no Leste, que se prepara para enriquecer a União, a Igreja sente que tem uma responsabilidade na definição do futuro da Europa e julga que pode oferecer uma contribuição significativa para a elaboração das novas formas institucionais que estão a ser preparadas.
A cultura europeia mergulha as suas raízes na civilização greco-romana, beneficiou dos contributos do judaísmo e do islão, mas foi assinalada principalmente pelo selo do cristianismo durante dois milénios, um selo que representa a especificidade da Europa. Hoje, esta herança não pode ser negada. Reconhecê-la não significa contradizer o princípio da laicidade, mas interpretá-la de modo correcto. Sem dúvida, as tarefas da Igreja são diferentes das funções do Estado, mas a Igreja não pode ser separada da sociedade. Hoje o princípio da distinção entre espiritual e temporal, desligado dos contextos ideológicos, assume uma conotação totalmente nova e deve ser aplicado ao serviço do bem comum dos povos europeus. Não é aceitável que, numa época de abertura e de respeito por todas as convicções humanas, se manifeste uma tendência discriminatória em relação à religião. Uma vez que a União Europeia dialoga com os partidos políticos, os sindicatos e os representantes das várias religiões, seria incompreensível se a mesma atitude não fosse adoptada em relação à religião. Sobretudo, não se pode ignorar a dimensão transcendental que penetra o coração de cada ser humano, antes e para além de toda a sua consciência. A indiferença em relação a esta dimensão só pode provocar efeitos trágicos, como a história do continente europeu experimentou dolorosamente.
Considerando a especificidade do campo religioso e a contribuição que, durante dois milénios, o cristianismo ofereceu de maneira constante aos povos, formulo votos a fim de que a União Europeia reconheça a identidade e a organização das Igrejas, favorecendo assim a procura das suas finalidades religiosas, segundo a disposição que elas livremente se propõem. Em conformidade com as decisões já tomadas pelos Estados membros da União, com a Declaração n. 11, anexa ao Tratado de Amsterdão, no texto de natureza constitucional actualmente em preparação, dever-se-á mencionar de forma clarividente o facto de que a União Europeia respeita e não prejudica o estatuto de que, em virtude do direito nacional, beneficiam as Igrejas e Comunidades religiosas no interior dos Estados membros, no respeito dos direitos humanos fundamentais. Além disso, a União Europeia dará testemunho da qualidade da sua cultura milenária, sobretudo se souber reconhecer ao direito que consagra a liberdade de religião a sua verdadeira dimensão, que é individual e, ao mesmo tempo, colectiva e institucional. Somente na solidariedade e na colaboração eficaz entre todas os componentes da sociedade poderá progredir uma Europa cada vez mais hospitaleira, uma Europa que sabe respeitar cada pessoa, independentemente do seu lugar de proveniência, tornando-se a casa onde cada um pode crescer.
As Igrejas devem poder desenvolver-se no campo que lhes é próprio, enquanto acompanham um progresso social autêntico. Valorizando a contribuição das Igrejas para o bem comum, a União Europeia poderá estabelecer com elas um diálogo estruturado, que certamente favorecerá e consolidará o progresso da própria União.

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