segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

ECONOMIA NA VISÃO CRISTÃ


Dom Fernando Arêas Rifan*

No início desse ano, participei em San Diego, Califórnia, de um Congresso sobre doutrina social da Igreja, com a participação de 40 Bispos de 18 nacionalidades, promovido pelo Acton Institute, dado por professores de economia e sociologia vindos de diversos países. Interessante que, em muitos pontos, coincidiu com o tema da conferência no final do seminário “Economia social de mercado: uma nova visão”, proferida em uma das sedes da Câmara dos Deputados, em Roma, pelo economista italiano Dr. Ettore Tedeschi, presidente do Instituto para Obras Religiosas (IOR), que trata da crise econômica, suas raízes, a lei natural ignorada e a criação de um bem-estar somente material.

O orador recordou que a economia de mercado foi definida pelo economista italiano Luigi Einaudi como “uma terceira via entre o capitalismo e o socialismo, que garante a liberdade individual freando seu instinto egoísta, através de critérios de subsidiariedade e de solidariedade. Nem estatismo nem capitalismo exagerado. Mas, para que funcione tem que ser baseada na doutrina social da Igreja, porque ela tem experiência e valor. A doutrina social da Igreja foi a forma mais eficaz de tornar o amor efetivo, apesar de que, como diz Bento XVI a caridade desvinculada da verdade não pode subsistir”.

Existem, porém, algumas condições: “A doutrina da Igreja, para poder funcionar, requer um Estado que não seja ávido. A economia social de mercado, como primeiro objetivo, deve usar os recursos disponíveis de maneira eficiente e obter resultados mais eficazes. Segundo, tem de assegurar o progresso integral, tendo presente a unidade corpo-alma do homem. E precisa distribuir a riqueza criada, não só por caridade, mas também por sustentabilidade”.

O que há hoje é uma crise de sentido. “A encíclica diz que, se a liberdade vem antes da verdade, o homem imaturo raramente chegará à verdade e, portanto, não saberá distinguir entre meios e fins e confundirá o uso dos instrumentos. E os instrumentos são neutros. Não existe banco ético nem finanças éticas; existe o homem ético, que faz as finanças de maneira ética e moral, ou seja, dando sentido às suas ações. É o homem que dá sentido ao uso dos instrumentos”.

“E Bento XVI, na Caritas in veritate, lembra: não se pode prescindir das ações humanas e do pleno respeito pela vida e não se pode fazer um plano de desenvolvimento econômico se o progresso é apenas material, porque o homem não é apenas um animal material”.

“Temos negado a dignidade da vida e estamos fazendo progressos apenas materiais. E agora está em discussão a lei sobre a eutanásia. Para provocar, direi: é uma lei econômica, porque não se podem manter os velhos, que custam muito quando não nascem crianças; é uma questão de orçamento. Este é o paradoxo da globalização consumista. É o que o Papa chamou de ‘desenvolvimento econômico não-integrado'. Porque o homem se esqueceu de que tem uma alma; considera somente um corpo, pela influência do niilismo e do relativismo”.



*Bispo da Administração Apostólica Pessoal

São João Maria Vianney

As bençãos da tecnologia



Diretor do Center for Academic Research do Acton Institute
Nos últimos trinta anos, um certo grau de ceticismo sobre os méritos da tecnologia vieram à tona nas reflexões e escritos de muitos cristãos. Sem dúvida, os bons cristãos têm razão para estarem preocupados com os usos que muitas vezes são dados à tecnologia. Quando Hannah Arendt cunhou a expressão “banalidade do mal”, não se referia à mentalidade burocrática que, com relativa eficiência, tratava de matar os judeus europeus. Ela também tinha em mente o modo pelo qual a tecnologia moderna fazia com que a matança em série de seres humanos parecesse menos enlouquecida, menos sanguinária, e até mesmo um tanto desapaixonada.
Cada vez mais os acontecimentos tecnológicos quotidianos, tais como a popularização do e-mail e da Internet, são, por vezes, retratados por alguns cristãos como facilitadores da despersonalização da vida humana e dos relacionamentos. Outros cristãos parecem suspeitar da associação da tecnologia com a emergência da modernidade, ou seja, um período da história no qual as exigências da Revelação são, muitas vezes, vistas como se fossem desafiadas pelos avanços da ciência.
Certa vez, Karl Marx argumentou que a sociedade tecnológica facilitava o ateísmo. Sem dúvida, há um tanto de verdade nessa afirmativa. Os avanços tecnológicos criam para nós um mundo cercado de produtos feitos pelo homem. Muitos de nós vivemos numa cultura repleta de aparelhos mecânicos pelos quais moldamos nossas vidas, e em estruturas sem precedentes na história, dominadas por certas características construídas pelo homem. Como resultado, a tecnologia nos dá uma imagem de nossas obras. Essa auto-imagem é o que muitos seres humanos consideram, admiram e, às vezes, cultuam.
O problema do auto-consumo e do culto idólatra de si mesmo têm, no entanto, atormentado o homem desde o princípio. Ocorreu em todas as culturas e em todas as épocas, não importando o grau de desenvolvimento tecnológico. No mundo romano atingiu uma espécie de apogeu com a auto-atribuição de divindades por parte dos Césares.
Será possível, então, que os cristãos pensem em tecnologia de alguma forma que evite, ao mesmo tempo, tanto a romantização do mundo pré-moderno e natural, mas também o “cientificismo” que nos faz crer que que a percepção da verdade é essencialmente limitada ao conhecimento da técnica?
Devemos ter em mente que o mal não procede da tecnologia em si. O mal deriva do pecado original e das livres escolhas dos seres humanos que preferem o mal ao bem. Portanto, o problema geralmente não é a tecnologia, mas como ela é usada. Dificilmente esse é um novo dilema.
Leonardo Da Vinci, que também era um engenheiro, desistiu de publicar os planos de um submarino que projetou porque considerava injusto atacar, sem aviso prévio, um adversário que não pudesse ver quem o atacava. Poderíamos supor que a decisão de Da Vinci foi ditada por um estranho código de cavalheirismo renascentista. O raciocínio de Da Vinci, entretanto, pressupunha simplesmente que a tecnologia estava sujeita a uma ordem maior: os ditames da lei moral divina, a única ordem que poderia dar à tecnologia um significado apropriado e determinar os fins para os quais poderia ser usada. Assim, devemos considerar que os submarinos não precisam ser empregados somente para fins violentos. Eles, de fato, têm servido para revelar ao homem muitas das glórias, anteriormente ocultas aos homens, como o mundo submarino criado por Deus.
Na verdade, é difícil pensar em algo que nos dê uma imagem mais poderosa da manifestação da Criação de Deus do que os imensos espaços solares que a astronomia nos permite vislumbrar. Em outras palavras, a tecnologia permitiu perceber uma parte do mistério complexo e interligado do universo de um modo nunca antes imaginado por Galileu ou Ptolomeu.
E nisso reside a maior de todas as ironias. Foi precisamente por realizar o mandato do livro do Gênesis de preencher a Terra e subjugá-la, que os seres humanos não só participam da ampliação do ato criador, mas também adquirem maior percepção das maravilhas da Criação. Por intermédio da tecnologia, cada vez um número maior de cientistas começa a vislumbrar o projeto e a ordem das coisas, onde muitos de seus ancestrais só viam a escuridão e o caos.
Nesse sentido, a tecnologia pode ajudar a desmistificar e “des-divinizar” o mundo material ao nos despertar para a majestade dAquele que o criou.
Jean Daniélou, um jesuíta estudioso da Patrística, certa vez observou que o homem primitivo identificava o sobrenatural em todos os lugares, mas isso se devia, em grande parte, à sua ignorância. Dessa forma, percebeu Daniélou, a tecnologia pode ajudar a “libertar a religião e a percepção humana do sobrenatural do incômodo fardo do pseudo-sobrenatural e do pseudo-religioso”.
Tudo isso nos leva a reconhecer que não há necessidade de denegrir Bill Gates para exaltar Santo Agostinho, da mesma forma que também não precisamos degradar a tecnologia humana para exaltar as obras de Deus. Quanto maiores as conquistas da tecnologia humana, segundo o divino ordenamento moral, escreveu Daniélou, Deus se mostra ainda maior ao homem.
Nesse sentido, não devemos ser excessivamente temerosos das conquistas tecnológicas do homem. Certamente, o cristão deve exigir que o uso que o homem dê à tecnologia, como a todas as outras escolhas, se conforme à Lei moral de Deus, uma lei possível de ser conhecida pela fé e pela razão. Mas, quanto maior o homem e suas conquistas tecnológicas, mais os cristãos devem perceber que ainda maior Ele deve ser – o Deus feito homem, o Alfa e o Ômega de todos os tempos, Jesus Cristo – de quem herdamos nossa própria grandeza.

Como os clérigos entendem o mundo dos negócios: realidade versus caricatura



Ex-Diretor do Center for Entrepreneurial Stewardship do Acton Institute
Há pouco tempo, enviei uma pesquisa para os pastores protestantes de grandes igrejas, a maioria com mais de mil fiéis por domingo. A pesquisa fazia uma série de perguntas sobre economia, negócios, governo, e vários assuntos sociais. Apesar de ainda estar trabalhando numa série de estatísticas, as respostas a duas perguntas em particular foram impressionantes.
Setenta por cento dos líderes religiosos que responderam a afirmação: Sem supervisão cerrada do governo as grandes empresas irão abusar dos seus poderes, indicaram os seguintes quesitos como resposta: “concordo plenamente com”, “concordo com” ou “não tenho opinião formada sobre”.
Trinta e nove por cento, ao responder a afirmação: Porque os negócios normalmente não funcionam dentro de um padrão moral, cada vez mais a regulação governamental é necessária, indicaram como resposta: “concordo plenamente com”, “concordo com” ou “não tenho opinião formada sobre”.
Talvez os colapsos no mundo dos negócios como o caso da Enron e da Worldcom ainda estejam frescos nas mentes, e façam com que esses pastores protestantes olhem de modo suspeito para a maioria das pessoas do mundo dos negócios. Em alguns casos, a suspeita é, sem dúvida, justificada. Talvez, no entanto, haja um motivo diferente, menos justificável para essa suspeita – uma tendência a caricatura.
As caricaturas dos homens de negócios são tão antigas quanto as próprias corporações. Não é um fenômeno da era pós-Enron. Desde Ebeneezer Scrooge de Charles Dickens, passando pelo ganancioso banqueiro Mr. Potter do clássico “A felicidade não se compra” e chegando à Montgomery Burns dos Simpsons, a personagem é a mesma: os líderes dos negócios. Os homens de negócio são seres com uma insaciável fome de poder que querem dominar o mundo.
Recentemente, num fim de semana, tive uma oportunidade única de passar três dias com os CEOs, CFOs, COOs, presidentes e vice-presidentes de empresas de médio porte a multinacionais. Estavam presentes empresas dos seguintes países: Holanda, Alemanha, França, Itália, Austrália, África do Sul, Índia, Grã Bretanha, Suíça, Brasil, Singapura, Luxemburgo, Tailândia, Áustria e Estados Unidos.
Os líderes religiosos que responderam a minha pesquisa imaginariam que a maior parte das conversas, palestras e painéis de debate focalizavam a questão do domínio e expansão do poder. Talvez os pastores mais cínicos acreditem que quando tais tipos empresariais se juntam, a conversa gira em torno de iates, automóveis luxuosos e mansões. Essa é a caricatura.
A realidade é diferente. O foco da conferência era a criação de valores. Mais especificamente, os participantes discutiram como não ser meramente lucrativo, mas como adicionar valor econômico em suas empresas para beneficiar os acionistas, empregados, fornecedores, consumidores e a sociedade. Como um observador, posso testemunhar que os comentários feitos poe essas pessoas poderosas e bem-sucedidas foram o extremo oposto da caricatura.
Os líderes empresariais experimentam uma tremenda pressão porque o bem estar de muitas pessoas depende das capacidades de tomar a decisão correta, no momento certo. Os participantes da conferência condenaram práticas tais como: pensar a curto prazo para ganhos financeiros rápidos, manipulação de balanços financeiros, comportamento não ético, uso do dinheiro dos acionistas para adquirir negócios que não acrescentam valor e tratar os empregados como commodities.
Falaram da absoluta necessidade de uma ética forte, não só como meio, mas como fim e uma forma de honrar a todos com quem fazem negócios. Tópicos como transparência, honestidade, trabalho árduo, e tomada de decisões firmes sempre voltavam à tona.
Talvez o fato mais surpreendente – dadas as recentes controvérsias sobre os salários e bônus dos executivos – esse grupo pleiteava uma compensação dos executivos afixada não só pelas perdas e lucros, mas que pudessem ser manipuladas por uma variedade de meios. Em vez disso, propuseram a idéia de que como o valor total da empresa sobe e desce, assim deveria variar a compensação dos executivos. Advogaram a necessidade de fixar os salários e bônus dos empregados ao valor acrescido ou ao valor perdido, de modo que o empregado tenha interesse no futuro da corporação. Quando a empresa cresce e se torna mais valiosa (um critério maior do que meras perdas e ganhos), todos os executivos e empregados ganham.
Debates como esses renovaram a minha admiração pelo peso que essas pessoas carregam. Nenhum deles pareceu não estar levando a sério suas responsabilidades. Não houve indicação de que estavam nos negócios somente para benefício próprio. Pareciam entender o papel abrangente e substancial que possuem na construção das empresas, que, com o passar do tempo, valorizam suas sociedades.
Será que todos os líderes de empresas são tão conscientes assim sobre seus negócios? É claro que não. Em todos as posições sociais há aqueles que abusam do poder dado ou ajem de modo pouco ético e destrutivo. Apesar da presença de pessoas imorais nas grandes empresas, não creio, no entanto, que tais pessoas são a norma. Infelizmente, um alto percentual de meus colegas no clero têm uma visão diferente e preferem a caricatura à realidade.

O mistério e a moralidade do mercado – explicados!



Uma mãe pede ao filho para ir ao mercado e comprar um pouco de pão. Um banqueiro de investimentos pede ao colega para informar como está o mercado de ações. Um fabricante pergunta ao consultor se há um mercado para um determinado produto novo. Dados os diferentes usos da palavra mercado, não é de se admirar que as pessoas sempre se confundam com o significado do termo “o mercado”?
Ronald Nash (professor de filosofia no Seminário Teológico Reformado em Orlando, na Flórida), no livro Pobreza e riqueza, define o mercado como “um conjunto de procedimentos ou arranjos que prevalecem numa sociedade que permite as trocas voluntárias”. Explicado de outro modo, segundo Nash, “o mercado é a estrutura de hábitos e regras na qual cada troca voluntária específica, em cada mercado específico, acontece”. O mercado não é “um lugar ou uma coisa específica”, nem é “simplesmente a coletânea de mercados particularesnos quais os bens e serviços são trocados”. Em vez disso, segundo Nash, aquilo que chamamos de “o mercado” é uma “ordem espontânea e impessoal na qual os seres humanos individuais fazem escolhas econômicas”.
Nash explica que o mercado é como um modelo de tráfego urbano. Ao longo do tempo a cidade cresce, e o modelo de tráfego emerge, na medida em que os motoristas respondem às grades postas nas ruas, aos sinais de trânsito, às placas de sinalização, dentre outros. É algo impessoal, se considerarmos que se aplica a todos igualmente,contudo, é espontâneo, pois envolve um processo de erros e acertos. Além disso “ao passo que o padrão de tráfego estabelece regras, as pessoas ainda têm um certo grau de liberdade na forma como e para onde dirigem”. Dessa forma o padrão de tráfego produz ordem, previne acidentes e permite a liberdade. O mercado funciona da mesma forma. Certas regras – proibindo a coerção, a força, a fraude, o roubo, dentre outros – estabelecem o contexto das transações econômicas, e o mercado desenvolve na medida dem que as pessoas compram e vendem.
Raramente se compreende de forma clara o que significa uma economia de mercado. O mercado, ainda que possua virtudes práticas, permanece moralmente neutro em essência, e assim, precisa de uma estrutura moral maior para operar de modo ético. O termo “o mercado” na realidade é uma metáfora. A rede de trocas que chamamos de mercado é, na verdade, um processo enraizado na ação e escolha humanas, e reflete a variação e os valores subjetivos que os atores do mercado possuem.
Dessa forma, o mercado se torna uma ferramenta potente para a difusão do conhecimento ao comunicar os verdadeiros custos dos bens e serviços. No entanto, seria um erro pensá-lo como detentor de uma ética própria.
João Paulo II expressa tal compreensão do relacionamento entre moral e mercado na carta encíclica Centesimus Annus. Explica o papa “a atividade econômica, em particular a da economia de mercado, não se pode realizar num vazio institucional, jurídico e político” (48). Dessa maneira o papa afirma um “sistema econômico que reconhece o papel fundamental e positivo da empresa, do mercado, da propriedade privada e da consequente responsabilidade pelos meios de produção, da livre criatividade humana no setor da economia”, mas rejeita categoricamente “um sistema onde a liberdade no setor econômico não está enquadrada num sólido contexto jurídico que a coloca ao serviço da liberdade humana... cujo centro seja ético e religioso” (42). Em outras palavras, o livre mercado, para permanecer adequado à pessoa humana deve ser mediado por uma ordem política e uma cultura saudável.
É fundamental para os defensores do livre mercado entenderem essa conexão entre cultura e mercado. O mercado não funciona no vácuo. Requer um contexto jurídico, cultural e social. Por exemplo, muitos críticos advertiram a respeito do perigo da libertinagem numa sociedade de livre mercado. Em geral, esses críticos apontam que vivemos numa época em que tudo está à venda, até mesmo coisas como o corpo humano – e isso não deveria ocorrer. Essa libertinagem, contudo, não deriva da natureza do mercado, mas de nossa situação cultural e histórica particular. Assim, a aparente aliança entre livre mercado e libertinagem pode ser substituída por uma aliança entre o livre mercado e uma filosofia adequada da pessoa humana – que leve em conta a dimensão valorativa moral e espiritual da pessoa humana.
Por definição, não podemos escolher viver num mundo sem mercados. Mas podemos escolher que tipo de mercados iremos desenvolver. Serão livres ou planejados? Promoverão um ambiente favorável para a virtude ou oferecerão oportunidade para a violência e a corrupção? Responder a tais questões e esforçar-se para estabelecer mercados que sejam livres e virtuosos são tarefas válidas para todos os cristãos preocupados com a justiça e a correção dos mercados, da política e da cultura.

A economia do mundo real



Presidente Executivo do CIEEP
Em inglês, há duas palavras, ambas traduzidas para o português como “economia”: economics, que designa a Teoria Econômica e economy, que se refere à economia do mundo real. O que a maioria dos economistas parece ignorar é que o principal papel da teoria é tentar explicar e entender da melhor forma possível a realidade.
Em notável artigo escrito nos anos 40, The Use of Knowledge in Society, o Prof. Hayek examinou exaustivamente que tipo de conhecimento é adequado para ser utilizado como referencial teórico para as ciências sociais, em geral, e para a economia, em particular. Naquele trabalho, o notável economista austríaco faz notar, com a acuidade que lhe era peculiar, que o conhecimento que os agentes econômicos e sociais possuem apresenta duas características: a primeira é que ele é sempre incompleto e insuficiente, para que possam tomar decisões com absoluta certeza e a segunda é que ele se encontra disperso, isto é, desigualmente distribuído, cada agente detendo uma fração particular do total de conhecimento diferente das frações possuídas pelos demais. Ora, como a economia do mundo real (economy) é um processo de escolhas, em que cada agente toma decisões julgando, a priori, que estas serão as melhores no sentido de aumentar a sua satisfação, e como essas escolhas – que os economistas austríacos chamam simplesmente de “ação” – se dão ao longo do tempo bergsoniano, que nada mais é do que um suceder permanente de novas experiências, segue que as decisões tomadas no mundo da economia sempre se caracterizam pela existência de uma incerteza dita “genuína”, ou seja, não sujeita à teoria bayesiana das probabilidades, em que se constroem distribuições associando cada um dos eventos possíveis a números.
Outra característica da economia do mundo real ressaltada por Hayek – e que muitos economistas deixam de considerar – é que há dois tipos de conhecimento, o científico (digamos, o dos formuladores das políticas públicas) e o prático, por ele denominado de “conhecimento das circunstâncias de tempo e lugar”. Por exemplo, um professor de Economia, como o autor deste artigo, possui um estoque teórico de conhecimentos que tenta aplicar para analisar os fenômenos do mundo real, mas que é necessariamente diferente do estoque de conhecimentos de seu amigo Antonio Paura, um jornaleiro que, já de madrugada, sabe perfeitamente como encadernar os jornais e arrumar as revistas em sua banca.
Qual a importância disto? Bem, se me colocarem, às quatro horas da manhã, para encadernar jornais, eu não saberei nem como começar, mesmo descontando o efeito do sono; da mesma forma, se colocarem o paesano Antonio para dar uma aula de Economia Monetária, sucederá com ele o mesmo, embora, sendo um homem inteligente e com a experiência de vida que acumulou, poderá dar palpites muito menos escabrosos do que os de alguns economistas e articulistas. Se o conhecimento detido pelos cientistas ou planejadores fosse o mesmo que o dos homens práticos, o planejamento econômico centralizado e as políticas públicas poderiam conduzir a resultados desejados pelos formuladores das políticas, mas, como apenas uma parcela pequena do conhecimento de ambos forma uma interseção (por exemplo, tanto eu como o Paura sabemos que as notícias sobre o nosso Fluminense estão no caderno de esportes do jornal), todo e qualquer planejamento centralizado está fadado ao fracasso. Na antiga União Soviética, por exemplo, era comum faltarem sapatos de um determinado número durante meses, porque os planejadores que determinavam quantos pares de cada tamanho seriam produzidos eram inteiramente alheios ao mercado de sapatos. Nós, economistas, precisamos dar mais atenção à economia do mundo real, que é a que importa, e usar a Teoria Econômica apenas para que todos possam entendê-lo melhor.

Marx, o vil filósofo dos sem memória



Diretor do Center for Academic Research do Acton Institute
Karl Marx é o maior filósofo de todos os tempos. Ou ao menos foi o que muitos ouvintes da rádio BBC recentemente afirmaram quando ao serem perguntados “Qual maior filósofo de nossos tempos?” indicaram tal personagem. Para a surpresa de alguns, Marx liderou a pesquisa (27,93% dos entrevistados), batendo – por ampla margem de diferença – pensadores como Aristóteles (4,52%) e Kant (5,21%).
Marx escreveu muitas coisas, até mesmo palavras admiráveis sobre o capitalismo, o qual via como um avanço explícito nos arranjos econômicos anteriores. O resultado da BBC, no entanto, ressalta uma estranha cegueira nas sociedades ocidentais que persistem na presença de Marx.
De certa forma, nada disso é novidade. Em 1930, ocidentais intrépidos viajaram para a União Soviética e retornaram dizendo que tinham visto o futuro. De algum modo, eles conseguiram não ver o expurgo, a coletivização, e os gulags que acabaram por aprisionar e matar milhões de pessoas. Dizem, muitas vezes, que o comunismo é um sistema sem Deus. Isso não é bem verdade. O comunismo foi sem Deus na medida em que se baseou numa visão atéia do homem. Mesmo assim, o comunismo teve seus deuses; divindades para quem todos e qualquer um poderiam ser sacrificados.
Uma resposta comum é dizer que a filosofia de Marx foi distorcida por Lenin e Stalin. O próprio Marx, muitas vezes ouvimos, foi um humanista que queria libertar os povos de seus grilhões. Outros apologistas insistem que podemos fazer distinções entre o jovem e o velho Marx: o jovem filósofo, mais humanista, e o grisalho e insensível revolucionário.
Mesmo numa rápida passada de olhos, os escritos de Marx rapidamente nos revelam a superficialidade de tais defesas. Uma consistente visão desumanizante aparece em todo o pensamento de Marx. Para esse autor, o homem é um ser cuja origem é irrelevante, o futuro é a extinção e o presente é submissão ao controle. Mesmo que as pessoas vivessem na sociedade comunista de Marx, elas não teriam a possibilidade de uma existência com significado. Certa vez Marx descreveu a sociedade comunista como aquela em que seria possível “fazer uma coisa hoje e outra amanhã”, caçar pela manhã, pescar a tarde, criar gado a noite e criticar depois do jantar, se me aprouver”.
Isso parece idílico até percebermos que, da perspectiva marxista, nenhuma dessas atividades pode ter qualquer valor para os seres humanos. Para os verdadeiros materialistas, não há diferença qualitativa entre ler e pescar, trabalhar ou dormir, viver ou morrer. Tudo tem o mesmo valor e, portanto, nenhum valor. Nesse mundo não há diferença entre o trabalho de Madre Teresa de Calcutá e o de um guarda do campo de concentração. Eles partilham da mesma parcela de irrelevância geral de tudo e de todos.
Isso nos diz que o marxismo não pode estar interessado na justiça ou na liberdade. Ele insiste no fato de sermos como uma jangada, navegando nas ondas da história. Em tal mundo, nossas vidas não são importantes e nossas mortes, irrelevantes. Tentamos salvar somente a satisfação animal que tiramos da vida, antes que o nada em essência que somos termine na nossa aniquilação final como seres vivos.
Tanto se pode dizer do humanismo de Marx e um dos problemas mais sério com a filosofia marxista é a legitimação da criminalidade. Por “criminoso” não quero dizer simplesmente a pessoa que ocasionalmente desrespeita a lei. Em vez disso, pretendo descrever toda a situação em que a pessoa decide estar acima da lei, não estar sujeita à lei e onde a lei age meramente como outra ferramenta do poder. Pois, se o marxismo estiver correto e o materialismo for verdadeiro, então a violência sistemática à lei para alcançar objetivos políticos é aceitável.
Ironicamente, enquanto milhões de pessoas nos dias de hoje conhecem os impronunciáveis crimes nazistas, muito poucos, ao contrário, sabem das atrocidades cometidas por Lenin, Stalin, Fidel Castro, Pol Pot e outros marxistas. É como se houvesse um acordo silencioso para que esses crimes não sejam mencionados. Essa ignorância estudada manifesta-se quando observamos bandeiras vermelhas com foices e martelos estampados em manifestações. Será que as pessoas que as empunham sabem dos muitos que foram escravizados e mortos pelos regimes marxistas? Por que a bandeira marxista não é tratada da mesma forma que a suástica nazista?
É claro que Marx morreu muitos anos antes de seus seguidores chegarem ao poder. Mas podemos suspeitar de que Marx teria aplaudido o uso da violência pelos comunistas. O próprio Marx advogou o enforcamento dos capitalistas nos postes mais próximos. “Quando chegar a nossa vez”, advertiu a seus oponentes, “não disfarçaremos o nosso terrorismo”.
Muitas ações violentas têm sido cometidas em nome de filosofias e religiões, e nisso incluimos o cristianismo. Mas a diferença é que o cristianismo possui um critério moral, segundo o qual podemos julgar e condenar tais atividades cometidas por parte dos cristãos. O marxismo nunca teve nem terá tais padrões, pois na filosofia marxista não há lugar para o amor de Deus e para o amor ao próximo. Talvez isso, acima de tudo, torne Marx tão indigno da admiração de nossos contemporâneos.

A Economia de João Paulo II: liberdade e verdade



Presidente do Acton Institute
Qual era a posição de João Paulo II sobre os assuntos econômicos? A mesma que mantinha em todos os outros assuntos que envolviam o bem estar dos seres humanos. Ele promovia os direitos e a dignidade de todos os povos, a liberdade de trabalhar e de criar, a manutenção de um ambiente de segurança que permitisse o florescimento da fé. O papa tinha fé na liberdade e não nutria nenhum amor pelo grande Estado secular. Assim, esse papa entendeu que a dignidade humana sugere uma estrutura político-econômica não socialista, comumente conhecida como economia de empresa.
Ele foi um crítico feroz do socialismo e trabalhou para pôr fim a esse regime na Europa Oriental. Viu o mérito dos acordos institucionais, mormente chamados de capitalistas: a proteção da propriedade privada, a liberdade de trocas, o respeito à vigência dos contratos, o direito à iniciativa econômica e o mérito social de uma economia próspera como fator essencial para manter uma população em crescimento.
Onde quer que eu faça essas afirmações, em qualquer tipo de auditório, imediatamente sou atacado com uma série de objeções ao efeito que João Paulo II tanto criticou, o consumismo americano. Preocupado com os efeitos da globalização sobre os pobres, pediu pelo perdão da dívida dos países pobres, defendeu os sindicatos – todas as posições pouco características de um defensor acrítico do Estado capitalista americano. A isso, posso somente responder: é verdade, mas note que nenhuma dessas reivindicações contradizem a conclusão essencial de que o socialismo e as instituições socialistas são incompatíveis com a liberdade e dignidade humanas, ao passo que às instituições da economia de mercado, essas reivindicações são compatíveis.
Sem dúvida, os indivíduos e as instituições devem também usar de sua liberdade no mercado, de modo consistente com a virtude e de acordo com o bem comum. A economia de empresa é necessária, mas não é condição suficiente. O que é crucial, do ponto de vista dos sistemas comparativos, no entanto, é que o papa ensinava o que era necessário.
“A moderna economia de empresa tem seus aspectos positivos”, escreveu, “ela se baseia na liberdade humana exercida no campo econômico, bem como é exercida em muitos outros campos. A atividade econômica é, de fato, senão um dos setores da grande variedade de atividades humanas e, como em todos os campos, inclui o direito à liberdade, bem como o dever de fazer uso responsável da liberdade”. Novamente, diz o papa “pareceria que, no nível das nações individuais e no das relações internacionais, o livre mercado é o instrumento mais eficaz para utilizar os recursos e efetivamente responder às necessidades”.
Uma contribuição particular de João Paulo II é a introdução do “direito de iniciativa econômica” no vocabulário teológico. “Devemos notar”, escreveu o papa, “que no mundo de hoje, dentre outros direitos, o direito à iniciativa econômica normalmente é suprimido. Assim, é um direito importante não só para o indivíduo, mas também para o bem comum. A experiência nos mostra que a negação desse direito, ou a sua limitação em nome de uma suposta 'igualdade' de todos na sociedade, diminui ou praticamente destrói de modo absoluto o espírito de iniciativa, ou seja, a criatividade subjetiva do cidadão”.
Para uma sólida educação econômica, não posso deixar de recomendar a carta-encíclica Centesimus Annus de 1991, que discute temas como: divisão do trabalho, propriedade, preços, lucro, desenvolvimento, moeda forte, comércio, meio-ambiente e uma série de outros assuntos, desejando que ela possa ensinar e estimular uma maior liberdade. O papa disse não apresentar ou endossar modelos, mas o que João Paulo II fez foi oferecer um ideal maior, desafiando todas as nações do mundo a rejeitar o erro econômico do planejamento estatal e à abraçar a liberdade total, até mesmo a liberdade econômica, direcionada para a verdade.

Globalização e Ética



Presidente do Conselho Editorial do CIEEP
O tema crucial do processo de integração mundial são os valores que presidem o relacionamento internacional neste início de século e de milênio. O atentado ao World Trade Center surpreendeu o mundo. Após a fase inicial de estupor e revolta diante da tragédia, o desastre começou a ser esclarecido. Ao compasso das investigações sobre a ação terrorista, surgiram tentativas de explicação e a ética nas relações internacionais tornou-se o tema do momento.
Inicialmente ganhou força a tese do “choque das civilizações” enunciada por Samuel Huntington em 1997. O futuro das relações internacionais estaria associado ao fator cultural. As culturas que impregnam as diversas civilizações entrariam em conflito em uma conjuntura de integração mundial. A globalização, de acordo com Huntington, contribuiu para esse cenário e tem a sua parte de responsabilidade: “a globalização incentiva e permite que gente como Bin Laden trame seus ataques ao centro de Manhattan, enquanto está em uma gruta do Afeganistão pobre”. (O Estado de S.Paulo, 28/10/2001, pág. A23). O ataque terrorista, na opinião de Huntington, restituiu ao Ocidente sua identidade comum.
A interpretação dos ataques aos Estados Unidos levantou a questão de saber quais são os valores que presidem às diversas civilizações como elementos subjacentes à explicação dos acontecimentos e da história. É preciso esclarecer, entretanto, que o responsável pela tragédia não foi o mundo islâmico, mas apenas um grupo radical que não representa adequadamente o Islã. Como apontou Henry Kissinger, “a América e seus aliados precisam tomar cuidado para não apresentar esta nova política como choque de civilizações entre o Ocidente e o Islã. A batalha é contra uma minoria radical que macula os aspectos humanos manifestados pelo islamismo em seus períodos grandiosos” (Folha de S.Paulo, 20/11/2001, Especial, pág.6).
O episódio das Torres Gêmeas, entretanto, alertou o mundo quanto à importância dos valores que presidem as culturas e civilizações. Ou seja, a ética nas comunicações, na economia, na política e na cultura é o elemento-chave para o futuro do mundo. Este é o fator fundamental que deve ser analisado na globalização.
Antes de avançar nesse estudo é necessário indagar: há uma única ética correta, aplicável a uma determinada situação, ou a ética é passível de interpretação diversa em função de fatores circunstanciais? Mais: há valores universais, que se aplicam a todos os povos de todos os tempos, ou os valores éticos são relativos?
O mundo presente vive mergulhado no relativismo ético. Sob a égide do relativismo, a ética torna-se subjetiva, sendo impossível chegar a qualquer conclusão objetiva e permanente. Esse é o grande dilema e limitação do mundo moderno: a ética esqueceu as suas origens como estudo filosófico, na Grécia clássica, sob a poderosa luz da inteligência de Sócrates.

Ética Da Convicção X Ética Da Responsabilidade

Nas relações internacionais, por exemplo, o dualismo ético foi formulado por Max Weber ao distinguir entre uma ética da convicção e uma ética da responsabilidade: “toda a atividade orientada segundo a ética pode ser subordinada a duas máximas inteiramente diversas e irredutivelmente opostas. Pode orientar-se segundo a ética da responsabilidade ou segundo a ética da convicção” (Weber, 1968, pág. 113). O partidário da ética da convicção deve velar pela doutrina pura. Seus atos “visam apenas àquele fim: estimular perpetuamente a chama da própria convicção” (idem, pág. 114). A ética da responsabilidade, por sua vez, tem como guia as previsíveis conseqüências dos atos: “o partidário da ética da responsabilidade, ao contrário, contará com as fraquezas comuns do homem <...> e entenderá que não pode lançar a ombros alheios as conseqüências previsíveis da sua própria ação” (idem, págs. 113-114).
Sob este ponto de vista, Weber afirma que os meios podem justificar os fins: “para alcançar fins «bons», vemo-nos, com freqüência, compelidos a recorrer, por um lado, a meios desonestos ou, pelo menos, perigosos, e compelidos, por outro, a contar com a possibilidade e mesmo a eventualidade de conseqüências desagradáveis” (idem, págs.114). A diferença entre essas duas éticas, tal como as resume Dahrendorf, consiste em que “a primeira abraça valores absolutos; é a moralidade dos santos. A segunda reconhece a complexidade das relações meios-fins; é a ética dos políticos” (1997, pág. 86).
É possível conviver com as duas éticas? Tanto para Weber quanto para muitos políticos e teóricos das relações internacionais, sim. Para Dahrendorf, não; e explica: “a insistência na qualidade absoluta de determinados valores fundamentais foi, creio eu, a razão de ser da tese que apresentei em Homo Sociologicus. Nunca confie na autoridade, pois é possível usá-la de forma horrivelmente abusiva. É certo que há condições – e as vimos prevalecer em tantos países, durante este século – nas quais a «ética da convicção» é a única moralidade válida” (1997, pág. 87).
É somente a partir de uma ética da convicção que a análise dos valores nas relações internacionais e, portanto, na presente conjuntura de globalização que atravessa o mundo, pode ser frutífera. É precisamente a ética que presidiu o pensamento de Sócrates, Platão e Aristóteles, na Grécia clássica.

Ética E Virtudes

A partir do momento em que há um reconhecimento de que a ética não é relativa, é possível analisar quais os valores que devem estar presentes nos diversos aspectos da globalização. Estudar os valores presentes na globalização é analisar as motivações humanas. Muitas respostas foram dadas a esta questão, porém a proposta de Aristóteles na sua obra Ética a Nicômaco permanece atual e importante. Para Aristóteles, as pessoas atuam procurando um bem, sendo que o bem mais importante é a felicidade.
É possível estabelecer uma ponte entre os valores da globalização e a obra de Aristóteles. Reconhecendo que há diversas opiniões sobre a felicidade, Aristóteles afirma que alguns colocam a felicidade no prazer, ou na riqueza, ou em outras coisas. A maioria das pessoas coloca a felicidade na riqueza e no prazer; porém, de acordo com o filósofo, nesse objetivo não reside a felicidade. Espíritos mais refinados põem a felicidade na glória, porém também não é nas honras que reside a felicidade. A felicidade se encontra na virtude. É na virtude que reside o fim do homem.
Para quem coloca a felicidade na riqueza, a globalização econômica pode ser uma fonte de oportunidades. Para Aristóteles, a riqueza é um bem exterior necessário como um meio, pois é impossível fazer o bem quando faltam recursos; porém, não deixa de ser um meio e não um fim da vida humana.
A glória da vida pública está associada ao poder político. Também não é este o fim da vida humana, de acordo com Aristóteles. A virtude é o verdadeiro fim do homem. É por essa razão que Aristóteles dedica a sua ética ao estudo da virtude: como definir e alcançar as virtudes, como meio para uma vida feliz. No processo de globalização, os fatores econômicos e políticos são importantes como meios para que as pessoas possam praticar as virtudes. A virtude que sobressai nesse processo é a justiça. E a esta virtude é que o filósofo grego dedica o livro V da sua obra.
A justiça deveria presidir a evolução da globalização como um valor universalmente presente no processo. O reconhecimento do valor universal da justiça como virtude para todos e a ser praticada por todos seria um bom começo para o futuro dos âmbitos econômico e político. Entretanto, a prática da justiça pura e simples não eliminaria o fosso existente entre países nem superaria as limitações e dificuldades econômicas de países ou pessoas que carecem dos mínimos meios para a própria subsistência. É nesse ponto que surge um novo valor, não econômico, para amenizar e corrigir as distorções ou assimetrias promovidas pela globalização: a solidariedade.
A solidariedade não se impõe. É um valor humano que vem de dentro. Somente a solidariedade pode ajudar a mudar o que a simples justiça não pode alterar. Nas últimas décadas, pari passu com a globalização, tem aumentado o número de organizações de voluntários, ONGs, instituições religiosas e entidades diversas que têm contribuído para sarar as feridas abertas da desigualdade. Ainda assim, um sexto da população mundial vive em países muito pobres. Há muito a ser feito e somente a partir dos valores é possível corrigir aquilo que a política e a economia, no novo mundo a caminho de uma maior integração, não conseguem solucionar de um modo satisfatório.
São, portanto, os valores presentes nas civilizações os verdadeiros responsáveis pelo destino do futuro mundial nas próximas décadas e séculos. Se a justiça e a solidariedade prevalecerem sobre a riqueza e o poder, ainda há esperança para o nosso futuro comum.

Referências Biográficas

ARISTÓTELES. Ética Nicomaquea. Madri: Gredos, 1998.
DAREHNDORF, Ralf . Após 1989. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
HUNTINGTON, S. O Choque das Civilizações e a Composição da Ordem Mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.
HUNTINGTON, S. Entrevista a Nathan Gardels (Global Viewpoint), Reproduzida em O Estado de São Paulo, 28/10/2002, p. A23.
KISSINGER, H. “Ataque terrorista exige reposta nova”. Folha de S. Paulo, 20/9/2001 -Especial, p. 6.
WEBER, M. Ciência e Política. São Paulo: Cultrix, 1968.

Deus, o homem e o meio-ambiente

 Samuel Gregg

Diretor do Center for Academic Research do Acton Institute


Em 22 de abril, uma grande parte do mundo celebrará o Dia Internacional da Terra. Como muitos modismos, a popularidade desse evento ficou enfraquecida na maior parte do ocidente. Isso pode ter ocorrido porque as calamitosas conseqüências previstas por muitos ecologistas não aconteceram. Apesar disso, muitas pessoas de fé continuam a pregar uma espécie de “Evangelho verde”, alegando que um apocalipse ecológico irá ocorrer a menos que uma série de políticas – normalmente envolvendo várias formas de regulamentação governamental – sejam imediatamente adotadas.
É verdade que o “Evangelho verde” mudou seu credo ao longo dos últimos dez anos. Os fiéis já trilharam um longo caminho desde os dias das procissões de elefantes e das placas de cultura de bactérias na Catedral Episcopal de St. John The Divine em Nova York. Do mesmo modo, o flerte com a pseudo-ciência da teoria Gaia parece estar confinada a um número reduzido de teólogos da libertação, ex-padres e feministas que se autodenominam “eco-teólogas”.
Mas, embora os ambientalistas dentro das comunidades de fé, agora sabiamente se distanciem das tendências neo-pagãs que surgiram nos anos noventa, algumas coisas não mudaram. A primeira delas é o hábito de aceitar acriticamente as previsões de um juízo final ecológico feitas por ativistas ecológicos e alguns cientistas. Associado a isso está o hábito bastante não científico de ignorar qualquer evidência em contrário.
Um segundo problema recorrente é a tendência a considerar os problemas ecológicos como sendo iguais, ou de maior importância, do que a guerra contínua contra a vida humana inocente que floresce, na forma cada vez mais expansiva e cancerosa, da cultura de morte. Certamente, a destruição aleatória e sem sentido do mundo natural é um pecado. No entanto, a comparação dessas ações com a morte dos fetos ainda não nascidos ou com a eutanásia dos idosos, dos doentes ou aleijados, não pode ser conciliada com qualquer teologia moral cristã ortodoxa.
Há também o hábito de associar a responsabilidade ambiental com a intervenção do governo. Raramente chega ao conhecimento dos muitos círculos de ambientalistas cristãos que os maiores poluidores do mundo foram os regimes estatistas que dominavam a Europa Central e Oriental, bem como a ex-União Soviética. Qualquer pessoa buscaria em vão, dentre os escritos dos vários ambientalistas cristãos, encontrar o reconhecimento da força das soluções baseadas na propriedade privada para os problemas ambientais.
A beleza dessas soluções não repousam tão somente na sua eficiência comprovada. A utilidade e eficácia têm lugar na vida moral cristã, mas estão estritamente subordinadas à necessidade de evitar o mal e participar dos bens morais que são o fundamento do aprimoramento humano.
Desse ponto de vista, a força moral das soluções baseadas na propriedade privada devem ser encontradas de forma tal que atribuam responsabilidade direta pelo mundo natural nas mãos de indivíduos de carne e osso. Ao atingir tal patamar, nós mesmos evitamos de negligenciar tais obrigações por delegá-las aos políticos e burocratas.
É claro que nenhuma pessoa pode assumir a responsabilidade por toda a natureza. As soluções dadas pela propriedade privada, contudo, permitem que milhares de indivíduos e comunidades concretizem suas responsabilidades de bons administradores da terra, precisamente por permiti-los exercer o que o livro do Gênesis descreve como o domínio de cada pessoa humana sobre a Terra.
O exercício desse domínio, não é, é claro irrestrito. Se não puder ser moralmente bom, tal domínio deve ser atualizado de acordo com as especificações da lei divina dada por Deus, até mesmo aquela porção que possa ser conhecida pela simples razão humana, ou o que chamamos de lei moral natural. Dizer de outro modo seria sugerir que os seres humanos sabem mais do que Deus sobre a verdade do bem e do mal moral.
Dentro desses parâmetros, no entanto, as soluções que consideram a propriedade privada como parte da solução dos problemas ambientais permitem às pessoas aplicar seus conhecimentos diretamente aos assuntos que as tocar. Nesse sentido, representam uma aplicação concreta do princípio da subsidiariedade nas questões de meio-ambiente.
Isso não significa que o governo não tenha um papel a cumprir nas questões ambientais. As transações humanas no mundo natural não estão numa “zona-franca” da legislação. Qualquer análise mais acurada da subsidiariedade, no entanto, sugerirá que os problemas de meio-ambiente são melhor resolvidos e encaminhados na esfera mais próxima ao problema, até que o indivíduo ou a comunidade provem ser manifestamente incapazes de resolver a questão.
Nesse Dia da Terra, esperemos que os cristãos continuem a se distanciar dos elementos decididamente não cristãos e não científicos dos vários movimentos de meio-ambiente e descobrir as verdadeiras idéias amigas da natureza, que podem ser encontradas dentro de nossas próprias tradições. Essa é uma forma de respeitar a glória da ação criativa de Deus, ao passo que honramos a pessoa humana que está no ápice da criação de Deus.

John Ronald Reuel Tolkien


J. R. R. Tolkien foi professor de língua e literatura anglo-saxônica e inglesa de 1925 a 1959 na Universidade de Oxford. Tolkien é mais conhecido por seus livros O Hobbit (1937), O senhor dos anéis, que compreende três volumes: A sociedade do anel, As duas torres e O retorno do rei (1954-55), e O Silmarilion (1977), todos ambientados no mundo mitológico da Terra-Média. Tolkien foi um católico ardoroso que lembrava-se e experimentara um período onde a liberdade religiosa ainda não estava completamente garantida na Grã-Bretanha. A fé, para Tolkien, como observa seu biógrafo literário Joseph Pearce, “não era uma opinião a que poderíamos subscrever, mas uma realidade a que deveríamos nos submeter.” De fato, o relacionamento de Tolkien com C. S. Lewis, seu colega na Universidade de Oxford, foi providencial para levar um Lewis desiludido de volta à fé cristã. A fé de Tolkien é tão central em seus livros sobre a Terra-média quanto sua preocupação em preservar a liberdade. Antes de se tornar um professor ilustre, Tolkien serviu no exército britânico durante a Primeira Guerra Mundial. As experiências em primeira mão que teve na Primeira Guerra trouxeram uma imensa preocupação, para não dizer uma total apreensão, com a ascenção do totalitarismo.
O mal do poder totalitário é um dos temas centrais d'O senhor dos anéis. Como ele mesmo explicava, O senhor dos anéis é uma estória “formulada em termos de um lado bom e um lado mau, da beleza contra a feiúra cruel, da tirania contra a realeza, da liberdade moderada pelo consentimento contra a compulsão que há muito perdeu o objeto, salvo o mero poder, e assim por diante.” O enredo central d'O senhor dos anéis envolve a questão épica de destruir o Um anel, que continha o poder de governar toda a Terra-média. Ainda que as personagens e os acontecimentos d'O senhor dos anéis geralmente desafiem precisos paralelos alegóricos, o Um anel facilmente simboliza a corrupção e a tirania que resultam do poder político incontrolado. O Um anel dá ao usuário o poder de governar a Terra-média, mas também impõe uma escravidão inescapável para manter o poder a qualquer custo. Num determinado nível, O senhor dos anéis faz a alegoria da progressão de um tirano. Começando como governante, até mesmo com boas intenções, ele ou ela passa a ser governado por uma ânsia espasmódica de adquirir ainda mais poder e o desejo insaciável de esmagar qualquer liberdade. O tirano, então se torna tão escravo quanto seus súditos, onde tudo o que existe passa à um estado banal de servidão que repudia qualquer expressão de virtude.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

A sucessão de Pedro e o Papado - EB (Parte 1)


Revista: "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 255 - Ano : 1981 - p. 116
 Em síntese : O pastor Anibal Pereira dos Reis publicou em 1980 mais um livro polêmico, em que desta vez ataca o Papa e, de modo especial, a sucessão apostólica a partir de São Pedro.
Verifica-se, porém, que o referido autor não foi às fontes da história dos Papas, mas consultou manuais de história da Igreja editados nos últimos cem anos, guiado por preconceitos passionais.  É o que explica tenha visto problemas sucessórios onde não os há ou tenha exagerado, dificuldades que não são decisivas.
O presente artigo repassa os casos da história dos Papas apontados pelo Pastor Anibal, mostrando o que neles haja de vicissitudes humanas, vicissitudes, porém, que não impedem o historiador de discernir a sucessão apostólica ininterrupta desde Pedro até João Paulo II.  É esta a importante conclusão de todo este estudo.  A palavra de Jesus que prometeu a Pedro e aos Apóstolos e sua assistência indefectível até a consumação dos séculos (cf. Mt 16, 16-19; 28,19s), continua válida: aplica-se a João Paulo II e aos bispos de sua comunhão como legítimos sucessores do colégio apostólico chefiado por Pedro.
Quem observa a história do Papado e a da Igreja, tem motivos para corroborar a sua fé, pois o conhecimento do passado evidencia que é o Senhor Deus quem sustenta a Igreja, e não a virtude dos homens; mais convicta ainda se torna a consciência de que é o próprio Jesus Cristo quem está presente em sua Igreja e a conserva incólume Mestra da Verdade através das tormentas da história.
Comentário:  Em 1980 foi editado mais um livro polêmico, intitulado "Cartas ao Papa" João Paulo II, da lavra do pastor Anibal Pereira dos Reis.  Este opúsculo, redigido em estilo sarcástico, impugna a legitimidade da autoridade papal.  Para tanto, recorre a afirmações não comprovadas, a fontes pouco abalizadas e a interpretações distorcidas dos fatos.  Um autor que cultive realmente a ciência, não usa tal estilo nem tal método, pois são passionais e não se atêm à objetividade do discurso autenticamente científico.  Como quer que seja, o livro do pastor Anibal pode impressionar leitores despreparados ... Eis por que lhe daremos atenção.
O autor contesta a autoridade de Pedro e o seu sepultamento em Roma - o que já foi estudado em PR 252/1980, pp. 487-499; consequentemente, impugna a autoridade dos sucessores de Pedro, tentando mostrar que a sucessão dos Papas através dos séculos é obscura a ponto de haver contradições entre os próprios autores católicos.  Nas páginas subseqüentes, voltar-nos-emos para a história do Papado a fim de elucidar os pontos indicados pelo pastor Anibal e evidenciar a continuidade das funções de Pedro por entre os altos e baixos que a história dos homens não pode deixar de apresentar.
Os percalços da história
O pastor Anibal Pereira dos Reis apresenta um quadro muito confuso da história do Papado.  Cita autores de manuais da história da Igreja como Capelli, Seppelt-Loeffler, Pastor, Lorenz, H. Bruck ..., todos autores dos últimos cem anos ... Anibal Pereira dos Reis não pesquisou fontes antigas, para poder penetrar melhor a matéria, de modo que a sua explanação não pode deixar de ser superficial e pré-científica.
Procurando considerar com objetividade serena o assunto, observamos que a história do Papado, como, aliás, freqüentemente a história geral, não pode deixar de ter os seus pontos obscuros. E isto, no caso do Papado, por quatro principais motivos:
Deficiência de fontes e cronistas na antiguidade
As primeiras tentativas de reconstituir a linha sucessória dos Papas datam do século II e devem-se respectivamente aos escritores Hegesipo (151-166) e S. Ireneu (177-178).  Ambos foram a Roma para consultar diretamente as fontes da história1.
O trabalho de Hegesipo chegou-nos em estado fragmentário (inserido na Historia Ecclesiastica de Eusébio de Cesaréia V 22,3), ao passo que o de S. Ireneu foi conservado integralmente (ib. V. 6,24-29; Adversus Haereses III 3), mas sem dados cronológicos; a lista dos Papas confeccionada por S. Ireneu é o documento mais abalizado que tenhamos no tocante aos primórdios do Papado; começa com Pedro, Lino, Cleto e estende-se até S. Eleutério (175-189).
Acontece que, no decorrer dos séculos, cronistas e historiadores tentaram estabelecer a lista dos Papas da antigüidade, mas às vezes de maneira pouco científica, comparando a cronologia dos Papas com as de Imperadores e cônsules.  Numerosas são as tabelas daí oriundas.  Os críticos têm procurado fazer a triagem de tais documentos, de modo a oferecer ao estudioso contemporâneo a autêntica imagem da história do Papado.
Erros e incertezas da crônica
Dentre as deficiências cronográficas, merecem especial relevo as seguintes :
- por vezes, os cronistas inseriram nos catálogos dos Papas nomes de pessoas que nunca existiram; assim Dono II1,  que teria governado em 972 ou 974; por sua vez, o Papista Joana nunca existiu, mas foi introduzida no catálogo dos Papas em lugares diferentes (o que bem mostra que se trata de ficção; cf. PR 141/1971, pp. 411-418);
- a numeração dos Papas nem sempre procedeu exatamente.  Assim o Papa João XV (985-996) em algumas listas foi considerado João XVI, pois erroneamente se colocou antes do mesmo um fictício João XV; em conseqüência, a numeração dos Papas subseqüentes de nome João foi aumentada de uma unidade até João XVIII.  Nesta série, João XVI foi antipapa, como se verá adiante; não obstante, foi João XVI computado, por erro, entre os Papas legítimos ... Não houve Papa de nome João XX;
- a escrita de determinados nomes oscilou, de modo que um Papa pode aparecer duas vezes num catálogo com nomes semelhantes: tal é o caso de Cleto e Analeto2 e de Marcelo e Marcelino; provavelmente trata-se apenas dos Papas S. Anacleto ou Cleto (76-88 ou 79-91) e S. Marcelino (296-304);
- quando era escolhido Papa um diácono nos primeiros séculos, este devia receber a ordenação episcopal; sem esta o cleito não poderia ser considerado Papa.  Ora Estêvão II foi eleito entre 16 e 23/03/752; faleceu, porém, dois dias após a eleição, sem ter sido ordenado bispo, de modo que juridicamente não é Papa; não obstante, por alguns cronistas medievais foi considerado como Papa Estêvão II: visto que fora eleito.  O seguinte Estêvão toma ora o número II, ora o número III (752-757), de mais a mais que sucedeu sem intermediário a Estevão (II).
Ingerência de Imperadores e famílias nobres
Desde que o Imperador Constantino concedeu a paz aos cristãos (313), o poder imperial foi assumindo funções de tutela em relação à Igreja até chegar ao exercício do Cesaropapismo (cf. Justiniano I, 527-565).  Além disto, as famílias nobres de Roma e dos arredores também se imiscuíram na escolha dos bispos de Roma, procurando favorecer seus interesses particulares e políticos.  Disto resultou que pessoas não qualificadas foram colocadas sobre a sé de Pedro, às vezes em pontificados breves e tumultuados; resultou também que os Imperadores promoveram a eleição de seu Papa próprio (= antipapa) em oposição ao legítimo Pontífice.  Assim, por exemplo, o Imperador Oto I, no Sínodo de Roma de 4/12/1963, depôs o Papa João XII e ocasionou a eleição de Leão VIII.  Este foi antipapa, visto que nenhum Imperador tem autoridade para depor um Papa; somente depois que faleceu João XII (964), a sé papal tornou-se vacante, sendo então eleito como legítimo Pontífice Bento V.  Todavia há catálogos antigos que erroneamente consignam João XII, Leão VIII e Bento V como Papas legítimos!
Outro motivo de percalços na história do Papado é
A fraqueza de clérigos
Houve, sem dúvida, clérigos cobiçosos que disputaram a ascensão à cátedra de Pedro, provocando agitação e quadros sombrios na linhagem dos Papas.  A verificação da fragilidade humana não surpreende o cristão; este sabe que, desde Abraão, Isaque e Jacó, o Senhor  se dignou escolher os instrumentos humanamente mais fracos para realizar o seu sábio plano de salvação.  Ao verificar isto, São Paulo diz: "É na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder ... Por isto eu me comprazo nas fraquezas ... nas necessidades ... pois, quando sou fraco, então é que sou forte" (2Cor 12,9s).
Uma vez expostas as causas de dificuldades que o historiador encontra para reconstituir a história do Papado, compete-nos deter-nos mais atentamente sobre o que seja um antipapa.
Antipapa
Exporemos as maneiras como se pode originar um Antipapa; a seguir, examinaremos alguns casos particulares.
Como (...)?
Como diz o nome, Antipapa é alguém que se opõe ao Papa legítimo trazendo falsamente o título de Papa; trata-se de um usurpador, eleito (às vezes de boa fé) em condições ilegítimas.  Atribuindo a si a autoridade de Papa, cria um estado de cisma entre os fiéis.  O primeiro Antipapa que se conheça, é Hipólito Romano (217-235) e o último vem a ser Félix V (1439-1449); a respeito de um e outro dir-se-á uma palavra oportunamente. 
O número de antipapas oscila, pois os estudiosos seguem critérios diferentes para definir se tal ou tal figura foi ou não antipapa.  Os historiadores protestantes, por exemplo, julgam vacante a sede papal se o respectivo titular é deposto por motivos políticos; ao contrário, os católicos afirmam que não há poder imperial nem eclesial habilitado a destituir um Pontífice1 e estipulam os seguintes critérios para distinguir um Papa legítimo de um antipapa:
1) esteja a sede papal vacante por ocasião da eleição ou da ascensão do Pontífice à mesma;  ora a vacância só ocorre por morte ou por renúncia do legítimo titular; fora destes casos, a sede papal não pode ser ocupada por quem quer que seja;
2) os legítimos eleitores do futuro Papa desempenhem as suas funções com plena liberdade.  No caso de terem efetuado uma eleição de validade dúbia ou nula, requer-se um ato público que sane os vícios da eleição realizada.  Foi o que se deu no caso do Papa Vigílio.  O Papa S. Silvério (536-537) fora indevidamente deposto pelo general Belisário; a facção deste procedeu então à escolha do diácono Vigílio para ser o "Papa", mas invalidamente.  Morto Silvério, Vigílio foi reconhecido publicamente como Papa legítimo (11/11/537); não foi Papa senão após a morte de Silvério;
3) Cumpram-se exatamente as prescrições canônicas vigentes para a eleição de um Papa.  Tais normas têm variado de época para época, tendendo a se tornar cada vez mais rígidas, a fim de se evitar a intrusão de facções políticas.
Os antipapas tiveram origem freqüentemente pelo fato de os Imperadores e famílias nobres intervirem na escolha do Pontífice.
A primeira intervenção imperial em favor de um antipapa foi a de Constâncio (337-361) em prol de Félix II; o monarca, tendo-se imiscuído na controvérsia ariana1,  exilou o Papa Libério (351-366), que defendia a reta doutrina (o Credo de Nicéia); em conseqüência, no ano de 355 o diácono de Roma Félix aceitou ser ordenado bispo, como se lhe fosse lícito substituir Libério, o bispo de Roma; voltaremos ao assunto à p. 123. - Por causa da confusão dos cronistas, o seguinte Papa Félix (483-492) foi tido como o terceiro, e não o segundo, deste nome2.  As intervenções na Idade Média desde Oto I (936-973) a Frederico I Barba-roxa (1152-1190).
A partir de antipapa Constantino (767-768) até Anacleto II (1130-1138) a ascensão de antipapas foi promovida freqüentemente também pelas famílias romanas interessadas em colocar parentes sobre a cátedra de Pedro.
Examinaremos alguns casos de antipapas mencionados especialmente pelo pastor Aníbal dos Reis.
Casos especiais
Hipólito de Roma
Hipólito aparece em Roma no fim do século II como personagem erudito e, ao mesmo tempo, polemista; combatia as heresias que sob o pontificado do Papa Vitor (189-199) perturbavam a comunidade de Roma.
O Papa Zeferino (199-217) parecia a Hipólito demasiado indulgente para com os cristãos indisciplinados.  Quando  a este sucedeu Calisto (217-222), Hipólito se separou da comunhão da Igreja, dando origem a uma facção cismática, da qual ele era o bispo.  Tornou-se assim o primeiro antipapa, persistindo nesta atitude ainda sob os pontificados de Urbano I (222-230) e Ponciano )230-235).  Tal situação acabou quando o Imperador Maximino Trace publicou um edito de perseguição que atingia principalmente os pastores da Igreja: então Ponciano e Hipólito foram deportados para a ilha "nociva", a Sardenha; Hipólito reconciliou-se com o Papa Ponciano e a Igreja no exílio; ambos sofreram o martírio pela fé.
Assim se explica que Hipólito tenha sido antipapa e seja tido como santo.  Ele só foi santo por ter deixado de ser antipapa e haver aderido a Cristo na única Igreja, cujo pastor supremo é o bispo de Roma.  Os santos podem ter atravessado fases de vida censuráveis.
Os "Félix"
Há três Papas legítimos de nome Félix e dois ilegítimos ou antipapas.  A numeração é contínua de I a V, não porque se devam equiparar entre si os autênticos e os falsos Pontífices, mas porque as circunstâncias da época em que viveu Félix II não permitiram aos cristãos discernir entre verdadeiro e falso sucessor de São Pedro.  Hoje, ao ler tal numeração, o cristão reconhece o significado relativo da mesma, sabendo que não é o título nem a numeração que faz de um antipapa um autêntico Pontífice.  Percorramos sumariamente a seqüência dos cinco Félix: 
1) Félix I, Papa, governou de 269 a 274.  Deixou uma carta ao clero de Alexandria, na qual afirma a unicidade da pessoa de Jesus Cristo, tema debatido no século III.
2) Félix II, antipapa.  Era arquidiácono em Roma.  O arianismo (heresia que negava a divindade de Cristo) era então favorecido pelo Imperador Constâncio (337-361), que em conseqüência exilou o Papa Libério.  Então Félix, embora tivesse prometido fidelidade ao Pontífice, permitiu que o ordenassem bispo de Roma.  A cerimônia realizou-se no palácio imperial, em presença de poucos funcionários.  O povo de Roma não quis reconhecer o antipapa nem freqüentava as igrejas em que pontificava.


A sucessão de Pedro e o Papado - EB (Parte 2)




Em 358, quando Libério voltou do exílio, o Imperador quis que Libério e Félix governassem conjuntamente a Igreja.  O povo se rebelou e levou Félix a deixar a cidade de Roma.  Pouco depois, Félix tentou tomar a brasílica Iulii no Trastevere para oficiar, mas o povo o obrigou a sair de novo.  Retirou-se então de Roma e morreu junto à Via Portuense em 22/11/365.
No início do século VI os acontecimentos do século IV não eram claros aos cronistas, de modo que Félix foi considerado Papa legítimo e identificado com um mártir do mesmo nome sepultado junto à Via Portuense; por isto passou a ser recordado no Martirológio Jeronimiano aos 9 de julho. - Está claro, porém, que Félix não foi nem Papa legítimo nem mártir.
Félix III, Papa, governou de 483 a 492.
Félix IV, Papa, pontificou de 526 a 530.
Félix V, antipapa, foi eleito "Papa" (= antipapa) nos tempos do Papa Eugênio IV (1431-1447).  Em 1439, o cardeal de Arles e 32 eleitores (dois quais apenas onze eram bispos), reunidos em Brasília, escolheram o duque Amadeu VIII de Savoia para chefiar uma facção oposta à Santa Sé.  Os eleitores pretendiam continuar assim a ação de um Concílio que, iniciado em Brasiléia (Suíça), fora transferido pelo Papa legítimo Eugênio IV para Ferrara (Itália) em 1438;  a facção que permaneceu em Basiléia, não aceitara a transferência do Concílio.  O antipapa tomou o nome de Félix V, e foi residir em Lausannne (Suíça).  Em 1449 renunciou, vindo a morrer em 1451 reconciliado com a Igreja e o Papado. - Como já foi dito, Félix V é o último antipapa da história.
Cristóvão
Contra o Papa Leão V (903-904) insurgiu-se o cidadão romano Cristóvão em setembro de 903.  Deteve a sede papal durante quatro meses, ou seja, até janeiro de 904.  Não há como atribuir foros de autenticidade ao seu comportamento.
Leão VIII
O imperador Oto I (936-973) da Germânia opunha-se ao Papa legítimo João XII por motivos políticos.  Foi então a Roma, convocou um Sínodo local, para o qual chamou o Papa João XII (4/12/963).  Este tendo-se recusado a comparecer, o Imperador fez eleger como antipapa um leigo, ao qual foram conferidas todas as ordens sagradas e o título de Papa Leão VIII; este devia ser pessoa de costumes dignos, mas fora ilegitimamente eleito, já que a Sé papal não estava vacante.  A população de Roma permaneceu fiel ao Papa João XII, de modo que em janeiro de 964 houve uma revolta em Roma, durante a qual Leão VIII sofreu um atentado.  João XII, que deixara a cidade, aproveitou a ocasião para voltar a Roma; um Sínodo reunido em Roma declarou nula a eleição de Leão VIII no ano de 965.
João XVI
João Filagato era de origem grega, nascido na Calábria. Tornou-se bispo de Pavia.  O Imperador Oto III enviou-o a Constantinopla como legado seu.  Quando voltou do Oriente para Roma, na ausência do Imperador, a facção dos Crescêncios, que dominava Roma, o proclamou Papa, talvez à revelia do próprio Filagato, que tomou o nome de João XVI em abril de 997.  Era então Papa legítimo Gregório V (996-999); este teve que fugir de Roma, embora gozasse de apoio do Imperador, Quando este retornou a Roma, depôs João XVI e o relegou para um mosteiro.  Como se vê, trata-se de um antipapa devido à ingerência de interesses estranhos aos da Igreja.
Bento IX
Teofilato era o filho de Alberico III da família dos condes de Túsculo, e sobrinho dos dois últimos Papas Bento VIII (1012-24) e João XIX (1024-32).  Quando morreu este último, o pai impôs aos leitores a pessoa de Teofilato, que em 1032 foi eleito Papa com o nome de Bento IX.  Este tinha entre vinte e cinco e trinta anos de idade e se achava totalmente despreparado para tão elevado mister.  Levou vida mais semelhante à de um senhor deste mundo do que à de um Papa.  Em 1045 os romanos elegeram, como antipapa, Silvestre III, que durou apenas cinqüenta dias.  Diante do mal-estar reinante em Roma, Bento IX, resolveu renunciar ao Papado a 1º/05/1045.  Em seu lugar foi eleito o presbítero João Graciano, com o nome de Gregório VI (1045-1046).  Um Sínodo em Sutri, orientado pelo Imperador Henrique III, declarou depostos o Antipapa Silvestre III e o Papa Gregório VI (20/12/1046).  Outro Sínodo reunido em Roma aos 24/12/1046 depôs Bento IX (que já renunciara havia muito) e elegeu Clemente II. Quando este morreu (19/10/1047), Bento voltou a Roma e usurpou a cátedra de Pedro de 8/11/1047 a 16/07/1048, quando as forças do Imperador o obrigaram a ceder a sede a Dámaso II; este governou apenas três semanas, pois faleceu aos 9/08/1048. - Quanto  a Bento IX, ainda viveu até 1055 ou 1056; há quem diga que se arrependeu e terminou os dias no mosteiro de Grottaberrata, como há (como São Pedro Damião) quem afirme o contrário.
São estes fatos que explicam seja Bento IX nomeado duas vezes nas listas dos Pontífices Romanos; somente a primeira referência é legítima; a Segunda estada na cátedra de Pedro foi ilícita ou usurpatória.
Silvestre III
O pontificado de Bento IX (1022-1045) foi assaz autoritário.  Em conseqüência, os romanos elegeram antipapa em janeiro de 1045 o bispo João, da cidade de Sabina, que tomou o nome de Silvestre III.  Pouca coisa se sabe a respeito deste prelado; o Concílio de Sutri, apoiado pelo Imperador Henrique III, o declarou deposto em 1046; na verdade, Silvestre III só foi antipapa de 20/01/1045 a 10/03/1045.
Bento X
O Papa Estêvão IX (1057-1058), antes de morrer, induziu o clero e o povo romanos a jurar que não procederiam à eleição de novo Papa antes da volta do diácono Hildebrando, que estava na Alemanha e defendia a Igreja contra a prepotência dos nobres.  Todavia, após a morte de Estêvão IX (29/03/1058), a aristocracia romana rompeu o juramento e escolheu João Mincio, bispo de Velletri, para ser o Papa (antipapa) Bento X (5/04/1058).  A eleição foi ilegítima, porque não realizada pelo colégio eleitoral devidamente convocado e presente.  Quando Hildebrando voltou da Alemanha, reuniu em Sena os cardeais, os representantes do clero e do povo num Sínodo que elegeu Garardo, bispo de Florença, o qual tomou o nome de Nicolau II (1059-1061).  Pouco depois um Concílio em Sutri declarou Bento X perjuro e intruso, confirmando Nicolau II na cátedra de Pedro.  O governo do antipapa durara dez meses (5/04/1058-24/01/1059).
Bento X deixou Roma em janeiro de 1059.  Morreu durante o pontificado de Gregório VI (1073-85), que, por magnanimidade, quis tivesse funerais honrosos.  Por isto, durante muito tempo Bento X foi tido como Papa legítimo e foi incluído no catálogo dos Papas; em conseqüência, o Cardeal Nicolau Boccasini, eleito Papa em 1303, se chamou Bento XI, e não Bento X; na verdade, como foi demonstrado, Bento X foi antipapa e não deve figurar na lista dos Pontífices Romanos.
Alexandre II e Alexandre V.  O Grande Cisma do Ocidente
A respeito de Alexandre II não resta dúvida de que foi legitimamente eleito após a morte de Nicolau II (1061) e governou legalmente até a morte em 1073.  Viveu num período em que a Igreja lutava para se libertar da intervenção do poder dos reis e dos príncipes.  Ora, como Alexandre II fosse homem austero e adepto da renovação da Igreja, a sua eleição não agradou aos nobres de Roma e ao Imperador da Alemanha; em conseqüência, estes promoveram em 1061 a eleição de Cádalo, bispo de Parma, que se tornou o antipapa Honório II (1061-1072); o poder imperial tudo fez para apoiar Honório contra Alexandre; todavia isto não invalida a posição de Alexandre nem legítima a de Honório II.
Quanto a Alexandre V, faz-se mister colocá-lo no contexto do Grande Cisma do Ocidente.
Desde os tempos do rei Filipe IV o Belo (1285-1314), da França, este país foi exercendo certa ascendência sobre o Papado.  Este chegou a transferir a sua sede para Avinhão na França de 1309 a 1377.  Quando, após o chamado "exílio de Avinhão", o Papa Gregório XI morreu em Roma aos 27/03/1378, os Cardeais procederam à eleição de Urbano VI (1378-89), Papa legítimo nativo de Nápoles; todavia os monarcas da França e de Nápoles, descontentes pelo fato de ser o Pontífice italiano e não francês, incentivaram treze Cardeais a proceder a nova eleição em Fondi (reino de Nápolis), da qual resultou o antipapa Clemente VII (1378-94), que era francês, primo do rei da França, e foi residir em Avinhão.  Instaurou-se assim um cisma de grande vulto no Ocidente cristão (1378-1417); os monarcas aderiam a um ou outro dos pastores em causa, segundo seus interesses particulares, deixando os fiéis muitas vezes perplexos.  A situação de cisma foi-se protraindo, até que em Pisa um grupo de Cardeais de ambas as obediências reunidos em 1409 houve por bem declarar depostos os dois Pontífices (o antipapa e o Papa) e elegeram, para assumir a cátedra de Pedro, o franciscano de origem grega Pedro Filargo, que tomou o nome de Alexandre V (1409-1410).  Evidentemente esta eleição foi ilegítima, pois nenhum Concílio tem autoridade sobre o Papa legítimo, que, no caso, era Gregório XII< sucessor de Urbano VI.
Havendo três obediências na Igreja - a de Roma, a de Avinhão e a de Pisa -, os cristãos não viam como resolver o impasse, de mais a mais que isto não poderia ser feito mediante a deposição do Papa legítimo por parte de um Concílio.
O Espírito de Deus manifestou então sua presença providente na Igreja.  Com efeito.  O rei Sigismundo da Alemanha quis promover a celebração de um Concílio ecumênico em Constança para pôr termo ao cisma; o Concíílio, embora não legitimamente convocado pelo Imperador, reuniu-se em 1414 na cidade de Constança; o antipapa João XXIII, sucessor de Alexandre V, lá compareceu, certo de que seria confirmado Papa pelo Concílio; ora isto não se deu, pois foi tido como usurpador e assim constrangido a fugir; foi deposto finalmente e perdeu toda autoridade.  O Papa legítimo Gregório XII, em Roma, já tinha noventa anos de idade.  Pediu então aos padres conciliares que aceitassem ser por ele convocados e habilitados a agir conciliarmente; tendo os conciliares aceito tal delegação da parte do Papa legítimo, constituíram uma autêntica assembléia da Igreja universal; Gregório XII, a seguir, aos 4/07/1415, renunciou ao Papado, deixando a sede vacante para que os conciliares pudessem proceder à eleição de novo Papa.  Quanto a Bento XIII, o antipapa de Avinhão, já estava idoso e perdera muito do seu prestígio; os seus seguidores o abandonavam aos poucos.  O Concílio declarou-o ilegítimo.  Estava assim o caminho aplainado para a eleição de novo Papa.  Este foi o Cardeal Odo Colonna, que tomou o nome de Martinho V aos 11/11/1417.  Assim terminou a terrível situação de cisma na Igreja sem derrogação ao primado do Romano Pontífice e sem quebra da sucessão apostólica.  Embora os cristãos se tenham sentido perplexos durante os decênios do cisma, o Espírito Santo guiou a Igreja para que a linhagem de Pedro ficasse incólume através da borrasca.
É de notar que, após Martinho V, a sucessão dos Papas prossegue sem dúvidas nem motivo de hesitação para o historiador.
Martinho IV e Inocêncio XIII
Aníbal Pereira dos Reis cita ainda Martinho IV (1281-85) e Inocêncio XIII (1721-1724) como Papas discutidos ou não admitidos por todos os autores.  Na verdade, nenhuma dúvida existe a respeito da legitimidade do pontificado de um e outro desses Papas, que constam de toda lista de Papas criteriosamente confeccionada.
São estas algumas observações que os quesitos lançados pelo pastor Aníbal Pereira dos Reis tornavam necessárias.  O fato de que a numeração dos Papas do mesmo nome ora inclua os antipapas, ora os exclua, não quer dizer que estão assim legitimados aqueles que foram antipapas; por exemplo, o fato de que Alexandre VI (1492-1503) não repetiu o número V, pois Alexandre V foi antipapa, não significa que Alexandre V tenha sido legítimo ou haja sido reconhecido como tal.  Não é o nome nem o número que faz um Papa; a história, sendo obra da liberdade humana, nem sempre segue as estritas regras da lógica ou do cálculo, mas também nem por isto é incompreensível ou indecifrável.


História da Igreja: Clemente V - Avinhão e Viena




Morto Bonifácio VIII, foi logo eleito seu sucessor Bento XI, (1303-1304), que fora o Cardeal Nicolau Boccassini, Bispo de Óstia. Começou sua vida eclesiástica como frade dominicano, chegando a ser Mestre Geral da Ordem. Conservou-se sempre manso e pacífico e, embora fosse fiel a Bonifácio VIII julgou dever trilhar outras vias. Com efeito; recordando-se de que era o representante daquele "de quem é próprio compadecer-se e perdoar", absolveu o rei Filipe IV e seus cúmplices (exceto Nogaret) de todas as censuras; da mesma forma, os nobres Pedro e Tiago Colonna, que contudo não foram restaurados no Cardinalato. Rejeitou o pedido de adversários de Bonifácio VIII que queriam fosse aquele Papa condenado como intruso e herege num Concílio Ecumênico. Tendo intimado em vão os agressores de Anagni a comparecer diante de um tribunal, excomungou-os. Morreu, porém, em breve após oito meses e poucos dias de pontificado (22/10/1303 a 7/7/1304). A sua morte repentina ocasionou o rumor popular de que tinha sido envenenado. Na verdade, Bento XI deixava a seu sucessor uma difícil herança.
O Conclave subseqüente durou quase onze meses, pois os Cardeais estavam divididos em partido bonifaciano, que desejava um Papa italiano, e partido filipino, favorável a um Papa francês. Finalmente a vitória foi dos franceses, que elegeram o arcebispo de Bordéus, Bertrand de Got, com o nome de Clemente V (1305-14); na luta de Bonifácio com a França, fizera as vezes de intermediário. Foi coroado Papa em Lião (França). Repetidas vezes prometeu aos Cardeais transferir-se para Roma. Não o fez, porém, em parte por pressão de Filipe, em parte porque as facções na Itália agitada faziam-no recear por sua liberdade.
Desde 1309 fixou residência em Avinhão, dando. assim início ao chamado "Exílio de Avinhão", que durou quase setenta anos (1309-1376). Avinhão era uma cidade pequena, de ruas estreitas e sujas, na qual o séquito pontifício só dificilmente conseguia encontrar morada. Era um feudo do reino alem do que estava nas mãos da casa de Anjou de Nápoles. Clemente VI (1342-52) comprou Avinhão em 1348, tornando-a domínio papal, mas não conseguiu subtrai-la à influência francesa. Filipe IV o Belo dava-se por contentíssimo com o fato; o Papa, fraco de ânimo e doentio de corpo, caia cada vez mais sob o domínio do monarca. Não era intenção de Clemente V transferir definitivamente a sede do Papado para a França, mas criou-se uma situação de fato, sustentada por sete Papas consecutivos, todos franceses.
O Exílio de Avinhão foi grandemente pernicioso para a Igreja:
1) os Papas viram-se mais entravados em sua ação do que em Roma; tornaram-se maleáveis instrumentos da política francesa - o que suscitava a suspeita de partidarismo nos italianos e em outros povos, muito diminuindo o prestígio papal. O Pontífice era considerado responsável pelas discórdias crescentes entre as cidades italianas.
2) No Estado Pontifício a confusão aumentou; o poder temporal dos Papas decrescia, pois muitas cidades se declaravam Repúblicas autônomas. Isto acarretava diminuição de rendas papais e exigia novas despesas para debelar os revoltosos. Estas circunstâncias levaram os Papas a levantar novos impostos eclesiásticos e a cobrar taxas por serviços prestados - o que dava lugar a descontentamento entre os prelados.
3) O Exílio de Avinhão foi a preparação imediata do Cisma do Ocidente (1378-1417), pois a Igreja se "galicizou" por espírito nacionalista, faccioso, tornando-se instrumento da ascensão política francesa. Quando os Papas quiseram reagir contra este mal, já não o puderam, pois franceses e não franceses, movidos por nacionalismo, queriam um Pontífice que correspondesse às suas aspirações nacionais e, em caso de necessidade, o criaram. Dal o cisma ou a divisão da cristandade.
Todavia não se pode negar que o Exílio de Avinhão tenha tido seus aspectos positivos: o desenvolvimento da organização da Igreja e o progresso das artes. Estes méritos, porém, não atenuam os pontos negros, pois a Igreja é essencialmente uma instituição religiosa, o Papado é um Serviço pastoral e não um Ministério da Cultura.
O Papa e os Templários
A política de Clemente V foi a de ceder às exigências destemidas de Filipe o Belo. o número de franceses aumentou no Colégio cardinalício (na primeira nomeação foram nove entre dez designados). No caso do Papa Bonifácio cedeu o mais que pôde: aos Colonna Tiago e Pedro restituiu o cardinalato e os demais direitos; revogou a Bula Clericis laicos; mediante o Breve Meruit declarou que a Bula Unam Sanctam não prejudicava Filipe e seu reino, que não eram obrigados a maior obediência a Santa Sé do que antes
Na sua sede de vingança, Filipe o Belo, desde 1307, insistia na instauração de um processo contra o defunto Papa Bonifácio VIII. Esta exigência, além de finalidade vingativa, tinha um objetivo político muito concreto: se se demonstrasse, mesmo depois de morto, que Bonifácio fora intruso, todos os atos do seu pontificado seriam inválidos, inclusive as nomeações de cardeais italianos, antifilipinos, que havia feito. Clemente V, porém, não queria consentir na reivindicação do rei; foi fazendo outras concessões, entre as quais a de um processo contra os Templários.
Os Templários (Milites ou Equites Templi) constituiam uma Ordem de Cavaleiros militantes, sendo a mais antiga de todas. Foi fundada em 1119 por Hugo de Payens e oito cavaleiros franceses, que se uniram numa família religiosa, ligada pelos votos habituais de pobreza, castidade e obediência, além do voto especial de defender com as armas e proteger os peregrinos que se dirigissem a Jerusalém. O seu nome se deve ao fato de que o rei Balduíno II de Jerusalém colocou à disposição dos cavaleiros uma habitação no palácio real, que se achava na esplanada do Templo de Salomão. A Ordem dos Templários foi inicialmente muito pobre, mas em breve atingiu seu apogeu, especialmente depois que S. Bernardo demonstrou grande interesse por ela, tomando parte notável na redação da sua Regra. Os Cavaleiros foram favorecidos pelo Papa Inocêncio II, e altamente beneficiados por doações, que tornaram a Ordem muito rica. o seu hábito era um manto branco sobre o qual estava traçada uma cruz vermelha. Juntamente com os Joanitas ou Cavaleiros Hospitaleiros (porque tinham um hospital em Jerusalém dedicado a S. João Batista), os Templários se dedicaram com suma abnegação coragem a defesa da Terra Santa; mais tarde, porém, foram vítimas de discórdias entre si.
Ora Filipe IV, movido pela cobiça do poder e dos bens dos templários, queria provocar a extinção dos mesmos. Em vista disto, desde 1305 começou a propagar terríveis acusações contra os irmãos: dizia-se que, por ocasião da recepção na Ordem, os cavaleiros deviam cuspir e calcar a cruz, negar a Cristo, adorar um ídolo chamado Bafomet, obrigar-se à sodomia e a outras práticas vergonhosas.
Em 1307, Clemente V, instado por Filipe, prometeu a este fazer um inquérito a respeito dos pretensos crimes dos Templários. O rei, porém, não esperou o procedimento papal, e mandou prender aos 13/10/1307 todos os Templários da França, inclusive o seu grão-mestre Jaime ou Tiago de Molay (cerca de 2000 homens), confiscando todos os seus bens (fora da França ficavam uns 1000 ou 2000 Templários ainda). Filipe exortou outros reis a seguir o seu exemplo, e mandou aplicar a tortura aos irmãos para extorquir deles todas as confissões de interesse do rei. O próprio grão-mestre, alquebrado, e talvez sob a pressão da tortura, exortava por carta os seus súditos a confessar logo. Filipe dava a crer que essas medidas eram tomadas de acordo com o Papa, quando na verdade eram todas de iniciativa e responsabilidade do rei.
A princípio, Clemente V protestou e exigiu a libertação dos encarcerados. Deixou-se, porém, convencer pelas confissões extorquidas e, em fins de 1307, mandou aos outros soberanos que prendessem os Templários e confiscassem os seus bens em favor da Igreja. O próprio Papa em Poitiers (1308) ouviu o depoimento de 72 Templários, que Filipe Ihe mandara. Cada vez mais convencido da culpabilidade da Ordem, ordenou nova perseguição; em 1310 foram de uma só vez queimados como hereges 54 Templários em Paris; outros morriam no cárcere ou sob a tortura.
A decisão última foi confiada a um Concílio Ecumênico, que se reuniu em Viena (França) de outubro 1311 a maio 1312 (15º Concílio Ecumênico). Além da causa dos Templários, o Sínodo devia examinar as acusações contra Bonifácio VIII tratar das necessidades da Terra Santa e de uma reforma da disciplina da Igreja.
A figura de Bonifácio VIII defunto, apesar de todas as concessões feitas por Clemente V, ainda era objeto de rancor do rei. Em 1310 este começou a ouvir o depoimento de testemunhas. Todavia o Concílio de Viena rejeitou as acusações de heresia contra o falecido Papa; o rei, então, por conveniência própria, desistiu da perseguição difamatória. Em troca disto, Clemente, agradecido, o declarou inocente no atentado de Anagni, reconheceu que somente "zelo bom" o movera; o próprio Guilherme de Nogaret foi absolvido a pedido de Filipe. Assim terminava a triste história de Bonifácio VIII, com a vitória absoluta do rei.
Quanto aos Templários, os conciliares queriam que se continuasse o processo pois até então nada se havia encontrado que motivasse a supressão da Ordem. Todavia o Papa Clemente, premido pelo rei presente ao Concílio, houve por bem abolir a Ordem mediante a Bula Vox in excelso de 22/03/1312, "não em sentença judiciária, mas como medida de prudência administrativa baseada nas faculdades da Sé Apostólica". Com outras palavras: o Papa não quis julgar os Templários do ponto de vista ético ou disciplinar; julgou, porém, que a existência dos Templários era um foco de distúrbios no mundo cristão da época. Esta distinção obteve o consentimento da maioria dos conciliares. Os bens dos Templários foram, em parte, atribuídos a outras Ordens Religiosas, em parte caíram nas mãos dos príncipes. Filipe ainda conseguiu do Papa um processo especial contra alguns dignitários da Ordem: uma comissão de eclesiásticos, que eram do seu beneplácito, os condenou á prisão perpétua; o Grão Mestre da Ordem e o Grão-Preceptor da Normandia foram queimados vivos aos 11/03/1314 por terem retratado confissões anteriores e terem declarado a Ordem inocente.
A tragédia dos Templários é mais um testemunho do predomínio do poder régio sobre a Igreja; de modo especial evidencia que a Inquisição (a qual funcionou no caso) se foi tornando mais e mais um instrumento nas mãos do poder político para eliminar todos os adversários dos reis e príncipes (ver capítulos 32 e 33 sobre a Inquisição). Os Templários podiam apresentar suas falhas - o que é humano; mas certamente estas não eram tão graves nem universais quanto diziam os adversários; as confissões extorquidas nada significam. Nos países que não dependiam do rei da França as acusações colhidas contra os Templários foram insignificantes; na Espanha (Aragão, Barcelona) e em Chipre o processo demonstrou claramente a sua inocência. Embora tenha havido historiadores desfavoráveis à dignidade dos Templários, hoje em dia não resta dúvida de que foram vitimas de graves calúnias. Certas sociedades em nossos tempos dizem-se herdeiras dos Templários medievais, com os quais teriam uma vinculação secreta; teriam uma gnose ou conhecimentos esotéricos reservados aos iniciados. Ora estas afirmações são fantasiosas e alheias à verdade.
O Concílio de Viena ainda baixou outras determinações importantes: 1) relativamente a teoria de corpo e alma professada por Pedro João Olivi, chefe dos Franciscanos Espirituais no litígio sobre a pobreza; foi condenada qualquer teoria que admitisse intermediários entre a alma (forma) e o corpo (matéria); 2) mandou que se introduzisse nas Universidades o estudo das línguas hebraica, árabe e caldaica (o que era grande novidade na época); 3) Clemente V promulgou a Bula Exivi de Paradiso em favor dos franciscanos de observância mais rigorosa.
Finalmente, após triste Pontificado, o Papa veio a falecer aos 20/04/1314.
Para se entender a história dos Pontificados seguintes, devemos ainda referir a atuação de Clemente V na Alemanha:
Em 1308 foi eleito rei da Alemanha Henrique de Luxemburgo (1308-13). Este sofreu logo a oposição dos franceses, que queriam colocar sobre o trono alemão o príncipe Carlos de Valois, irmão de Filipe IV o Belo. Em particular, o rei Roberto de Nápoles, sucessor de Carlos II de Anjou, se insurgiu contra Henrique VII, quando este desceu a Roma para ser coroado Imperador por três Cardeais delegados do Papa em 1312. Henrique VII aliou-se a Frederico da Sicília, inimigo da casa de Anjou e da Cúria Papal; Clemente V, porém, favorecia a Roberto e aos franceses contra Henrique VII da Alemanha e Frederico da Sicília; antes que se chegasse a um conflito sério, Henrique VII morreu em 1313, ficando o trono alemão sujeito à disputa dos candidatos. O Papa então nomeou em 1314 Vigário do Império Alemão na Itália Roberto de Nápoles, fazendo uso de uma lei, segundo a qual a regência da Itália, em caso de vacância do trono alemão, tocava ao Papa.