segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Um século de Aron – O combatente da liberdade

Ipojuca Pontes

“Os intelectuais radicais não querem compreender nem transformar o mundo, querem denunciá-lo”.
Raymond Aron.
Raymond Aron nasceu em 14 de março de 1905, em Paris, e é natural que hoje os liberais lembrem-se dele como o grande combatente das liberdades, um dos mais atuantes na França do século passado, país dominado por Sartre, Merleau-Ponty, Lévi-Strauss, entre outros pensadores esquerdistas de peso.
A vida de Aron, que completaria 100 anos se estivesse vivo, foi um combate só. De início, homem de esquerda como Sartre, ao lado de quem estudou na Escola Normal Superior, na Rue d´Ulm (Paris), tornou-se, no seu tempo, para além de ativo professor universitário e jornalista, intérprete privilegiado dos fenômenos políticos e sociais à luz de vastos conhecimentos históricos, econômicos e sociológicos. A descrença em relação ao socialismo e, em especial, ao comunismo, levou-o a polêmicas ferozes com representação expressiva da “intelligentzyia” francesa, que nunca o perdoou pelo fato de, entre o culto à União Soviética de Stálin e a defesa dos Estados Unidos, postar-se ao lado dos americanos, chegando mesmo a articular, na ordem prática das coisas, a marcante Aliança Atlântica - uma barreira contra o expansionismo comunista que no pós-guerra dominava metade da Europa e ameaçava tomar o continente inteiro. Pensando em Aron, o amigo de quem se tornou rival, Sartre escreveu: “Todos os anti-comunistas são cães”.
Mas Aron conhecia o comunismo de sobra e, a despeito de justificativas criadas nos salões da aristocracia esquerdista, não imputava os males do regime totalitário apenas ao stalinismo. Melhor que ninguém, virou pelo avesso a obra de Marx, a quem dedicou livro minucioso, “O Marxismo de Marx” (Editora Arx, 2004) nela descortinando a sintomatologia do universo concentracionário que acompanha o pensamento (totalizador) do pai do “socialismo cientifico”. O próprio Aron confessa, no prefácio do livro, que atravessou 32 anos de sua vida estudando os escritos de Marx, para chegar a uma conclusão sobre o comunismo: “Creio não haver doutrina tão grandiosa no equívoco, e tão equívoca na grandeza. Foi por isso que a ela dediquei tantas horas...
Ao pensador que viveu precisos 78 anos, nunca faltou a energia e a capacidade de expressar a avaliação do mundo que o cercava. Entre milhares de artigos, depoimentos e entrevistas, escreveu livros fundamentais para a compreensão crítica dos fenômenos sociais e políticos. De fato, em obras como “Introdução à Filosofia da História” (Gallimard, 1938), ensaio contundente sobre problemas teóricos do conhecimento histórico; as “Dezoito Lições sobre a sociedade industrial” (Gallimard, 1962), que traça o perfil positivo da sociedade industrial no Ocidente; o percuciente “Paz e Guerra entre as nações”, estudo sobre a raiz dos conflitos bélicos na democracia e nos sistemas totalitários; o instigante “De uma sagrada família a outra” (Gallimard, 1969), coletânea de ensaios sobre os marxismos imaginários e, sobretudo, em “Plaidoyer pour l`Europe decadente” (Robert Laffont, 1977), livro nunca editado no Brasil, mas que faz a lúcida defesa da civilização ocidental - Raymond Aron justifica plenamente o porquê do antagonismo sartreano e a extraordinária dimensão que atingiu na história do pensamento moderno.
No contundente “O Ópio dos Intelectuais” (1955), publicado no Brasil em 1980 pela UnB, escrito antes do degelo do regime socialista, Aron desmonta com precisão de relojoeiro os mitos da esquerda, da revolução e do operariado, desarticulando, com argumentos substanciais, a impostura do que chama “ideocracia” – o despotismo do preconceito ideológico – e, por extensão, a conhecida figura do “ideocrata” – o burocrata possuído por ideologias totalitárias. Neste particular, chega à perfeição traçando o perfil do intelectual que assume o papel de “confidente da providência”, o tipo que se vende como defensor dos dominados e entoa (em nome da “moral histórica” que diz ser portador) loas em torno de um mundo “mais justo e fraterno que virá no futuro” – e para o qual, na prática, nada tece além da pura “festividade”.
O solitário Aron - que repudiou o marxismo existencialista/irracional de Sartre e o “sintomalismo” de Althusser (o homem da “teoria lacunar”, que lia os “silêncios” de Marx) -, a despeito de admitir o contrário, representou muito mais do que mero “espectador engajado” (como chegou a auto-definir-se numa série de entrevistas que fez para a televisão e ensejou livro com o mesmo título de Jean-Louis Missika e Dominique Wolton, publicado pela Nova Fronteira, em 1982). Na realidade, além de bom combatente liberal, ele ajudou a entender como nenhum outro pensador europeu o problemático século 20 – com destaque, em retrospecto, para temas como a França dos anos 30, a segunda grande guerra, a guerra fria, a descolonização, o degelo soviético, a era da “coexistência pacífica”, a guerra do Vietnã, o maio de 68 – aprofundando a reflexão sobre a contradição existente entre liberdade e igualdade – sem jamais deixar de assinalar, sempre com ironia, que o império soviético, ambicionando as duas coisas, excluiu a liberdade sem ao menos “sintonizar” a igualdade. De fato, mais do que testemunha, Aron atuou firmemente no campo da discussão das idéias, na análise da evolução do pensamento contemporâneo e na reflexão dos grandes acontecimentos do seu tempo.
Como arauto da liberdade, o autor de “Histoire et dialetique de la Violence” encontrou na filosofia liberal “o sistema de valores que podia estruturar um modelo de ação”. Para ele, o liberalismo, respeitando o pluralismo das idéias e privilegiando o empirismo na análise e na ação, representa ainda o sistema “menos mau” para orientar o exercício da política. De resto, o pensador de origem judaica considerava que a atividade política não representa obrigatoriamente a luta entre o bem e o mal mas, sim, a escolha entre o “preferível e o detestável”. Pessoalmente, como liberal convicto, procurou mobilizar a crença na força da iniciativa individual, na livre concorrência e na importância da sociedade industrial - esta, como se sabe, permanentemente satanizada pelos fetichistas da “alienação”, a idéia proposta por Marx, exaustivamente explorada pela Escola de Frankfurt.
No seu livro mais cativante, “Memó ;rias” (Nova Fronteira, 1986) , publicado pouco antes de morrer, de leitura obrigatória para quem deseje vislumbrar com objetividade os principais acontecimentos do século XX, Aron confessa a grande influência que recebeu do pensamento alemão, em especial do historicismo de Max Weber, o sociólogo para quem o cientista social deve distinguir com rigor “aquilo que é do que deveria ser”, afirmando, como corolário, que nenhuma compreensão histórica e social está completa se não incluir a dimensão religiosa, política e moral dos agentes humanos.
Neste particular, embora “movido” pelo conceito da neutralidade que Weber considera preponderante para o alcance da objetividade do conhecimento nas ciências políticas e sociais, Aron, discordando do mestre, entendia que a “objetividade” da descrição não é garantida nem pela neutralidade, que considerava impossível, nem mesmo pela verdade dos fatos pois, segundo ele, “pode-se muito bem compor um retrato falso com fatos verdadeiros”.
Os pensadores mais afinados com a ortodoxia do liberalismo econômico encaram como “excentricidade” um certo distanciamento de Aron ao “individualismo metodológico” (adotado, na sua inteireza, por outro liberal convicto, o prêmio Nobel Friedrich von Hayek), que compreende os fatos sociais e suas explicações como estritamente decorrentes da conduta dos indivíduos - em contraposição, por exemplo, ao “holismo” de Karl Popper, com a visão sistêmica dos “conjuntos sociais”, em que a sociedade funciona por si mesma.
Aron não se inquietava com a questão. Ele admitia a linha da ambigüidade como resposta à supremacia das metodologias “holísticas” ou “individualistas”. No caso, essa postura parece explicar-se pelo fato do pensador, antes de se dedicar aos estudos isolados das questões econômicas, ter sido uma mente exercitada na análise da sociologia e da história, o que, no entanto, não excluía a crítica aberta ao planejamento econômico dos estados totalitários, de certo modo preconizada na concepção marxista de que “a natureza real do homem é a totalidade das relações sociais”.
Depois de mais de vinte anos de sua morte, ocorrida em 1983, a vasta e eclética obra de Aron continua a cada dia mais viva e atual. É difícil apontar, hoje, qual seria o seu substituto como interprete (e contendor) liberal sensível e polivalente. Outro importante pensador francês, Jean-François Revel, ensaísta liberal dos mais férteis e autor de obras analíticas do porte de “A Tentação Totalitária” e “Nem Marx nem Cristo”, e ainda o inglês Paul Johnson, historiador dos mais completos e ambiciosos do século, são dois nomes consideráveis para enfrentar os desafios das análises dos fenômenos econômicos, políticos e sociais que se avolumam diante dos nossos olhos. Mas terão eles, isoladamente, a argúcia, a abrangência e a originalidade de Aron?
A resposta pertence ao leitor.

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