terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Lições de Tocqueville

Carlos Gaspar

Público, 29|Julho|2005
O principal teórico da democracia moderna é um nobre francês de velha linhagem, Alexis de Tocqueville, que escreveu dois grandes livros - De la démocratie en Amérique (1835-1840) e L'ancien régime et la révolution (1856), ambos sobre o mesmo tema, a grande transformação que marca o fim das sociedades aristocráticas.
A sua originalidade foi ter identificado o movimento democrático como a mudança decisiva. Na sociologia politica de Tocqueville, a modernidade não se caracteriza essencialmente nem pela indústria, como quer Comte, nem pelo capitalismo e pela luta de classes, como quer Marx, mas pela «igualdade social ou pela igualização das condições». Depois dos desaparecimentos sucessivos da sociedade socialista e da sociedade industrial, a sociedade democrática contemporânea continua a poder ser entendida nos termos em que foi apresentada pela seu inventor : «se, para si, o objectivo do governo não é dar à nação a maior glória e a maior força possivel, mas sim dar a cada um dos individuos que a compõem mais bem-estar e de lhe evitar mais miséria, então igualize as condições e constitua o governo da democracia.»
Alexis de Tocqueville estuda e avalia a mudança politica na América, em França e na Europa continental do seu tempo, para construir um tipo-ideal da sociedade democrática. A viragem histórica é inexorável e irreversivel : o regresso ao antigo regime é uma ilusão e a liberdade não se pode fundar na desigualdade, tem de assentar na realidade democrática da igualdade das condições e ser salvaguardada pelas leis, pelas instituições e pelos costumes.
A comparação entre o modelo anglo-americano e o caso francês atravessa os seus textos. Há três distinções principais. Desde logo, o liberal francês sublinha uma especificidade norte-americana : os colonos tiveram a sorte de não serem obrigados a lutar contra uma aristocracia antes de iniciar a sua revolução constitucional. Por outro lado, é importante separar a sequência inglesa e americana, onde os hábitos da liberdade precedem a paixão pela igualdade e imprimem um carácter liberal às instituições politicas e judiciais, das mudanças continentais, onde o nivelamento e a igualização antecedem as regras da liberdade e a democratização aumenta a vocação despótica do Estado. Enfim, para o aristocrata normando, a revolução francesa é única, pois «as leis religiosas foram abolidas ao mesmo tempo que as leis civis». A pior consequência dessa dupla destruição é a emergência de uma «religião secular» : os revolucionários (sobretudo os intelectuais revolucionários) «não tinham dúvidas de que deviam transformar a sociedade e regenerar a espécie, e esses sentimentos e essas paixões tornaram-se para eles uma nova religião».
A questão religiosa é relevante para Tocqueville também para caracterizar as condições de estabilidade da democracia liberal, que dependem não só das suas origens, das leis e das instituições como dos costumes de uma sociedade bem ordenada : «uma sociedade igualitária que se quer governar democraticamente tem de assentar numa discplina moral criada pela fé religiosa.» A ausência desta é um perigo incomportável : «é o despotismo, e não a liberdade, que pode dispensar a fé.»
Qual é a tendência das sociedades democráticas ? Segundo a regra tocquevilliana, podem ser duas, a democracia liberal e o despotismo democrático. As tendências despóticas estão inscritas na lógica da democracia, partilhada entre os riscos simétricos da centralização e da demagogia - ou as instituições concentram poderes excessivos, ou se subordinam excessivamente à vontade do novo soberano democrático. A tirania da maioria pode ser temperada pelas leis e pelos costumes, mas a destruição dos corpos intermédios e a expansão, sem precedentes, do Estado social democrático apontam para a consolidação do despotismo : «a unidade, a ubiquidade, a omnipotência do poder social, a uniformidade das suas regras, são o traço saliente de todos os sistemas politicos gerados nos nossos dias.» A igualdade produz a concentração dos poderes e a expansão do Estado, e o modo de funcionamento das instituições democráticas parece ir no mesmo sentido : «a maior parte dos partidos acha que o governo actua mal, mas todos pensam que o governo deve agir constantemente e pôr a mão em tudo.»
Tocqueville, liberal e realista, é um pessimista moderado. A tendência para o despotismo democrático é a mais provável, porque a paixão da igualdade é mais forte do que o gosto pela liberdade : os povos democráticos «querem a igualdade na liberdade e, se não a puderem obter, ainda a querem na escravidão.»
Porém, o despotismo democrático será uma tirania suave. A essência da transformação post-aristocrática é a mediocridade : «as grandes riquezas desaparecem, o número das pequenas fortunas aumenta ; já não há prosperidades extraordinárias, nem misérias irremediáveis ; a ambição é um sentimento universal, há poucas ambições vastas». Esse nivelamento deveria atenuar as tensões e os extremos : «se o despotismo democrático se instalasse nas nações democráticas seria mais extenso e mais doce e degradaria os homens sem os atormentar.»
A sociedade democrática contemporânea continua a poder reconhecer-se na descrição melancólica, bem como nos dilemas e nas profecias de Tocqueville. O aristocrata francês era demasiado decente para poder antecipar a explosão totalitária, para lá da sua intuição sobre as religiões seculares, mas, no fim do ciclo terrivel das guerras e das revoluções, prevalecem as suas previsões fundamentais sobre a grande transformação democrática. Todavia, é dificil resistir à tentatação de pensar que a sua realização anuncia o seu fim e nada diz sobre o próximo ciclo : «quando o passado não ilumina o futuro, o espirito avança nas ténebras.»

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