segunda-feira, 15 de novembro de 2010

A Igreja e a escravidão

Côn. José Geraldo Vidigal de Carvalho*

Uma das questões históricas que mais exige amor à Verdade e supõe objetividade, aliada a uma completa isenção, é a que se refere ao problema da escravidão. Além de se colocar os fatos no seu real contexto histórico, cumpre analisar os mais diversos fatores com suas peculiaridades. Se há uma faceta dos atos humanos do passado e de tudo quanto neles influíram sobre a qual não se pode fazer um juízo generalizado é, precisamente, esta. Do contrário, se corre o risco de cometer as mais soezes injustiças por um julgamento que não se coaduna com a Verdade. Ainda agora, o texto que reúne os estudos realizados na Conferência de Puebla traz uma nota preconceituosa: “O problema dos escravos africanos não mereceu, infelizmente, a devida atenção evangelizadora e libertadora da Igreja” (sic). Não se pode julgar o tempo pretérito com a ótica do presente. O historiador imparcial deve se colocar empaticamente na situação em que cada evento ocorreu, analisando todas as coordenadas de uma conjuntura concreta. A História não se dá como se almeja que ela seja, conforme um modelo acabado, perfeito; de acordo com um esquema pré-estabelecido. Ela é dinâmica e Deus que, providencialmente, traçou as linhas mestras, admite a liberdade do homem. Cristo legou os princípios supremos mediante os quais se pode atingir o ideal de uma ordem social humanitária e justa, pela qual nunca deixou a Igreja de renhir. A violência que é uma “dimensão ontológica ser humano” vai, porém, deixando suas marcas, por vezes, terríveis. Manchas que salpicam, ignominiosamente, a trajetória do homem, muitas vezes agindo de uma maneira antinatural. Se cursamos com cuidado científico a História, ocorrências as mais dramáticas se nos antojam por toda a parte. Se todo tipo de escravidão deve ser condenado, não se pode rejeitar, sumariamente, certas formas de dependência que, em face da evolução através dos séculos, ou num determinado momento, significou até um modo de existir muito mais benéfico do que o da total emancipação. Assim, por exemplo, na Idade Média, o “homem livre”, era justamente o que hoje se chamaria “marginal”, pois a organização hierarquizada da época exigia que compunham a trama complexa da estratificação medieval, cujos estamentos supunham a renúncia a certos direitos em troca de outros, então, mais vantajosos. Foge ao objetivo deste texto relatar como, através dos anos e em todas as partes, a Igreja foi a propugnadora incansável da promoção humana, numa peleja sem tréguas contra qualquer tipo de tirania. Entretanto, eis alguns pontos importantes: desde a mais remota antigüidade a escravidão se originou do domínio dos mais fortes sobre os mais fracos, sendo a guerra a principal ocasião para a sujeição. Quando Cristo lançou seu ensinamento, havia uma tradição inglória4 a ser reformulada, mas se instalou um movimento irreversível de conscientização em prol da liberdade sem peias. Isto, porém, dentro da realidade da terrível batalha entre o bem e o mal, na qual, aparentemente, este parece cantar mais vitórias. Mudar pontos de vistas, eis a tarefa hercúlea da Igreja e ela não falhou. Uma de suas glórias é ter tido no trono de Pedro, já no século III, Calixto I, o qual fora antes um escravo, libertado exatamente pela influência dentro do Império romano pelos seguidores do Evangelho. A noção exata de pessoa humana, colocação filosófica decisiva para obstaculizar qualquer tipo de dominação e pedra de toque da igualdade de direitos, surgiu da mensagem anunciada pelo Filho de Deus. Eis porque a Igreja, pela essência mesma de seu ensinamento, sempre esteve a lutar pelo acatamento da dignidade humana. Deve-se notar que outras forças trabalham dentro da História e, assim, na Idade Média, os maometanos exerceram influxo sobre a instituições econômicas. Nem todos os cristãos foram, são e serão modelos. Grande é a fragilidade do homem. Daí se explica, como no raiar da Idade Moderna, com as novas circunstâncias de exploração de terras recém-descobertas, o regime escravocrata recrudesceu. Os papas não se omitiram nunca. Inocêncio IV no século XIII, João XXII no século XIV, Martinho V no século XV já haviam veementemente condenado os que mercadejavam seres humanos na Europa e depois deles nunca os Soberanos Pontífices deixaram de condenar qualquer tipo de escravidão. * Professor no Seminário de Mariana de 1067 a 2008 – vidigal@homenet.com.br

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