sábado, 30 de outubro de 2010

V Conferência de Aparecida

Publicado por Jblibanio em 22/9/2009 (265 leituras)
CONFERÊNCIA DE APARECIDA
J. B. Libanio

Introdução

A 5ª Conferência Geral do Episcopado se realizou em Aparecida, Brasil, de 13 a 31 de maio deste ano. Tipo de reunião original do Continente. Diferente de Concílios ou Sínodos regionais, porque versa sobre pastoral. Diverge do Sínodo Continental, criado por João Paulo II, porque os bispos assumem as decisões como próprias e não as confiam ao Papa.

Conferências anteriores

Houve quatro Conferências anteriores à de Aparecida. Uma no Rio, em 1955, sob Pio XII, que tratou do tema central da escassez do clero e das forças adversas ao catolicismo: laicismo, superstição, espiritismo, propaganda protestante e maçonaria. Incentivou-se o recurso aos novos meios de divulgação da mensagem: rádio e imprensa .
A segunda foi em Medellín, em 1968, com a intenção de aplicar o Vaticano II na América Latina. Chegou a decisões corajosas: a opção pelos pobres, a libertação das estruturas de opressão, uma teologia e pastoral a partir dos pobres e o uso do método ver-julgar-agir, uma educação conscientizadora e libertadora, uma Igreja pobre, despojada e profética até ao martírio, a valorização da religiosidade popular, criação de comunidades eclesiais de base, uma leitura popular da Escritura, uma Vida religiosa inserida no meio popular. A Igreja rompe a ancestral aliança com a oligarquia e aproxima-se das camadas populares e pobres.
A Conferência de Puebla (1979) tentou frear o ímpeto de Medellín. Mesclou certo conservadorismo teológico – a eclesiologia e cristologia do documento de Puebla o refletem claramente – com opções que fazem ecoar Medellín: opção preferencial pelos pobres, defesa da dignidade da pessoa diante das violações presentes nos regimes militares, ação junto aos construtores da sociedade, Igreja particular com paroquialização das CEBs.
Em clima neoconservador, Santo Domingo (1992) significou o distanciamento maior de Medellín. Abandonou o método ver-julgar-agir, deslocou o eixo crítico-social para o cultural, diminuiu o impacto da opção pelos pobres e pela libertação. Defendeu nova evangelização da cultura descristianizada para criar uma cultura cristã em todo o Continente, recorrendo aos modernos meios de comunicação social. Valorizou as culturas afroameríndias e a religiosidade popular, o protagonismo do leigo e fez aceno à inclusão da temática da solidariedade latino-americana e mundial.

Peripécia da convocação da Conferência de Aparecida

A Conferência de Santo Domingo parecia ter sido a última, depois que João Paulo II convocara o Sínodo das Américas e publicara a Exortação Apostólica Pós-Sinodal Ecclesia in América. Essa nova estrutura sinodal substituiria com vantagem a Conferência, pois abarcava as três Américas e se realizava em Roma com a presença do Papa e dos dicastérios, sem perigo de tensões.
Inteligentes diligências do Presidente do CELAM, a vontade das Conferências episcopais do Continente e a ocasião do 50º aniversário da fundação do CELAM conseguiram mostrar a João Paulo II a importância de convocar nova Conferência. Ele programou-a para ser em Roma em fevereiro de 2007. Com sua morte, Bento XVI reconfirmou-a, já não mais para Roma, e sim para Aparecida, Brasil. O lugar foi surpresa porque se cogitara fazê-la no Equador, no Chile ou na Argentina. O Papa não deu razões. Surgiram especulações. Terá pesado o fato de Aparecida ser Santuário Mariano de renome mundial e de a Igreja do Brasil ter peso pelo tamanho e significação. Bento XVI prometera fazer a abertura. A figura da Assembléia foi bem variada: cardeais da Cúria, bispos do Continente, convidados de outros países, observadores de outras confissões, assessores, representantes dos novos movimentos eclesiais, etc.

Antecedentes da Conferência

O processo de preparação começou com a escolha do tema: “Discípulos e missionários de Jesus Cristo para que nele nossos povos tenham vida” – “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6). Em seguida, o CELAM editou o Documento de Participação em setembro de 2005 como convite à discussão. Vieram as contribuições que perfizeram 2.400 páginas. E elaborou-se um Documento de Síntese de todo o material.
Antecedeu a Conferência a visita de Bento XVI ao Brasil durante a qual fez vários discursos que terão influência no texto do Documento Final. Tudo começou na entrevista dada durante o vôo de Roma a São Paulo, onde não poupou críticas à teologia da libertação por ela ter-se associado a fáceis milenarismos, prometedores de revoluções e rápidas mudanças. Achacou-lhe generalismos, lugares-comuns e mistura errada entre Igreja e política, e fé e política. Criou-se então a expectativa de que ele a condenaria nos discursos programáticos. Mas não o fez, nem o Documento Final.
Abordou a temática social do respeito pela vida e pela pessoa humana, com referência especial aos pobres e desamparados. Pediu a liberdade do ensino religioso nas Escolas públicas e a garantia por parte do Estado de subsídios às obras educativas e de assistência social da Igreja. Insistiu na formação de cidadãos nos valores morais, no fortalecimento da família, no cuidado especial para com os povos indígenas.
Aos jovens, apresentou a Jesus como o único capaz de fazê-los felizes e garantir-lhes a vida eterna. Exortou-os a não desperdiçarem a juventude e a assumirem a grande missão de evangelizar os seus companheiros, que andam errantes, como ovelhas sem pastor. “Sede apóstolos dos jovens!”
Animou os fiéis, que o acolhiam com afeto, à prática dos sacramentos da reconciliação e da Eucaristia, à caridade com os pobres e enfermos, à devoção a Maria, à vida pura e santa.
Em tom diferente, grave e de co-responsabilidade pastoral, dirigiu-se aos bispos da CNBB, reunidos na Catedral da Sé de São Paulo, minucioso e preceptivo discurso num tríplice olhar. Para dentro da Igreja, exortou-os a incansável zelo pela ortodoxia, como Mestres de fé e de doutrina numa responsabilidade condividida com o clero e leigos. Ao olhar a cultura moderna, insistiu no papel da Igreja de propiciar aos fiéis o encontro com Cristo, de reafirmar os valores morais da família e do matrimônio. Ao voltar-se para a sociedade política, depois de reconhecer o déficit histórico de desenvolvimento social, a indigência, a desigualdade de renda, as injustiças, impulsionou a Igreja, atenta aos valores transcendentes, a contribuir para a solução dos problemas sociais e políticos com propostas novas e cheias de espírito cristão. Compete-lhe formar os políticos, a classe empresarial na veracidade e honestidade, recorrendo à Doutrina Social da Igreja. Parte da imprensa interpretou esse discurso como repreensão do Papa aos bispos do Brasil pelo êxodo dos católicos para as igrejas pentecostais e neopentecostais.
Proferiu o discurso mais importante na inauguração da V Conferência. Deixou a impressão geral de sereno, positivo, sem, contudo, trazer nenhuma novidade. Retomou as idéias abordadas em documentos e discursos anteriores. Não tratou de questões polêmicas nem fez condenações. Discurso doutrinal, universal e ideal, que parte da transcendência para ser depois aplicado pelos bispos à realidade da América Latina.

Desenrolar da V Conferência

Tudo começou com a Celebração Eucarística presidida pelo Papa. Símbolo expressivo de colegialidade, que se praticou dentro dos limites da atual estrutura hierárquica da Igreja católica.
Logo de início, os bispos tomaram decisões procedurais de importância. Na continuidade com as outras Conferências resolveram elaborar dois textos. Um menor: a Mensagem Final, cuja redação foi entregue a pequeno grupo. E o Documento Final a ser redigido com a colaboração de todos, divididos, primeiro em grupos aleatórios, e depois em comissões temáticas e subtemáticas. Este foi o trabalho principal da Conferência.
O primeiro passo consistiu no detalhamento do tema central escolhido em torno de dois eixos principais: a realidade do Continente e a vocação de discípulo missionário do Evangelho da vida para os povos latino-americanos e caribenhos.
A Mensagem apresentou um resumo das intuições centrais do Documento Final, terminando com belíssimo perfil da Igreja: viva, fiel, crível, alegre, animada no zelo missionário, em espírito de comunhão no desejo esperança de que este Continente da esperança seja também o Continente do amor, da vida e da paz!

Documento Final

Estruturou-se em torno a três eixos, seguindo o método ver-julgar-agir. Num primeiro, os bispos olharam na perspectiva da fé em Jesus Cristo para realidade sociocultural, econômica, política e eclesial. Salientaram, no plano cultural, a globalização na face positiva de congraçamento dos povos e negativa do desfazimento da religiosidade popular e dos valores. Ela repercute no mundo econômico com a absolutização do mercado e do lucro, ampliando a pobreza. No campo político, o texto oscila entre o elogio do processo de democratização do Continente e o temor de neopopulismo autoritário. Finalmente, faz um balanço das luzes e sombras da Igreja. Junto com o lado luminoso da pujança da vida interna e do serviço que a Igreja presta, há deficiências na evangelização e na clareza doutrinal da fé dos católicos.
No juízo teológico, insistiu-se no encontro pessoal do católico com Jesus, na consciência do chamado e do envio para ser missionário do Evangelho da vida. E a Igreja é aquela que oferece os centros de comunhão para o fiel viver a fé e um itinerário formativo inspirado no Caminho Neocatecumenal.
A terceira parte trata da missão da Igreja e do cristão de anunciar a nossos povos a vida nova em Cristo. Jesus se pusera a serviço da vida e se oferecera como vida para os que crêem nele e o seguem. Vida em todas as dimensões e para todos. A exclusão contradiz o projeto de Deus. A missão de comunicá-la implica conversão pessoal, renovação missionária e abertura para a evangelização ad gentes.
A Conclusão do Documento lança “uma grande Missão Continental” cujo projeto e desejo o texto mencionou em vários lugares. As suas linhas já foram discutidas na Conferência, mas ela foi considerada concretamente na Assembléia Plenária do CELAM em Havana, Cuba.

Breve e provisório Balanço

Terminada a Conferência inicia o momento da recepção. Eis algumas primeiras observações. Foi positivo o simples fato da realização da Conferência. Exprime, em momento de surto neoconservador e centralizador, gesto colegial e de autonomia do Episcopado latino-americano. No entanto, um olhar crítico percebe que a colegialidade foi violentada sob diversos aspectos: a convocação, a escolha do tema, a nomeação da presidência, a aprovação dos eleitos, a inclusão de membros da Cúria Romana, o discurso norteador do Papa e aprovação final do texto. Tudo veio de Roma. Certa indignação brotou na Igreja, ao se verificar que a versão votada em quase unanimidade pelos bispos sofreu numerosas mudanças e algumas significativas, especialmente a que se refere às comunidades eclesiais de base, no texto aprovado por Roma. Melancólico final de momento colegial por ato arbitrário e autoritário.
A presença dos novos movimentos eclesiais e das novas comunidades produziu efeitos negativos. Fez esmaecer a relevância das comunidades eclesiais de base, colocando no mesmo denominador comum tanto as CEBs como as novas comunidades.
A preocupação com o êxodo dos católicos e com a perda de relevância da Igreja católica na sociedade latino-americana não levou a uma autocrítica da própria Igreja nos seus aspectos estruturais: ministério, clericalismo crescente, acento sobre a ortodoxia doutrinal e moral. As causas se atribuem aos impactos da globalização, à falta de profundidade da fé da maioria dos católicos. Com isso, a esperança de mudanças maiores na organização da Igreja parece descartada. Em seu lugar, faz-se apelo voluntarista ao fiel para que se conscientize da grandeza da vocação cristã e da tríplice conseqüência: fazer-se discípulo de Cristo, viver tal realidade na Igreja e ser impelido para tornar-se missionário do Evangelho da vida.
Aparecida conserva várias aberturas da tradição de Medellín, matizando-as. Embora fale de libertação, omite, estranhamente, qualquer alusão à teologia da libertação. Em Medellín, a Igreja queria testemunhar vida simples e despojada, aqui a “alegria” do Encontro com Jesus. Será já algum toque pós-moderno, carismático?
O texto lança sombra de suspeita sobre a Vida Consagrada, que é criticada por “não poucas recaídas secularizantes”. Medellín deslanchara o movimento de inserção da Vida Consagrada no meio dos pobres, apoiada e incentivada nas décadas seguintes pelas Conferências dos Religiosos. Em Aparecida, insiste-se na comunhão com o bispo e numa pobreza como liberdade diante do mercado e das riquezas. A inserção no meios dos pobres desaparece.
No campo educacional, preocupou-se com a identidade católica e a partir dela se entendem a dimensão social e a formação integral do educando. O ideário da libertação acentuava, na perspectiva de Paulo Freire, a educação conscientizadora em vista da transformação da realidade.
O documento reteve a articulação entre evangelização e promoção, evitou a temática da sexualidade e o grave problema do ministério presbiteral, reservado a homens célibes, embora a CNBB tivesse feito sugestões ousadas na linha da reintegração ao ministério de sacerdotes reduzidos ao estado laical. Retomou e avançou um pouco a questão da mulher, ao garantir-lhe efetiva presença nos ministérios confiados aos leigos e em instâncias de planificação e decisão pastorais.
Tocou a questão do ecumenismo e do diálogo inter-religioso, mas sem avanços nem criatividade. Repete afirmações do Concílio e dos dois últimos papas. O tom do documento está marcado pela preocupação de defender a identidade católica. Essa quase obsessão o fecha ao diálogo com outras igrejas e religiões.
Conservou-se a expressão “opção preferencial pelos pobres”, revelando que ela se tornara conquista definitiva da nossa vida eclesial. Faltaram pistas concretas para a pastoral. Com efeito, o termo libertação que aparece algumas vezes vem enfraquecido por adjetivação genérica. Falta-lhe incidência sobre a realidade social. Teme-se por desvios ideológicos na direção socialista ou marxista. Medos hoje praticamente descartados.

Conclusão

A fase dos bispos terminou. As Igrejas particulares receberam os talentos, na linguagem da parábola do evangelho. O dilema é: enterrá-los ou fazer frutificá-los! E oxalá se multipliquem abundantemente para o bem dos povos do Continente.

Artigo publicado em relations – junho de 2007

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