terça-feira, 12 de outubro de 2010

A Pontifícia Academia das Ciências Os papas e o realismo dos cientistas

VATICANO
“Sempre houve uma entidade científica dentro da Santa Sé, desde os tempos de Galileu. Mas os papas do século XX tiveram um interesse todo particular pelos resultados das ciências experimentais, pois eram um antídoto ao idealismo da filosofia”. Entrevista com Marcelo Sánchez Sorondo, chanceler da Pontifícia Academia das Ciências

Entrevista com Marcelo Sánchez Sorondo de Roberto Rotondo



“Os cientistas geralmente são realistas. E é esse realismo que interessa à Igreja e a seus papas”. É assim que dom Marcelo Sánchez Sorondo, bispo, professor de História da Filosofia, resume o motivo pelo qual há mais de quatrocentos anos existe no Vaticano a Pontifícia Academia das Ciências, uma instituição independente em suas pesquisas, mas mantida sob a proteção do papa reinante, com a finalidade de promover o progresso das ciências matemáticas, físicas e naturais e o estudo de seus problemas epistemológicos. Os cientistas que fazem parte da Academia sempre foram escolhidos sem distinções de raça ou religião, só por méritos científicos e morais. Hoje, a Academia, que tem sede na Casina Pio IV, nos Jardins Vaticanos, reúne oitenta cientistas de fama mundial, entre os quais vinte prêmios Nobel, sob a presidência do professor Nicola Cabibbo. Dom Sánchez Sorondo, sessenta e seis anos, é chanceler da Pontifícia Academia das Ciências há dez anos, como também da Pontifícia Academia das Ciências Sociais. Nós o encontramos por ocasião de dois aniversários que serão celebrados no mundo inteiro: o quarto centenário das primeiras observações de Galileu Galilei ao telescópio e os cento e cinquenta anos da publicação da Origem das espécies, de Charles Darwin.



Dom Marcelo, passaram-se mais de quatro séculos desde a fundação da Academia dos Linces, em 1603 (a partir da qual, em 1936, se originou a Pontifícia Academia das Ciências), sob o patrocínio do papa Clemente VIII. Desde então, os papas sempre quiseram que houvesse uma entidade cientificamente reconhecida e independente dentro da Santa Sé. Por quê?
MARCELO SÁNCHEZ SORONDO: Respondo citando uma manifestação de louvor feita em A gaia ciência por Nietzsche, um autor que certamente não pode ser suspeito de adulação perante a Igreja. Escreve ele: “Os papas entenderam que, para compreender o homem, existe também a razão, não apenas a razão filosófica, mas ainda a razão científica”. E Bento XVI, como fizeram seus predecessores, frisou mais de uma vez: a natureza é o primeiro livro de Deus escrito aos homens.
Mas os cientistas às vezes sentem a Igreja como um obstáculo ao progresso científico.
SÁNCHEZ SORONDO: O verdadeiro conflito não é entre ciência e fé católica. O verdadeiro problema da época moderna, de Descartes em diante, é entre uma visão idealista, que toma origem na filosofia, e a visão científica. Para o cientista, as teses de Kant, por exemplo, para quem o espaço e o tempo pertencem a priori à subjetividade, são privadas de significado. Para o cientista, a realidade do espaço e do tempo é um dado. Por isso, os papas, sobretudo os papas do início do século passado – penso em Pio XI e Pio XII –, estavam muito interessados nas ciências experimentais: entendiam que a ciência estava trazendo de volta um novo realismo, ao investigar a natureza, que se contrapunha ao idealismo das filosofias subjetivistas. É claro que a Igreja sempre buscou integrar, moderar a posição da ciência, que às vezes é tentada a crer que a única verdade é a científica.
De que modo a Igreja atuou como moderadora da posição científica?
SÁNCHEZ SORONDO: Substancialmente alertando para o fato de que os resultados da ciência não são toda a verdade. Há a interpretação filosófica e há, ainda, a fé, para quem a recebeu como dom, que são uma coisa diferente. Trata-se de harmonizar e de não fazer confusão. Em geral, os homens de ciência compreendem essa diferença de níveis. Se, por exemplo, dizemos a um cientista que a primeira célula fecundada é um ser humano em potencial que se está desenvolvendo, o cientista, de seu ponto de vista, dirá que “o ser em potencial” é um conceito filosófico que experimentalmente não lhe diz nada. No entanto, sabe que indica algo real. O mesmo vale quando enfrentamos o problema da criação, que não é apenas o problema da evolução, mas também o do início do ser. Os cientistas são bastante abertos a esses temas, mesmo reconhecendo que não fazem parte de sua pesquisa. E hoje o papa Bento XVI pede ao mundo científico apenas que não restrinja os espaços da razão.
Mas o cientista não reconhece um valor de ciência à teologia e à filosofia...
SÁNCHEZ SORONDO: Se é por isso, nem Aristóteles chama propriamente ciência à filosofia e à teologia. Mas a genialidade dos papas foi justamente manter os cientistas próximos de si sem subordiná-los a uma visão teológica ou filosófica. Ninguém na história da Academia jamais tentou impor alguma coisa aos cientistas que dela participam.
Padre José Funes, diretor do Observatório Astronômico Vaticano, num artigo publicado no L’Osservatore Romano de novembro passado, intitulado “Obrigado, Galileu”, observava: “Não teria havido Galileu sem a Igreja Católica, e talvez não tivesse havido um Observatório Astronômico Vaticano sem Galileu”...
SÁNCHEZ SORONDO: É uma coisa evidente. E o fato de que muitos cientistas de fama adiram e trabalhem com a nossa Academia o confirma: a ciência enquanto tal nasceu aqui, nasceu na Itália. Nasceu com Galileu, num clima e num ambiente cristão.
A Igreja acertou todas as suas contas com o caso Galileu ou neste centenário há ainda algo do qual deve pedir desculpas?
SÁNCHEZ SORONDO: Bento XVI já citou Galileu várias vezes, elogiando-o. A última vez foi durante a Epifania, num discurso muito bonito em que lembrou que os Magos também eram astrônomos. Todos os papas sempre consideraram Galileu um gênio: aqui fora há uma placa, instalada por Pio XII, que lembra que Galileu foi um líder da Academia. No fundo, todos sabem que o próprio papa Urbano VIII Barberini, sob o qual se desenrolou o processo contra Galileu, não assinou a condenação do cientista.

Mas o processo existiu...
SÁNCHEZ SORONDO: Eu acredito que, sem Lutero, não teria havido o conflito entre a ciência e Roma. Explico-me: a Igreja Católica estava tão preocupada com os protestantes – que a acusavam de seguir mais a razão que a fé, que a acusavam de materialismo, de pôr em segunda ordem o que diz a Bíblia –, que acabou por assumir uma desconfiança que não lhe era própria perante a ciência. As consequências dessa ruptura dentro da Igreja foram terríveis, também pelo que concernia à relação entre Igreja e ciência. Por último, com todo o respeito, Bellarmino não era Santo Tomás de Aquino; do contrário, talvez, a questão tivesse tido outro rumo.
O ano de 2009 será também o ano de Darwin. Vale para ele o mesmo que o senhor disse em relação a Galileu?
SÁNCHEZ SORONDO: Se distinguirmos o que é ciência do que é ideologia, não haverá nem polêmicas nem mea culpa. Além do mais, mesmo o pai do evolucionismo acreditava em Deus.
Quais foram os momentos mais altos na atividade da Academia, desde que Pio XI a fundou, em 1936?
SÁNCHEZ SORONDO: Creio que o período mais fecundo tenha sido aquele em que Max Planck, pai da física quântica, foi o líder da Academia. As mensagens de Pio XII contra a bomba atômica, por exemplo, foram inspiradas por Max Planck. E durante a guerra fria, por vontade de Pio XII, os estudos e os documentos da Academia sobre as nefastas consequências de uma guerra atômica foram apresentados aos poderosos da terra. Essa dedicação à paz, na realidade, é um empenho constante da Academia. Mas da física teórica vamos, num instante, para a medicina: hoje nos interrogamos sobre quando podemos dizer que uma pessoa está morta e se a morte coincide com a morte cerebral ou não. Eu gostaria de lembrar que durante o pontificado de Pio XII essa pesquisa teve um fortíssimo impulso. E em seus discursos aos médicos, ainda hoje extremamente atuais, Pio XII frisa que são os médicos que devem pesquisar e dizer qual é o sinal da morte.
Mas como um cientista católico pode crer em “Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra” e depois pensar que o universo e sua evolução sejam fruto do acaso, de um cálculo quântico?
SÁNCHEZ SORONDO: Planck, ao longo de toda a sua vida, demonstrou que é possível crer num Deus criador e investigar a natureza, pois são âmbitos diversos. Aliás, a física contemporânea é muito mais aberta que a física de Aristóteles e Platão ou a física medieval. Pois, para os antigos, o mundo, o tempo, o movimento, eram eternos. Tomás de Aquino afirma que nós sabemos por fé que o tempo teve um início. Isso é muito mais conciliável com uma teoria como a do Big Bang, que é um início físico, certamente não metafísico, que com a concepção do universo que tinha a filosofia antiga. O fato de concordarmos em que houve um início nos liga à física moderna.
E a evolução?
SÁNCHEZ SORONDO: Se a criação é o fato em que Deus participa o ser, nesse ser está concentrado também o devir. Deus dá o ser e, dando o ser, dá o devir. O único ponto delicado é a alma humana, pois aí é preciso, segundo a Igreja, de uma nova intervenção de Deus em todo ser humano. Portanto, tanto melhor se os cientistas nos mostrarem como evoluiu o universo. Nós insistimos apenas em que o início é de Deus, e que há uma nova intervenção de Deus quando se trata do ser humano. Pelo que diz respeito ao acaso: já os antigos falavam dele, e a casualidade põe os racionalistas em crise, mas não a nós.
Tudo parece conciliável, mas o próprio presidente da Academia, o professor Cabibbo, afirma que a Igreja se sente embaraçada diante de cada nova descoberta da ciência.
SÁNCHEZ SORONDO: Não vejo esse embaraço, nem por parte dos papas nem dos eclesiásticos que trabalham ou sabem se confrontar com os cientistas, pois os dados da ciência são parte da verdade. O problema é que às vezes os cientistas não se dão conta de que algumas afirmações suas não são propriamente científicas, mas dizem respeito mais à ideologia, à filosofia. Por exemplo, durante um recente congresso em Veneza, o astrofísico Stephen Hawking, ateu, mas que faz parte de nossa Academia, disse que não era possível demonstrar a existência de Deus. Então eu lhe perguntei: “Professor, o senhor diz isso como cientista ou com base em sua experiência de vida?” Ele teve de reconhecer que sua afirmação não tinha nada a ver com a ciência, pois esta não pode dar um juízo definitivo sobre uma realidade que não está diretamente na natureza. Se não fazemos todas as distinções caso por caso, há em geral uma postura de medo diante da ciência. Por isso, na Academia procuramos também esclarecer o que diz respeito aos diversos âmbitos, harmonizá-los. E enfrentamos e estudamos sem embaraço ou censuras todos os problemas mais complicados: o da evolução, mas também os problemas criados pelas descobertas sobre o cérebro humano nos últimos cinquenta anos, ou o problema das células estaminais.
Bento XVI com o astrofísico Stephen Hawking, por ocasião da audiência aos participantes da plenária da Pontifícia Academia das Ciências, em 31 de outubro de 2008, na Sala Clementina [© Associated Press/LaPresse]

A que tema será dedicado o próximo congresso?
SÁNCHEZ SORONDO: Ao transgenismo na alimentação, e será realizado no segundo trimestre. É a quarta vez que a Academia se reúne para enfrentar esse problema. Há anos, nossos cientistas afirmam que não há nenhuma contraindicação no uso dos alimentos transgênicos, mas agora a questão é tornar aplicável o que estudamos.
O tema dos congressos é decidido autonomamente?
SÁNCHEZ SORONDO: É decidido pelo Conselho Diretor em cima da proposta da Assembleia. Algumas vezes é sugerido excepcionalmente pelo Papa.
Ajuda o fato de o próprio Bento XVI também ter sido um acadêmico?
SÁNCHEZ SORONDO: Ajuda muito. O papa Ratzinger é muito solícito com a Academia e acompanha suas atividades. É um grande teólogo, e o encontro que houve em outubro com os cientistas durante o congresso sobre a evolução do universo foi particularmente significativo.
Há dez anos o senhor é chanceler da Academia. Como se sente um filósofo trabalhando com os cientistas?
SÁNCHEZ SORONDO: Bem. Eles geralmente querem compartilhar as descobertas que fazem. É uma categoria com a qual é mais fácil trabalhar, se comparada à dos filósofos, a que pertenço: são mais abertos, mais comunicativos, menos egocêntricos do que nós. Sobretudo, são mais realistas.

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