sábado, 30 de outubro de 2010

A encíclica e as sementes do pós-capitalismo





A principal consultora de Bento XVI para a encíclica social que irá ser publicada nesta terça-feira, 07 de julho, foi a crise econômico-financeira. Em setembro de 2008, no dia depois do desastre do Lehman Brothers, na reunião do grupo de redação encarregado pelas ações preliminares da encíclica (da qual o jornal Il Foglio antecipou dois parágrafos), era claro que os últimos defensores da "teologia do capitalismo" haviam fugido dos fatos.

A reportagem é de Giancarlo Zizola, publicada no jornal Il Sole 24 Ore, 05-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

De repente, o campo se tornou livre para aquilo que se candidata a ser o primeiro grande documento pós-capitalista do magistério social da Igreja: pós-capitalista no sentido de que assume, pela primeira vez com precisão científica, a não equivalência entre economia de mercado e sistema capitalista, reconhece alguns pontos ainda válidos dessa forma particular de mercado, mas não a considera exaustiva nem a canoniza: se a economia de mercado é o "gênero", o capitalismo deve ser considerado só uma "espécie" que se felicita por ser sua superação. A distinção, que não era totalmente clara na "Centesimus annus" publicada por Wojtyla no dia seguinte à queda do Muro, assume, no texto de Bento XVI, contornos menos equívocos.

É o nó de um processo de "historicização", de alguma forma surpreendente, escrito pela pena de um papa-teólogo. Alguns temiam que o Papa Ratzinger cedesse a uma "teologização" da doutrina social, aumentando a pretensão de uma autossuficiência da ordem da Graça com relação à ordem profana da natureza (também da economia), das suas leis e das suas autonomias: como se só na constelação de princípios eternos fosse reconhecível um sucesso salvífico da história, também na ordem mundana.

Porém, a sua alma agostiniana, ao lado da paixão juvenil por São Boaventura de Bagnoregio (tema da sua tese de doutorado) fez, por fim, prevalecer o seu realismo, bem lembrado de que a primeira construção de uma economia de mercado se deve aos seguidores de São Francisco de Assis: além de Boaventura, Antonino de Florença, que o laicíssimo Schumpeter definia como "o maior economista de todos os tempos antes de Adam Smith".

A opção de Ratzinger foi clara desde a escolha do título: diante da alternativa, que o grupo redacional não soube responder, entre "Veritas in caritate" ou "Caritas in veritate", o Papa escolheu decididamente este último, convencido de que a busca da verdade, se não for dirigida ao primado do bem comum, terminaria no integralismo ou também no justicialismo. A sua crítica à pretensão da autonomia moderna da ética tem facilidade em argumentar apologeticamente sobre a crise econômica para denunciar os efeitos destrutivos do abuso do instrumento econômico para meros objetivos de maximização do lucro individual.

O texto considera a crise como uma oportunidade providencial para uma recuperação de formas civis do econômico, que integrem, de modo criativo, princípios fundamentais não mais ultrapassáveis nem acessórios.

A análise do Papa agride abertamente a distorção do sistema ainda vigente e da sua ortodoxia liberalista: "Deve ser considerada errada a visão daqueles que pensam que a economia de mercado necessita estruturalmente de uma cota de pobreza e de subdesenvolvimento para poder funcionar melhor. É interesse do mercado promover a emancipação". Segundo a encíclica, a justiça distributiva deve ser integrada no próprio processo de produção da riqueza.

Nessa perspectiva, os trabalhadores de uma economia pré-capitalista são evocados como uma possível prefiguração utópica de uma economia global que quer se fazer sustentável. A utopia econômica de Ratzinger (em que parece reverberar o sonho de Joaquim de Fiore [1]) se dirige a assumir o princípio da gratuidade, o gesto do dom não mais como forma periférica, terapêutica, religiosa ou justaposta para compensar a falência do sistema econômico.

Enfim, é notável que, ao propor algumas inspirações para a governança global da ordem internacional, a encíclica descarte resolutamente a hipótese de forma de super-Estado ou equivalentes e se torne a porta-bandeira de uma visão poliárquica, isto é, de uma pluralidade de centros de poder, segundo o critério da subsidiariedade.

Ratzinger recupera do Concílio Vaticano II a ênfase no princípio (bíblico e patrístico) da destinação universal dos bens da Terra. Frustrando as pressões de círculos conservadores vaticanos para um documento social que determinasse uma descontinuidade com relação à encíclica de Paulo VI "Populorum progressio" (1967), Bento XVI quis unir-se organicamente àquele texto, ao qual dedica todo o primeiro capítulo da encíclica, reconhecendo seu caráter profético.

O Papa deixa à criatividade social, também dos católicos (mas não só), a busca por estruturas novas a serem criadas à altura das exigências de um mundo global, desde uma segunda Assembleia das Nações Unidas a um Conselho de Segurança econômico e social (com poderes de vigilância sobre os mercados das matérias-primas alimentares) a uma Organização Mundial das Migrações. Mas é claro que a sua encíclica encoraja essas e outras invenções institucionais de governança como instrumentos eficazes para traduzir a "caridade" em decisões políticas reais em benefício da família humana.

Notas:

1. Joaquim de Fiore
(1132-1202), também conhecido por Gioacchino da Fiore, foi um abade cisterciense e filósofo místico, defensor do milenarismo e do advento da idade do Espírito Santo

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