sábado, 28 de agosto de 2010

A Revolução Francesa e a Igreja

A Revolução Francesa e a Igreja
A- A+
Publicado por Marcia em 05/5/2008 (4820 leituras)
A Revolução Francesa e a Igreja
É comum afirmar que a Igreja Católica, imbuída de uma mentalidade obscurantista e autoritária, opôs-se aos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade pregados pela Revolução Francesa. Entretanto, um estudo mais aprofundado dos acontecimentos ocorridos na França durante esse conturbado período mostra que a realidade é bem mais complexa do que parece.

Uma nação em crise
Ainda se encontra em jornais e salas de aula um ou outro intelectual imbuído do preconceito de que a Igreja se teria oposto desde o início à Revolução Francesa. Segundo essa visão, a Revolução seria sinônimo de “democracia”, e a Igreja teria estado unida de corpo e alma à monarquia, ou seja, ao obscurantismo e à opressão das consciências.
Felizmente, uma infinidade de estudos realizados ao longo do século XX, e publicados ou republicados por ocasião do segundo centenário da Revolução, já tornou do conhecimento comum que nem uma coisa nem outra são verdade. Mais do que representar a instauração da democracia numa sociedade ferrenhamente absolutista, a Revolução marcou o paroxismo de uma crise espiritual e social num país já abalado do ponto de vista político e institucional.
A título de exemplo: nem o rei nem a Igreja puseram entraves à Declaração dos direitos do homem e do cidadão – principal conquista positiva do primeiro período revolucionário –, com a única exceção de um velho bispo, aliás deputado da Assembléia, que sugeriu que se completasse a declaração dos direitos com outra dos deveres... A nobreza, maior prejudicada pela abolição dos seus privilégios, foi paradoxalmente a classe que mais se empenhou, corporativamente, na abolição desses mesmos privilégios. E as sangrentas lutas entre as facções monarquistas, burguesas, republicanas, comunistas e até anarquistas que marcaram o apogeu da atividade revolucionária e culminaram no Terror, foram tudo, exceto democráticas.
Quanto à acusação de “retrógrada” e de “inimiga das liberdades” que se costuma lançar contra a Igreja Católica, é preciso reconhecer que muitos católicos não souberam distinguir, no primeiro instante, os limites que era necessário traçar entre a tradição política e a religiosa. Os seus adversários anticlericais, porém, não deram mostras de terem horizontes mais amplos. Em contrapartida, e é um fato que se costuma esquecer, a Revolução moveu contra a Igreja uma perseguição que durou mais de dez anos, e na qual os motivos políticos, embora bastante presentes, desempenharam um papel secundário.
Para entendermos o que se passou, teremos de lançar uma vista de olhos sobre a crise econômica, institucional e espiritual que, a partir de 1750 aproximadamente, preparou os acontecimentos de 1789 (1).

Crise econômica. Ao longo do século XVIII, a economia francesa tinha experimentado um crescimento e uma consolidação inauditos. Por volta de 1780, a população atingira 25 milhões de pessoas, o que fazia da França a maior potência européia. A indústria diversificara-se e expandira-se. Mas, no seio dessa economia próspera, o governo estava falido: graças às manobras do Ministro das Finanças Necker, os gastos públicos excediam em um terço as rendas do governo. O apoio que a monarquia dera à guerra de libertação dos Estados Unidos transformara o furo nas finanças num rombo: mais de um terço dos gastos públicos se destinavam, por volta de 1789, a pagar apenas os juros das dívidas contraídas pelo governo. O fisco, sua principal fonte de renda, chocava-se com a antiga e generalizada prática da sonegação, acobertada ou francamente promovida pelos “Parlamentos” locais – mais ou menos equivalentes às nossas Câmaras de Deputados estaduais, acrescidas do Tribunal de Contas do Estado –, compostos na sua quase totalidade pelos principais sonegadores: nobres e burgueses ricos e grandes proprietários de terras.
Acrescentemos a isso as dificuldades por que passava a indústria têxtil, incapaz de concorrer com a inglesa, que já empregava os recém-inventados teares a vapor; o recente acordo comercial com a Inglaterra, impregnado do espírito de laissez-faire, que praticamente tinha suprimido as taxas de importação sobre os produtos estrangeiros; a crescente falta de crédito que o governo encontrava junto aos banqueiros, com a conseqüente inflação do franco; e ainda as más colheitas de trigo de 1787-88, que fizeram quadruplicar o preço do pão, e as supersafras simultâneas de uva, que fizeram despencar o preço do vinho. Tudo isso levou a uma insatisfação generalizada, que deflagrou a anarquia popular dos seis primeiros meses da Revolução.
Por fim, os arredores de Paris e de algumas outras grandes cidades do reino – Lyon, Bordeaux – tinham sido invadidos por uma população desarraigada, depreciativamente chamada sans-culottes (“sem-cuecas”); somente a crise da indústria têxtil produzira cerca de 200.000 desempregados, e o seguro-desemprego, que já existia, não era lá grande coisa. A “bandidagem” aumentara de uma maneira sem precedentes; por todo o lado , ocorriam desordens e tumultos, motivados em parte pela “psicose da carestia” causada pela alta do pão, mas sobretudo manobrados por alguns agitadores que pregavam uma “nova era de liberdade e de bonança prestes a instalar-se”. Foi essa populaça instável que forneceu, uma e outra vez, os grupos de “pressão popular” de que os revolucionários mais atuantes precisavam para obrigar o rei e a Assembléia a aceitarem as medidas mais radicais.

Crise institucional. Os principais protagonistas coletivos da primeira parte do drama serão os três “Estados”. A palavra provém das reuniões que os reis medievais deviam convocar sempre que quisessem instituir um novo imposto ou introduzir uma inovação administrativa ou judicial importante, não prevista pelos costumes estabelecidos. Essas assembléias, chamadas Estados Gerais, deviam representar a totalidade da população, e para esse efeito dividiam-se tradicionalmente em três estamentos. O “primeiro” era o clero, o “segundo” a nobreza, e o “terceiro” definia-se por exclusão: compreendia todos os não-clérigos e não-nobres, isto é, de lavradores e artesãos a banqueiros e advogados, a imensa maioria da população.
Ao longo de todo o século XVIII, o “terceiro Estado” vira crescer a sua atuação econômica e a carga tributária que pesava sobre ele, sem que a sua participação na gestão da “coisa pública” aumentasse de maneira proporcional. Os seus membros mais proeminentes alimentavam um arraigado ressentimento contra as imunidades tributárias da Igreja e contra os privilégios da nobreza, que detinha um acesso praticamente exclusivo ao primeiro e segundo escalões dos cargos públicos, diplomáticos e militares. E, como os Parlamentos locais vinham fazendo oposição sistemática às necessárias reformas administrativas, judiciárias, tributárias, de distribuição da terra etc., tentadas pelo rei Luís XVI e seu conselho de ministros, não parecia possível aos “terceiro-estadistas” mais ambiciosos mudar essa situação sem alterar toda a estrutura social do país.
Tinham-se já tentado todos os meios. Convocara-se uma assembléia de “Notáveis”, de personalidades significativas do reino, mas ela se limitara a preconizar as reformas que todos conheciam de cor e ninguém tinha coragem de aplicar. O rei fechou os Parlamentos, o que simplesmente os ransformou em governos clandestinos que já não o informavam sobre nada. A anarquia ameaçava tomar conta do país. E foi nessa altura que Luís XVI decidiu ressuscitar, como medida de emergência e pela primeira vez havia cento e cinqüenta anos, a reunião dos Estados Gerais.

A revolução nos espíritos
Como vemos, se de fato existiam uma crise econômica e outra institucional, ambas não bastam para justificar os acontecimentos. O que observaremos na Revolução, para além das questões econômicas e políticas, são as convulsões de morte de todo um mundo. Dizia o historiador Albert Mathiez, numa frase justamente famosa, que “as revoluções se fazem nos espíritos antes de passarem para os fatos”. Examinemos brevemente o panorama a esta luz.
Crise dos valores. Todo o século XVIII – o “século das luzes” – fora trabalhado pelos autonomeados “filósofos da razão” ou “iluministas”. Estava-se na era em que a ciência experimental, preparada pelos grandes teólogos medievais e posta em andamento pelos pioneiros do século anterior – Newton, Kepler, Harvey, Galileu – produzia os seus primeiros resultados em grande escala. As recentes descobertas geográficas acabavam de preencher os vazios ainda existentes no mapa-mundi. A anatomia do corpo humano tinha sido finalmente descrita com precisão . Enquanto subiam os primeiros balões de ar quente, nasciam a cirurgia, a geologia, a química, a metalurgia; Bouffon e Linneu revolucionavam a biologia, e Kant descrevia o nascimento das estrelas.
Nesse ambiente, não admira que germinassem o mito do progresso perpétuo – a humanidade sempre evolui para melhor – e o da soberania ilimitada da razão. “A filosofia consiste – diz a Enciclopédia – em preferir a razão à autoridade. O filósofo não admite nada sem provas; não admite noções equivocadas. É ele quem precisa os limites do certo, do provável e do duvidoso”. Os criadores desses mitos não foram os cientistas, sempre obrigados à disciplina da humilde aceitação dos fatos reais; foram os vulgarizadores da ciência – Voltaire, Diderot, Condorcet e demais colaboradores da Enciclopédia –, deslumbrados com o poder aparentemente sem limites da razão humana.
“Ora”, pensavam, se a razão dera resultados tão excelentes no campo da técnica, não se deveria aplicá-la igualmente ao social e ao político? Inspirados inicialmente, com Montesquieu, no modelo parlamentar inglês, e tendo encontrado o seu teórico mais brilhante no genebrino Jean-Jacques Rousseau, os intelectuais do século puseram-se a construir febrilmente uma utopia que fazia tabula rasa de todas as instituições em que
se plasmara, ao longo de milênios, a tradição política.
O seu ideal? A sociedade em “estado puro”, tal como supunham tê-la encontrado nos “bons selvagens” da América, dos quais se tinham visto na França, ao todo, três representantes autênticos, em tempos de Luís XV. Por reação contra o seu calvinismo natal, que insistia um pouco obsessivamente na corrupção da natureza humana, Jean-Jacques resolvera abolir o pecado original, substituindo-o pelo dogma da inata bondade humana. E se o homem é bom por natureza, mas ao mesmo tempo pululam os ladrões e estelionatários, assassinos, corruptos, mentirosos e libertinos, só poderá ser por culpa da sociedade. É preciso, pois, aboli-la e reestruturá-la pela base. É preciso criar um “novo homem”, educado num ambiente “natural”, de acordo unicamente com os princípios da “sã razão” e da “moral natural”.
Essa moral “natural” não era a que a Igreja vinha ensinando desde sempre. Era antes a moral pagã, tal como permeia as obras dos grandes pensadores da Antigüidade, um Cícero, um Marco Aurélio, um Aristóteles, um Plutarco, centrada no patriotismo e nas “virtudes republicanas”. “Todas as civilizações estão de acordo quanto aos pontos essenciais da moral, tanto quanto diferem nos pontos essenciais da fé”, pensavam os iluministas; o que não puderam ou não quiseram enxergar foi que, ao desconsiderarem a realidade do pecado e a necessidade da autoridade divina como guia dessa pobre razão, sempre mais ou menos paralítica na vida real, estavam abrindo caminho para a relativização completa da moral. Os seus sucessores dos séculos XIX e XX multiplicariam até à náusea tanto os sistemas “éticos” como as aberrações de comportamento.
Por fim, ao entronizarem a Razão humana como centro e medida de todas as coisas, na prática não queriam senão dizer que era a sua razão, a de cada um deles, que deveria mandar em tudo e em todos. É o grande erro em que a humanidade não se cansa de incidir desde as origens: Sereis como deuses, conhecedores – isto é, determinadores – do bem e do mal (Gên 3, 5). O que mais incomoda o orgulho humano é a autoridade que lhe diz o que deve ou não fazer. Assim, não era senão lógico que esses pensadores se voltassem contra todas as formas de autoridade: a autoridade monárquica, classificada como despotismo; a tradição, religiosa ou social, considerada como “lastro inútil do passado”.
O alvo preferencial de todos os ataques era, evidentemente, a Igreja. Choveram calúnias, mentiras e insídias sobre sacerdotes e frades, tanto em panfletos de baixo calão como nos romances de alto luxo que faziam as delícias das damas da corte. Os jornais e a Enciclopédia não perdiam ocasião de atirar farpas ao cristianismo. Os votos religiosos eram apresentados como ofensa grosseira à Liberdade; os conventos, como prisões em que vítimas inocentes da Superstição enlanguesciam contra a vontade. A fé equivalia ao Fanatismo, e só conseguia sobreviver nas classes humildes e atrasadas graças à Ignorância em que os padres as mantinham. E, quando Benjamim Franklin se encontrar com Voltaire, em Paris, no ano de 1778, ambas as luminárias considerarão o terreno suficientemente preparado para lançarem contra a Igreja uma ofensiva descarada, sob o lema “Écrasons l'infâme”, “Esmaguemos a infame”.
Ao mesmo tempo em que a Razão desencadeia essa campanha contra a religião, ganha força também uma corrente intimista, influenciada pelo pietismo protestante. Em todas as épocas anteriores, incluída a Antigüidade pagã, ninguém punha em dúvida que a religião fosse um assunto público: cabia ao Estado assegurar que o povo recebesse uma boa instrução religiosa e pudesse participar coletivamente das cerimônias de culto. Agora, passava-se a considerá-la assunto de foro privado, sentimento individual, experiência pessoal. No foro público, devia limitar-se, quando muito, a um vago deísmo, que reconhecesse a imortalidade da alma, a existência de Deus e a Criação do mundo (concebida como a invenção de um brinquedinho mecânico ), mas não a intervenção ativa e pessoal de Deus na história dos homens através de uma instituição, a Igreja.
Esse caldeirão de idéias fervilhava sobretudo em dois meios. Em primeiro lugar, naquele a que se chamou a “república das letras”, isto é, um sem-número de academias literárias de província, clubes de discussão, lojas maçônicas, sociedades de intelectuais, interligadas entre si por uma intensa correspondência e, já nas vésperas da Revolução, coordenadas pela chamada “sociedade dos trinta”, que transformou essa amálgama heterogênea num autêntico partido. É neste meio, tomado por uma mística revolucionária cada vez mais alambicada, que se formará “esse tipo intelectual e moral que ninguém previa, que cada qual reprovaria se lhe fosse apresentado, e que no entanto todos preparavam: o jacobino socialista de 1793” (2).
Em segundo lugar, e paradoxalmente, os salões onde as grandes famílias da nobreza – por exemplo, a do duque de Orléans, irmão do rei; ou dos príncipes de Conti; ou da duquesa do Maine – promoviam soirées elegantes e banquetes requintados. Sentado à cabeceira da mesa, ao lado da bela anfitriã que tinha disputado arduamente com as suas rivais o direito de ostentar essa jóia preciosa, encontrava-se o intelectual de plantão: Voltaire, escondendo a careca sob a longa cabeleira empoada, Jean-Jacques, envolvido no seu grosseiro manto de pele de carneiro, ou , com sorte, esse divertido embaixador americano de meia-idade, tão deliciosamente rústico, e ainda por cima revestido da aura misteriosa de grão-mestre da maçonaria, Benjamim Franklin.
Durante as entrées, com o champanhe a borbulhar nas taças, todos se dedicavam a louvar a última obra de um desses grandes gênios, a maravilhosa “audácia” com que comparara, por exemplo, os frades com as lesmas: estas, quando lhes cortam a cabeça, conseguem regenerá-la; aqueles, curiosamente, não. Durante os pratos principais, e aquecida por vinhos mais encorpados, a conversa girava em torno dos ponderosos temas da Liberdade e da Igualdade, da divisão dos três poderes, da supressão dos privilégios. Quando chegava a hora dos queijos, já os ânimos espocavam em tiradas divertidas e epigramas equívocos contra a Tirania. Por fim, bebericando o café recém-introduzido da Guiana e que tomara Paris como uma coqueluche, os cavalheiros iam para o salão de fumar onde, entre baforadas de charutos da Virgínia, baixavam a voz para conversar em tom de conspiradores sobre as graves questões da existência do “Deus-relojoeiro” dos philosophes e da imortalidade da alma.
Foi uma nobreza ébria desse novo espírito que liquidou quase sem encontrar resistências o Antigo Regime, muito mais do que os bem-situados burgueses do partido girondino. E, quando os revolucionários linha-dura chegarem ao poder, será essa mesma nobreza que fornecerá o maior número de vítimas para o holocausto. “Avançávamos alegremente sobre um tapete de flores – escreveria mais tarde um dos seus representantes, o conde de Ségur –, sem perceber o abismo que cavávamos sob os nossos pés”.

Crise religiosa. A Igreja do Antigo Regime encontrava-se estreitamente imbricada em todos os aspectos da vida nacional. Acompanhava o homem do nascimento ao túmulo, registrando-lhe o batismo, o casamento e a morte. Regulava o ritmo do trabalho e do descanso por meio do calendário de domingos e feriados. Incumbia-se da instrução e educação do povo, desde a simples alfabetização até à Universidade. E sobre ela recaía quase tudo o que hoje conhecemos como saúde pública e assistência social: hospitais , ajudas pecuniárias a viúvas e inválidos, pensões e aposentadorias para quem não tivesse sido funcionário público, etc. etc. etc.
Para poder desempenhar essas funções, a Igreja dispunha de meios proporcionados. No período imediatamente anterior à Revolução, contava com cerca de 130.000 clérigos – mais de 0,5% da população –, distribuídos entre 135 bispos, 60-70.000 párocos e vigários do clero secular, 20.000 religiosos e 40.000 religiosas. Era proprietária de quase um sexto do território nacional, tanto em terras como em edifícios públicos. Gozava do privilégio de foro e de imunidades reais, isto é, na prática, de um sistema judiciário autônomo. E percebia o dízimo, que se tinha transformado numa espécie de imposto fixo obrigatório, cobrado burocraticamente, sem o seu caráter primitivo de doação voluntária.
Se a Igreja desempenhava boa parte das funções que hoje atribuímos, e com razão, ao Estado, o Estado, por sua vez, era confessional e sentia-se na obrigação de sustentar e promover a fé católica. De há muito se estava acostumado a ver bispos e cardeais, como Richelieu e Mazarino, desempenharem papéis de grande relevância política, e os reis tomarem a peito a reforma das Ordens religiosas. Embora sempre tivesse havido abusos de uma parte e de outra, no conjunto o sistema funcionara relativamente bem ao longo dos últimos mil anos, e não passava pela cabeça de ninguém que fosse possível separar o poder espiritual e o temporal sem destruir tanto um como outro .
Além do mais, até 1750, o catolicismo francês conhecera a sua “idade de ouro”. As decisões do Concílio de Trento – sábias e ponderadas, ao contrário da caricatura que se costuma traçar delas – tinham dado fruto abundante. Os abusos condenados pelo Concílio haviam sido extirpados quase por completo sob a influência dos grandes santos reformadores: Francisco de Sales, Vicente de Paulo, João Eudes. A figura do clérigo burocrata, sem vocação para o sacerdócio e interessado sobretudo nas vantagens materiais do cargo, praticamente tinha desaparecido. Os párocos eram, na sua quase totalidade, sacerdotes modelares, de uma piedade acima de qualquer censura, embora a doutrina nem sempre acompanhasse a estatura moral.
No entanto, por volta de meados do século também na Igreja começaram a aparecer linhas de falha. O fervor popular tornou-se mais e mais rotineiro e a freqüência dos sacramentos caiu bastante, sobretudo nas grandes cidades. A querela teológica em torno do jansenismo, doutrina que acabava de ser condenada por Roma – mas já tinha ganho extensa influência na Igreja francesa –, dividiu os ânimos e fez enormes estragos, sobretudo entre os religiosos, que entraram em acentuado declínio. Diante dos ataques dos iluministas, a teologia e a apologética só se defendiam com lentidão e moleza; e se em começos do século a literatura religiosa ocupava o primeiro lugar em número de títulos publicados, às vésperas da Revolução tinha caído para o décimo. As ciências, as artes e as curiosidades haviam preenchido esse espaço.
Por outro lado, a distância que separava os bispos – o “alto clero” – dos párocos e sacerdotes seculares – o “baixo clero” – tinha aumentado muito, com o conseqüente afrouxamento da unidade e da disciplina. Os sacerdotes provinham quase todos das camadas populares e, com o declínio do fervor do seu rebanho, tinham-se proletarizado em grande medida, ao passo que os bispos provinham na sua quase totalidade da nobreza e conservavam os hábitos mundanos e faustosos da sua classe. Havia entre eles autênticos santos, como Monseigneur de la Rochefoucauld, bispo de Compiègne, que morreria martirizado no convento dos padres carmelitas de Paris, em 1794; mas havia também simples arrivistas desprovidos de fé, como o tristemente afamado Mgr. de Talleyrand, bispo de Autun.
A título de reação e estimulado pelos raciocínios “classistas” do tempo, surgira entre o baixo clero um movimento chamado presbiterianismo, que pretendia confiar toda a administração eclesiástica aos párocos e negar aos bispos diocesanos qualquer papel na Igreja. Não se deve confundi-lo com a Igreja protestante que tem este mesmo nome, embora houvesse algum remoto parentesco entre as idéias de ambos. O alto clero, por sua vez, simpatizava quase todo, aberta ou veladamente, com as teorias do galicanismo, que punha entre parênteses a autoridade do Papa nas questões que diziam respeito ao governo da Igreja francesa e, em contrapartida, concedia amplo papel à intervenção dos monarcas. Estas duas correntes, tomando a palavra em 1790, desencadearão uma tormenta que depois, como o aprendiz de feiticeiro da lenda, não saberão controlar.

Primeira etapa: uma Igreja dócil ao Estado
No dia 4 de maio de 1789, nas dependências do palácio real de Versalhes, abriam-se com uma missa solene ao Espírito Santo os trabalhos dos Estados Gerais, a assembléia geral dos três “Estados”. Os 1100 representantes que os franceses tinham eleito estavam divididos em três grupos; o primeiro Estado, concretamente, contava 296 clérigos, dos quais 47 bispos; o segundo, cerca de 300 deputados, e o terceiro, uns 500.
Eram enormes as esperanças que se depositavam nessa Assembléia, a ponto de se poder dizer que, por alguns meses, chegou a fazer a unidade dos franceses em torno do novo projeto social. O deputado Camille Desmoulins proclamava da tribuna: “Fiat, fiat; sim, todo este bem vai-se realizar; sim, cumprir-se-á esta regeneração. Não haverá poder sobre a terra que possa impedi-lo. Sublime efeito da liberdade e do patriotismo. Chegamos a ser invencíveis”.
Nesse primeiro momento, ninguém sonhava em tomar qualquer medida contra os interesses da Igreja, tal como ninguém sonhava que se pudesse viver sem a monarquia. Havia, sim, alguns anticlericais e deístas entre os deputados, como um certo Anarchasis Clootz, cuja idéia fixa era promover o casamento de todos os padres. Mas, tal como os republicanos, eram uma minoria, teoricamente quase desprezível.
Nas primeiras semanas, não se pareceu avançar para lado nenhum. De acordo com o sistema tradicional, cada um dos três Estados reunia-se em separado e tinha direito apenas a um voto. Os projetos sucediam-se, desencontrados, e nenhum conseguia maioria. Por fim, o Terceiro resolveu autoproclamar-se Assembléia Nacional e decidiu, à revelia dos outros dois e do rei, que as moções seriam votadas não por Estado, mas por cabeça; pouco depois, quase todo o baixo clero uniu-se às suas sessões, o que conferia à reunião dos dois a maioria absoluta no seio da Assembléia; e por fim uniu-se a eles também uma delegação de nobres, com o duque de Orléans à cabeça. Estava formado um novo poder, ainda submetido formalmente ao rei, mas na prática totalmente independente: a Assembléia legislativa.


Ao mesmo tempo, os oradores de tendências mais populistas trabalhavam o caldo de cultura dos sans-culottes. No dia 13 de julho, abrindo um precedente importante, a populaça saqueou o convento de Saint-Lazare, pois se tinha posto a circular o boato de que os monges tinham acumulado imensas provisões de trigo. Não se encontrou um único saco de farinha. No dia seguinte, foi a vez da Bastilha, onde os resultados foram parecidos. Libertaram-se ao todo sete “vítimas do Despotismo”: quatro falsários comuns, que aproveitaram para desaparecer quanto antes; dois loucos perigosos, transferidos logo depois para um hospício; e um jovem libertino, discípulo do marquês de Sade, mantido ali a pedido dos pais... Seja como for, a cabeça do comandante da praça-forte, De Launay, foi passeada pelas ruas na ponta de uma lança, num gesto que em breve faria escola. Mais tarde, em outubro, essa massa de manobra cercaria Versalhes a fim de forçar a família real e a Assembléia a mudar-se para as Tulherias, em Paris, com a idéia de mantê-los sob estreita vigilância e evitar um golpe por parte do “complô da Corte”.
Nesse meio tempo, a Assembléia Nacional, animada com a facilidade de aprovar novas leis, declarou-se Assembléia Constituinte. Em 20 de agosto, à imitação da Constituição americana, aprovou a Declaração dos direitos do homem e do cidadão, proclamou a soberania do povo e aboliu todos os antigos privilégios. E de passagem, a fim de ajudar a cobrir o rombo das finanças e por sugestão do baixo clero, transferiu os dízimos eclesiásticos para os cofres do Estado.
A 10 de outubro, como não se encontrava solução para o déficit crônico das contas públicas, resolveu-se lançar mão do clássico e já tantas vezes experimentado remédio dos governos falidos: nacionalizar os bens eclesiásticos. A sugestão partiu nada menos que do bispo Talleyrand, que a justificou dizendo que esses bens já serviam, de uma forma ou de outra, para a prestação de umas funções públicas; nada mais razoável, portanto, do que aplicá-los a outras mais urgentes. Ninguém considerou digno de menção, naquele momento, que isso significava pura e simplesmente arruinar por tempo indefinido toda a educação, assistência e saúde públicas.
A moção foi aprovada um mês depois, ao cabo de ásperos debates. Em contrapartida, decretava-se que o governo pagaria uma pensão a todos os clérigos incumbidos de tarefas pastorais. Inconformados, a maioria dos bispos e sacerdotes abandonaram a Assembléia. Abria-se um período novo nas relações entre o Estado e a Igreja: a tentativa de criar uma Igreja inteiramente dependente do Estado.
A partir de fevereiro de 1790, sucede-se toda uma série de decretos em que se põem de manifesto a tibieza dos cristãos presentes na Assembléia e os resultados da virulenta propaganda que os iluministas tinham dirigido contra a Igreja. Os primeiros raios fulminaram as Ordens religiosas. Numa total incompreensão do papel que a oração ocupa na vida cristã, também no seu aspecto social, suprimiram-se todas as Ordens contemplativas, isto é, todas as que não se dedicassem a alguma atividade “útil”, pedagógica ou hospitalar. Aos religiosos que aceitassem secularizar-se, oferecia-se uma pensão vitalícia; os outros deveriam ser reagrupados, para deixar os seus conventos ao dispor da Nação. Além disso, em nome da decantada Liberdade, “degradada” pelos votos religiosos, proibia-se a emissão de novos votos por parte dos noviços e postulantes de todas as Ordens.
Mas o maior dos erros ainda estava por vir: no dia 12 de julho de 1790, a Assembléia aprovou a Constituição civil do clero, lei que pretendia reorganizar a Igreja francesa. Começava por fixar os limites das dioceses de acordo com a recente divisão política do território em “departamentos”; era um abuso de competência flagrante, mas ainda tolerável. Além disso, porém, bispos e párocos passavam a ser eleitos pelo “povo soberano” das suas respectivas circunscrições, no qual estavam incluídos protestantes, judeus e até ateus, o que era no mínimo curioso. Os bispos já não receberiam a investidura canônica do Papa, mas do seu arcebispo metropolitano, limitando-se a comunicar ao Santo Padre a sua nomeação, o que, na prática, representava um cisma. E os próprios bispos não podiam mais tomar medida alguma sem o apoio de um conselho permanente de sacerdotes, o que redundava em heresia, pois significava negar-lhes os poderes hierárquicos instituídos pelo próprio Cristo.
Noventa e três bispos – a quase totalidade dos que estavam à frente de uma diocese – reagiram sem perda de tempo com uma Exposição de princípios na qual se deixava claro que “os soberanos da terra” não tinham o direito de interferir na jurisdição espiritual da Igreja e se ressaltava a necessidade de respeitar os direitos do sucessor de Pedro, “intérprete da Igreja universal”. Também o baixo clero e o povo não mostraram nenhum entusiasmo pelas medidas. Quanto ao Papa, que era então Pio VI, preferiu guardar silêncio oficialmente, embora em privado instasse Luís XVI a não sancionar a Constituição civil; o rei, no entanto, depois de mil hesitações angustiosas, acabou por dar a sua aprovação.
Exasperada com a resistência que encontrou na aplicação das novas medidas, a Assembléia cometeu mais um atropelo funesto: no dia 27 de novembro de 1790, aprovou uma lei que obrigava bispos, párocos e todos os que exercessem funções pastorais a prestar juramento de que apoiariam “com todas as forças a Constituição [civil do clero] decretada pela Assembléia Nacional e aceita pelo rei”. Os que se recusassem a fazê-lo deveriam considerar-se demitidos dos seus ofícios pastorais e ser substituídos por outros; se persistissem em exercer as suas funções, seriam perseguidos como “perturbadores da ordem pública”.
O resultado foi que, no primeiro semestre de 1791, a Igreja francesa se cindiu em duas: a dos “juramentados”, isto é, dos que tinham prestado o juramento, e a dos “refratários”. Para honra dos bispos, é preciso dizer que, dos cento e sessenta que havia na França, apenas sete decidiram prestar o juramento, entre eles Talleyrand e o arrivista Gobel, bispo coadjutor de Bâle, a quem a traição valeria ser nomeado arcebispo de Paris. “Nós lhes tomamos os bens”, comentaria o deputado Mirabeau, “mas eles guardaram a honra”. Mais doloroso, porém, é que cerca de oitenta optaram pelo exílio voluntário, deixando o seu clero acéfalo.
Quanto aos sacerdotes, o resultado variou muito de região para região. No primeiro dia, na própria reunião da Assembléia, animados pelo exemplo do jansenista pe. Grégoire, “cujas virtudes sacerdotais eram indiscutíveis, mas cujo zelo revolucionário era mais indiscutível ainda” (3), vários deputados sacerdotes prestaram o juramento; muitos outros, porém, permaneceram inflexíveis, mesmo diante das ameaças dos colegas e dos “patriotas populares” ululantes que cercavam a sala de reuniões e ameaçavam “dependurá-los da lanterna mais próxima”. Na França inteira, ao que parece, pouco menos que a metade dos párocos, cerca de um terço do total dos sacerdotes, cedeu.
Em setembro, a Assembléia Constituinte – depois de cantar o hino Veni Creator Spiritus a fim de pedir luzes ao Espírito Santo... – passou a organizar a Igreja nacional, que logo receberia a alcunha de “constitucional”. Era preciso designar nada menos que oitenta novos bispos para as dioceses reorganizadas, praticamente todas sem titular juramentado, e mais de trinta mil párocos. A escolha, evidentemente, não podia ser lá muito criteriosa, mas chegou a haver entre os recém-recrutados alguns excelentes sacerdotes e administradores; de algum bispo, pôde-se mesmo dizer “que teria sido digno do seu cargo se não o tivesse usurpado”... Por outro lado, certo bispo constitucional exclamou com toda a franqueza, quando o censuraram pela mediocridade do seu clero: “Que havemos de fazer?! Quando não se tem cavalos, trabalha-se com asnos”...
Ordenar os bispos designados pela Assembléia depois da condenação papal significava pura e simplesmente consumar o cisma; uma vez mais, Talleyrand dispôs-se a fazer o serviço sujo e, no que seria o seu último ato eclesiástico, consagrou os primeiros bispos constitucionais. A transformação da Igreja francesa num mero “ministério da religião” parecia estar completa.
Um sacerdote “refratário” resumiu perfeitamente a situação numa brochura de circulação subterrânea: “A Assembléia Nacional constituiu-se em juiz e fonte da Sagrada Doutrina. Suprimiu a Igreja de Jesus Cristo na França, e não quer mais que uma igreja humana, formada pelos seus decretos”.


Segunda etapa: a perseguição tolerada
No início, os refratários foram tolerados pelo governo, ao passo que os juramentados foram unanimemente desprezados pelo povo. Em muitos lugares, o pároco não-juramentado teve de ser substituído à força, mas os fiéis continuavam a recorrer a ele fora da igreja para confessar-se e receber os sacramentos, enquanto o seu colega constitucional tinha de contentar-se com pregar às moscas... e aos anticlericais da paróquia, lá presentes por obrigação política.
Gradualmente, porém, apertou-se o cerco: quando se tornou conhecida a condenação papal, Pio VI foi queimado em efígie pelas ruas de Paris. Proibiram-se os não-juramentados de residir a menos de dez e depois vinte milhas da sede paroquial. Romperam-se as relações com a Santa Sé e fecharam-se as grandes escolas de teologia, a Sorbonne e o Colégio de Navarra. Transmitiram-se aos grupos jacobinos instruções discretas para “castigar” os padres antigos e os fiéis que recorressem a eles, enquanto a polícia recebia ordens de manter os olhos bem fechados ante esses abusos. Mas os católicos resolveram retribuir na mesma moeda e os incidentes multiplicaram-se por toda a parte, amargando os ânimos e acirrando as oposições.
A nova Assembléia Legislativa que assumiu a 1º. de outubro de 1792 apresentava um cunho mais marcadamente progressista e anticlerical, uma vez que os Clubes republicanos e jacobinos, que haviam organizado a eleição, tinham conseguido excluir os eleitores monarquistas e moderados. Somente 27 dentre os deputados eram eclesiásticos, 10 deles bispos, evidentemente juramentados, ao passo que havia, por exemplo, 150 advogados.
Desde o início, formaram-se três grandes grupos: a “direita”, que se chamava assim por ocupar os assentos da parte direita do plenário, era integrada sobretudo pelos Feuillants, conservadores que tendiam a apoiar uma monarquia constitucional, e pela Gironde, os nobres e burgueses republicanos, entre os quais havia muitos deístas ilustrados à Voltaire e Rousseau; a “esquerda”, que agrupava desde republicanos exaltados até socialistas , era dominada pela Montagne, os membros dos clubes mais radicais: jacobinos, cordeleiros, “raivosos” ( enragés )..., muitos dos quais eram ateus ou deístas fanáticos e não admitiam sequer a Igreja constitucional; e por fim, entre os dois pólos, o Marais, o grande “pântano” dos oportunistas e indecisos. Entre os deputados, Marat, Danton, Robespierre, Desmoulins...
Logo a primeira medida marcou o endurecimento da perseguição: estendeu-se a todos os clérigos, quer exercessem funções pastorais quer não, a obrigação de prestar o juramento no prazo de oito dias. A pena passava a ser a deportação. Como o rei se negasse a ratificar essa lei, mesmo depois de os sans-culottes terem invadido as Tulherias, massacrado o pelotão de suíços que lhe serviam de guarda pessoal, e ameaçado a sua família com as piores represálias, a causa dos sacerdotes refratários pareceu identificada com a da monarquia. A esquerda aproveitou para acenar com o espectro de um “iminente complô reacionário monárquico-clerical”, e as perseguições recrudesceram. Padres e religiosos foram presos em massa e encerrados em escolas e conventos; as comunidades religiosas que tinham sobrado foram fechadas na sua maioria e os seus membros, dispersados.
Pouco depois, rebentava a guerra com a Áustria e a Prússia, o que exasperou ainda mais os ânimos. Muitos dos exilados, entre eles a maior parte dos bispos depostos, apoiavam abertamente a invasão da França pela coalizão monarquista, o que fez com que se identificasse ainda mais a Igreja Católica com a monarquia: era nada mais nada menos que “traidora da pátria”. Uma fuzilada de decretos abateu-se sobre ela: proibiram-se os trajes talares e hábitos religiosos; suprimiram-se as últimas Ordens ainda existentes, as dedicadas ao ensino e aos hospitais; deu-se um prazo de quinze dias aos não-juramentados para que deixassem o país; e decretou-se que todo o refratário denunciado por apenas seis cidadãos seria deportado para a Guiana.
A esquerda aproveitou a situação de pânico para armar os elementos mais fiéis e formar com eles as Comunas Insurrecionais, espécie de corpos paramilitares precursores dos milicianos da Guerra Civil espanhola, dos “guardas vermelhos” de Mao-Tse-Tung edas FARC. Em setembro de 1792, uma onda de massacres varreu o país, deixando 1400 mortos, dentre os quais trezentos sacerdotes: os milicianos simplesmente invadiam os conventos e escolas que serviam de prisão e executavam quem encontrassem pela frente a golpes de cutelo, lançadas ou pauladas. Os conventos de Saint-Germain-des-Prés e do Carmo, em Paris, foram invadidos e todos os presos chacinados. No Carmo, a matança durou três dias ininterruptos. Em toda a França, depredaram-se igrejas e mosteiros. Era o início da perseguição aberta.
Concomitantemente, a vaga de sacerdotes refugiados atingia o auge. Se antes era um arroio que crescia pouco a pouco, agora atingia as proporções de enchente: no total, foram cerca de 40.000 os que cruzaram as fronteiras, na maioria a pé e na calada da noite. Distribuíram-se pelos Estados Pontifícios, pela Espanha e pela Suíça; os principados católicos da Alemanha, com medo de que o seu clero sofresse uma contaminação de “republicanismo”, não lhes concederam senão o direito de passagem; em contrapartida, a Holanda e a Inglaterra protestantes abriram-lhes largamente as portas, com autêntico espírito cristão. Muitas vezes os expatriados chegavam apenas com a roupa do corpo – certo bispo desembarcou em Dover apenas com uma calça esfarrapada e um chapéu de palha –, e tinham de sujeitar-se a ser tratados com desconfiança casmurra pelas autoridades; o povo simples, em contrapartida, recebeu-os com carinho e afeto, e desviveu-se por tratá-los bem.
Um dos efeitos mais paradoxais dessa perseguição foi que a presença dos refugiados na Inglaterra, que acolheu mais de 10.000 sacerdotes e 31 bispos, contribuiu para desfazer preconceitos seculares e criar uma atitude positiva para com o catolicismo romano, o que influiria poderosamente na restauração da hierarquia eclesiástica na Inglaterra uns cinqüenta anos mais tarde. William Pitt, primeiro-ministro, dizia em 1798: “Poucas pessoas esquecerão a piedade, o comportamento irrepreensível, a dolorosa paciência destes homens respeitáveis, lançados repentinamente a uma nação estrangeira, diferente pela sua religião, pela língua e pelos costumes. Eles granjearam o respeito e a simpatia de todo o mundo pela uniformidade de uma vida caracterizada pela piedade e pela decência”.


Terceira etapa: a descristianização oficial
Inicialmente assustada com os massacres de setembro, a Assembléia resolveu propor uma versão atenuada do juramento, que se limitava a exigir fidelidade aos princípios de Liberdade e Igualdade. Muitos bons sacerdotes e religiosos prestaram esse juramento, pensando que era suficientemente vago para não implicar nenhuma ofensa à fé; entre eles, por exemplo, M. Emery, antigo superior do Seminário de Saint-Sulpice, que residia sozinho no imenso casarão abandonado.
As sucessivas derrotas sofridas pelo exército francês no norte e no oeste aprofundaram nos deputados e no povo a “psicose do complô antipatriótico”. Na nova Assembléia , sob o impacto dessa psicose, cresceu a influência dos elementos radicais girondinos e montanheses. Dominada inicialmente pelos primeiros, a Assembléia proclamou a República e processou o rei , que se encontrava detido desde a invasão das Tulherias, por traição à pátria. Luís XVI, superando nos momentos finais a irresolução que o tinha caracterizado em vida, portou-se nobremente nesse transe, e foi executado a 21 de janeiro de 1793.
A repercussão foi espantosa. A Espanha declarou guerra à França e o oeste francês, rural e conservador, levantou-se em armas “em nome do rei e da santa religião”: era a guerra civil da Vendéia, que se prolongaria numa guerrilha atroz e interminável até a época de Napoleão. Em Paris, que já não era “mais que uma grande cidade sitiada”, adiou-se a aplicação da recém-aprovada Constituição do Ano I, a primeira autenticamente democrática; a Assembléia, em mais uma das suas transformações, autoproclamou-se Convenção; e criaram-se as instituições de exceção: o Comitê de Salvação Pública, o Comitê Geral de Segurança e os Tribunais Revolucionários.
Em junho, os “montanheses” conseguem maioria no Comitê de Salvação Pública e, apoiados na Comuna Insurrecional de Paris, começam a eliminar os girondinos. Abre-se o período do Terror. Durante um ano inteiro, de julho de 1793 até julho de 1794, a guilhotina estará em funcionamento permanente em duas praças centrais de Paris, e cada capital de departamento disporá também da sua. Suceder-se-ão nela os diversos desafetos políticos do ditador reinante – primeiro, os girondinos, que sucumbem aos ataques de Marat; depois, os partidários de Marat e os de Hébert, destronados por Danton e Robespierre; os do mesmo Danton e de Desmoulins, derrotados por Robespierre; e por fim o próprio Robespierre, derrubado pelo conjunto dos deputados sobreviventes. As rebeliões da Vendéia, de Lyon e de Toulon serão impiedosamente esmagadas, com abundância de sangue; e a guerra nas fronteiras, conduzida por soldados esfarrapados e famintos, mas fanáticos, ganhará novo alento e salvará a República.
No plano religioso, passava-se da descatolicização para a descristianização aberta – a déprêtrisation, literalmente “despadrização”. Instituiu-se o divórcio e passou-se o registro civil para as mãos das autoridades municipais. Por iniciativa do procurador-síndico da Comuna de Paris, Pierre-Gaspard Chaumette, a Igreja constitucional foi por sua vez despojada dos seus bens e os palácios episcopais vendidos. Suprimiram-se os lugares de culto, transformados – a exemplo da igreja de la Madeleine, em Paris – em “panteões” onde se veneravam estátuas de Voltaire, Rousseau, Benjamin Franklin e outros ilustres iluminados, bem como dos “mártires da liberdade”, como Marat, assassinado por uma donzela girondina um tanto desequilibrada .
Todos os padres, juramentados ou não , foram intimados a entregar as suas “lettres de prêtrise”, os documentos que os acreditavam como sacerdotes; e, num lance entre cômico e trágico, o Comitê de Salvação Pública fez-se “casamenteiro”: decretou que a todo o sacerdote casado, mesmo refratário, se perdoariam a prisão e a deportação... Se os comitês de milicianos já organizavam, por conta própria, os chamados “casamentos republicanos”, em que um sacerdote era amarrado estreitamente a uma paroquiana e ambos lançados à água para se afogarem, agora será o governo em peso que assumirá a tarefa de conduzir sacerdotes e religiosos ao porto seguro do himeneu...
Desmantelada a Igreja como instituição, passou-se a combater os “vestígios da Superstição e do Fanatismo”. Criou-se um novo calendário destinado a substituir o cristão, dividido em décadis (conjuntos de dez dias, dos quais o décimo seria feriado) a fim de fazer esquecer os domingos. As festas religiosas foram substituídas por celebrações da Natureza e da Razão ou das grandes datas patrióticas. E, para celebrar a “grande data” em que diversos sacerdotes juramentados, com o arcebispo constitucional de Paris – Gobel – à cabeça, se tinham “despadrizado” em plena sessão da Assembléia, realizou-se, na catedral de Notre-Dame, a 10 de novembro, a “festa da Razão”, em que uma dançarina de branco representava a “deusa”. Essas celebrações republicanas, pautadas pelas cerimônias romanas pagãs, chegaram a estar de moda durante algum tempo, embora “não servissem senão para cobrir de ridículo os que nelas tomavam parte”...
A Igreja constitucional ruiu quase inteiramente sob os golpes. 24.000 de 29.000 sacerdotes juramentados abandonaram o hábito e a vida sacerdotal, e até a prática religiosa. Além do nosso conhecido Gobel – “o povo pediu a minha presença, o povo agora manda-me embora: é o destino de um servo às ordens do seu mestre” –, vinte e quatro bispos juramentados apostataram publicamente, enquanto vinte outros renunciaram ao sacerdócio ou se secularizaram. Apenas um terço permaneceu firme, entre eles o antigo pe. Grégoire, agora bispo de Loire-et-Cher, que vimos jurar com tanto entusiasmo a Constituição civil, e que foi o único eclesiástico a permanecer na Convenção durante esse período, ousando desfraldar as suas vestes roxas pelas ruas de Paris:
“Católico por convicção e por sentimentos, sacerdote por vocação, fui designado pelo povo para ser bispo, mas não foi dele nem de vós [os seus colegas deputados] que recebi esta missão”...
Também entre os juramentados houve heróis e até autênticos mártires: mais de quinhentos sacerdotes foram enviados à guilhotina em Paris, e oito bispos tiveram o mesmo destino. E, como em todo o ser humano resta sempre a possibilidade do retorno à nobreza interior, o nosso ignóbil amigo Gobel, que foi preso pouco depois da apostasia e condenado à decapitação por “incitar o povo ao ateísmo”, ainda teve tempo de escrever ao seu vigário que oferecia a vida em expiação
“pelos crimes e escândalos que havia cometido”, pedindo-lhe que o esperasse junto do cadafalso para lhe dar a absolvição.
Quanto à Igreja que permanecera fiel, como tinha tido tempo de organizar-se na clandestinidade, sofreu menos com essa tormenta. Muitos sacerdotes viviam ocultos havia mais de três anos, e não faltavam fiéis dispostos a escondê-los e a passá-los de casa em casa, mesmo sabendo que corriam risco de vida. No interior, as dioceses haviam-se organizado em “missões” subterrâneas: a catequese era dada por leigos, em pequenos grupos, e os sacerdotes só permaneciam numa aldeia durante uma noite, o tempo suficiente para celebrar a missa, confessar e batizar os recém-nascidos, mantendo-se escondidos durante o dia. Graças a essa renovada “Igreja das catacumbas”, quando Robespierre cair , em julho de 1794, terão sobrevivido no próprio coração da tempestade, em Paris, nada menos que cento e cinqüenta lugares onde se celebrava freqüentemente a missa.
Mesmo assim, não foram poucas as baixas sofridas pelos católicos. Os que eram presos e destinados ao exílio na Guiana foram concentrados em Rochefort; mas, como os ingleses impediam o trânsito de navios franceses pelo Atlântico, foram confinados em dois barcos-prisão por meses a fio, num suplício que recebeu o apelido de “guilhotina seca” ( sem sangue ); ao cabo de um ano, de 850, apenas sobreviviam 274. Milhares de sacerdotes – os números variam entre dois e cinco mil – foram guilhotinados, afogados, arrastados por cavalos ou simplesmente mortos a pauladas.
O número de leigos que deu a vida pela fé é incontável. Houve cenas com um inconfundível sabor a primitiva cristandade, pois em muitos casos bastava a confissão da fé diante do Tribunal Revolucionário para condenar o acusado à morte. – “Você é fanático?”, perguntou um dos juízes de Lyon a um certo Auroze, comerciante: – “Serei tudo o que vocês quiserem, mas sou católico”, foi a simples resposta. Resultado: guilhotina. E foram também numerosas as religiosas que subiram ao cadafalso, como as carmelitas de Compiègne, as sacramentinas de Bollène, as ursulinas de Valenciennes e as filhas da Caridade de Arras.
Nem todos os que morreram durante o Terror foram mártires, como é evidente; ou seja, nem todos morreram unicamente pela fé. Da parte dos perseguidores, o ódio à monarquia e aos “traidores da pátria”, como consideravam os refratários, misturou-se e muitas vezes predominou sobre o ódio à religião; da parte dos perseguidos, essa incapacidade de discernir entre o político e o religioso também esteve presente com freqüência. Mas os requintes de crueldade de que se revestiram precisamente os massacres de sacerdotes e religiosos, e o encarniçamento satânico contra todos os símbolos cristãos – destruíram-se os belíssimos vitrais de quase todas as igrejas góticas, arrasaram-se mosteiros de antiqüíssima tradição como Cluny, arrancaram-se até as simples cruzes de madeira fincadas à beira das estradas – mostram com clareza que se assistia ao desencadeamento de algo mais do que meras paixões políticas: como Cristo , também os cristãos tiveram de submeter-se à hora e ao poder das trevas (Lc 22, 53).
No dia 28 de julho, Robespierre subia por sua vez à guilhotina. A França, tomada pela “náusea do cadafalso”, respirou aliviada. Em questão de dias, o clima social virou, e uma onda de fervor religioso tomou conta da Nação. Sem que a Convenção tivesse abrandado as leis em vigor, sacerdotes e bispos exilados começaram a retornar, os clandestinos saíram dos seus refúgios, as igrejas foram reabertas. A 21 de fevereiro de 1795, votava-se uma lei de separação entre Igreja e Estado, que permitia a liberdade de culto. Os sacerdotes ainda prisioneiros foram libertados. Voltou-se a celebrar a Páscoa segundo o calendário católico, embora oficialmente permanecesse em vigor o revolucionário.
Em começos de novembro de 1793, o presidente do clube jacobino, Robespierre, já em alta, tinha conseguido que a Assembléia reconhecesse por um decreto a existência do Ser Supremo e a imortalidade da alma, o que lhe serviria dentro em pouco para fazer condenar os seus rivais Danton e Desmoulins por “ateísmo”. Um pouco mais tarde, arrancou à Assembléia um decreto sobre a liberdade de culto, do qual ninguém quis tomar conhecimento. Mas não havia, por trás dessas medidas, nenhuma simpatia pelo cristianismo, e sim apenas a mística revolucionária na sua expressão mais pura. O maior triunfo pessoal do ditador foi presidir como sumo-sacerdote à procissão e festa “do Ser Supremo e da Natureza”, a 8 de julho de 1794. E, por mais vinte dias, poderia ainda alimentar a ilusão de que tinha substituído o cristianismo pela sua própria religião ...
A Igreja constitucional ruiu quase inteiramente sob os golpes. 24.000 de 29.000 sacerdotes juramentados abandonaram o hábito e a vida sacerdotal, e até a prática religiosa. Além do nosso conhecido Gobel – “o povo pediu a minha presença, o povo agora manda-me embora: é o destino de um servo às ordens do seu mestre” –, vinte e quatro bispos juramentados apostataram publicamente, enquanto vinte outros renunciaram ao sacerdócio ou se secularizaram. Apenas um terço permaneceu firme, entre eles o antigo pe. Grégoire, agora bispo de Loire-et-Cher, que vimos jurar com tanto entusiasmo a Constituição civil, e que foi o único eclesiástico a permanecer na Convenção durante esse período, ousando desfraldar as suas vestes roxas pelas ruas de Paris: “Católico por convicção e por sentimentos, sacerdote por vocação, fui designado pelo povo para ser bispo, mas não foi dele nem de vós [os seus colegas deputados] que recebi esta missão”...
Também entre os juramentados houve heróis e até autênticos mártires: mais de quinhentos sacerdotes foram enviados à guilhotina em Paris, e oito bispos tiveram o mesmo destino. E, como em todo o ser humano resta sempre a possibilidade do retorno à nobreza interior, o nosso ignóbil amigo Gobel, que foi preso pouco depois da apostasia e condenado à decapitação por “incitar o povo ao ateísmo”, ainda teve tempo de escrever ao seu vigário que oferecia a vida em expiação “pelos crimes e escândalos que havia cometido”, pedindo-lhe que o esperasse junto do cadafalso para lhe dar a absolvição.
Quanto à Igreja que permanecera fiel, como tinha tido tempo de organizar-se na clandestinidade, sofreu menos com essa tormenta. Muitos sacerdotes viviam ocultos havia mais de três anos, e não faltavam fiéis dispostos a escondê-los e a passá-los de casa em casa, mesmo sabendo que corriam risco de vida. No interior, as dioceses haviam-se organizado em “missões” subterrâneas: a catequese era dada por leigos, em pequenos grupos, e os sacerdotes só permaneciam numa aldeia durante uma noite, o tempo suficiente para celebrar a missa, confessar e batizar os recém-nascidos, mantendo-se escondidos durante o dia. Graças a essa renovada “Igreja das catacumbas”, quando Robespierre cair , em julho de 1794, terão sobrevivido no próprio coração da tempestade, em Paris, nada menos que cento e cinqüenta lugares onde se celebrava freqüentemente a missa.
Mesmo assim, não foram poucas as baixas sofridas pelos católicos. Os que eram presos e destinados ao exílio na Guiana foram concentrados em Rochefort; mas, como os ingleses impediam o trânsito de navios franceses pelo Atlântico, foram confinados em dois barcos-prisão por meses a fio, num suplício que recebeu o apelido de “guilhotina seca” ( sem sangue ); ao cabo de um ano, de 850, apenas sobreviviam 274. Milhares de sacerdotes – os números variam entre dois e cinco mil – foram guilhotinados, afogados, arrastados por cavalos ou simplesmente mortos a pauladas.
O número de leigos que deu a vida pela fé é incontável. Houve cenas com um inconfundível sabor a primitiva cristandade, pois em muitos casos bastava a confissão da fé diante do Tribunal Revolucionário para condenar o acusado à morte. – “Você é fanático?”, perguntou um dos juízes de Lyon a um certo Auroze, comerciante: – “Serei tudo o que vocês quiserem, mas sou católico”, foi a simples resposta. Resultado: guilhotina. E foram também numerosas as religiosas que subiram ao cadafalso, como as carmelitas de Compiègne, as sacramentinas de Bollène, as ursulinas de Valenciennes e as filhas da Caridade de Arras.
Nem todos os que morreram durante o Terror foram mártires, como é evidente; ou seja, nem todos morreram unicamente pela fé. Da parte dos perseguidores, o ódio à monarquia e aos “traidores da pátria”, como consideravam os refratários, misturou-se e muitas vezes predominou sobre o ódio à religião; da parte dos perseguidos, essa incapacidade de discernir entre o político e o religioso também esteve presente com freqüência. Mas os requintes de crueldade de que se revestiram precisamente os massacres de sacerdotes e religiosos, e o encarniçamento satânico contra todos os símbolos cristãos – destruíram-se os belíssimos vitrais de quase todas as igrejas góticas, arrasaram-se mosteiros de antiqüíssima tradição como Cluny, arrancaram-se até as simples cruzes de madeira fincadas à beira das estradas – mostram com clareza que se assistia ao desencadeamento de algo mais do que meras paixões políticas: como Cristo , também os cristãos tiveram de submeter-se à hora e ao poder das trevas (Lc 22, 53).
No dia 28 de julho, Robespierre subia por sua vez à guilhotina. A França, tomada pela “náusea do cadafalso”, respirou aliviada. Em questão de dias, o clima social virou, e uma onda de fervor religioso tomou conta da Nação. Sem que a Convenção tivesse abrandado as leis em vigor, sacerdotes e bispos exilados começaram a retornar, os clandestinos saíram dos seus refúgios, as igrejas foram reabertas. A 21 de fevereiro de 1795, votava-se uma lei de separação entre Igreja e Estado, que permitia a liberdade de culto. Os sacerdotes ainda prisioneiros foram libertados. Voltou-se a celebrar a Páscoa segundo o calendário católico, embora oficialmente permanecesse em vigor o revolucionário.


QUARTA ETAPA: A DIFÍCIL CONVIVÊNCIA
A nova Convenção eleita em 1795 espelhava claramente o descontentamento popular: 95% dos antigos deputados não conseguiram reeleger-se. No entanto, não chegava nem de longe a ser pró-católica, em parte por medo de se ver obrigada a devolver as propriedades eclesiásticas alienadas; sem muita margem de manobra quanto à religião, adotou a política de “vigiar o que não se pode reprimir”. Manteve as festas cívicas e a educação laica , e voltou a exigir um novo juramento de submissão e obediência às leis da República – “era uma mania!”, comenta Daniel-Rops –, desta vez de todos os cidadãos.
No entanto, se na França a perseguição estava refreada pela opinião pública vigilante, não acontecia o mesmo no exterior, por toda a parte aonde tinham chegado os exércitos franceses. Na Bélgica recém-anexada, renovaram-se entre 1796 e 1798 todas as medidas que já conhecemos: o cardeal Frankenberg foi deportado, a Universidade de Lovaina fechada, o culto católico proibido e as Ordens e Congregações religiosas suprimidas. Na Itália, o general Bonaparte infligia derrota sobre derrota aos Estados Pontifícios e à Áustria, sua coligada; pelo armistício de Bolonha, em 1796, e pelo posterior tratado de Tolentino, o papa Pio VI foi forçado a pagar cerca de cinqüenta milhões de ducados ao governo francês, além de se ver obrigado a ceder obras de arte, jóias e o antigo feudo de Avinhão. Por fim, pressionado pela Convenção, que queria descarregar no Papado a sua raiva contra o cristianismo, Napoleão tomou e saqueou Roma, mandou proclamar a república romana e levou Pio VI para o exílio em Florença e, mais tarde, na França.
A Convenção, agora dividida em dois corpos, o Conselho “dos Quinhentos” (mais ou menos equivalente à Câmara dos Deputados) e o “dos Antigos” (mais ou menos equivalente ao Senado), tinha delegado o poder executivo a uma junta de cinco membros, o Diretório . Nas eleições de 1797, os monarquistas triunfaram, mas o Diretório deu um golpe de Estado a 4 de setembro e expulsou os deputados “brancos”. Impôs ainda um novo juramento, de “ódio à monarquia e à anarquia” – tratava-se decididamente de uma mania! –, que muitos sacerdotes não quiseram prestar porque exigia explicitamente o ódio. Em represália, renovaram-se todas as velhas leis anticatólicas: 1.500 sacerdotes franceses e 8.200 belgas foram deportados para a Guiana, de onde poucos voltariam; perseguiram-se os operários e camponeses que observavam o repouso dominical; e chegou-se ao requinte de proibir a venda de peixe nos dias de abstinência...
Mas, desta vez, a “alegria” não foi longe, pois o Diretório carecia totalmente de respaldo popular. No ano seguinte, a Bélgica levantou-se em armas, e a 9 de novembro de 1799 um novo golpe desfez o Diretório, confiando o governo a uma “comissão consular executiva”: Sièyes, Roger Ducos e Napoleão Bonaparte. Era, enfim, o encerramento de um pesadelo que, para os católicos, durara quase dez anos.
Quanto à Igreja, apesar dos horrores a que a tinha submetido, o vendaval da perseguição teve efeitos extremamente positivos. A Igreja Católica francesa ressurgiu purificada e renovada no seu fervor. As antigas tendências do galicanismo e do jansenismo praticamente desapareceram. A vinculação entre catolicismo e monarquia, tanto pela teoria do direito divino dos reis como pelo intervencionismo dos monarcas em assuntos da Igreja, desfez-se pouco a pouco nas consciências e na vida social. A freqüência dos sacramentos cresceu notavelmente entre o povo, de 1795 em diante, e as vicissitudes do século seguinte foram incapazes de neutralizar essa revitalização da fé.
O Papa, cuja autoridade fora durante séculos contestada pela hierarquia eclesiástica francesa, se não explicitamente, ao menos na prática, surgiu como núcleo indubitável da fidelidade católica. Quando Pio VI foi conduzido através da França como prisioneiro, enormes multidões se agrupavam ao longo das estradas, rezando o terço e cantando, em desagravo pelo ultraje que lhe era feito. E o semi-cativeiro que teve de suportar até a sua morte, em 1802, foi suavizado e alegrado pelo carinho e pela devoção dos fiéis de todo o país.

Notas:
(1). Para toda esta parte, cfr. Pierre Gaxotte, La Révolution française, ed. revista por Jean Tulard, Éds. Complexe, Paris, 1988; Daniel-Rops, L'Église des Révolutions: en face de nouveaux destins; e Juan María Laboa, La Revolución francesa y la Iglesia, em Historia de la Iglesia Católica, vol. IV, Edad Moderna, 2a. ed., BAC, Madrid, 1991]
(2). Pierre Gaxotte, La Révolution française, pág. 57. O clube chamado jacobino recebeu esse nome por reunir-se no convento de Saint-Jacques (Jacques é a forma francesa de Tiago; ambas derivam do nome hebraico Jacob), onde São Tomás de Aquino havia lecionado quinhentos anos antes.
(3) Daniel-Rops, L'Église des Révolutions, pág. 25.

Fonte: A última ao Cadafalso, Gertrud von le Fort, Quadrante.

0 comentários:

Postar um comentário